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Reportagem

EUA atuaram contra aumento de mínimo no Haiti para 5 dólares

Entre 2008 e 2009, a embaixada em Port-au-Prince fez lobby para combater o aumento salarial, que tinha grande apoio da população

Reportagem
29 de julho de 2011
12:46
Este artigo tem mais de 12 ano

Por Dan Coughlin e Kim Ives

Entre 2008 e 2009, a embaixada americana do Haiti se reuniu a portas fechadas com donos de fábricas contratadas pelas marcas Levi’s, Hanes e Fruit of de Loom com o intuito de bloquear o aumento de salários da indústria têxtil do Haiti – que são os mais baixos do continente – segundo documentos do Departamento de Estado americano.

Os donos das fábricas se recusavam a pagar 62 centavos por hora, o que equivale a 5 doláres por 8 horas de trabalho, conforme estabelecia uma medida aprovada por unanimidade pelo Congresso haitiano em 2009.

Nos bastidores, porém, os donos de fábricas tiveram o apoio vigoroso dos EUA, da Agência de Desenvolvimento Internacional (USAID) e da embaixada americana, segundo documentos da embaixada entregues ao Haïti Liberté, parceiro da Pública, por meio do grupo de transparência WikiLeaks.

Na época, o mínimo salarial diário era de 70 gourdes, ou 1 dólar e 75 centavos.

Os empresários afirmaram ao Congresso haitiano que estavam dispostos a dar um aumento de 9 centavos, chegando a 31 centavos por hora de trabalho – 100 gourdes diários -, para os trabalhadores que produzem camisas, sutiãs e roupas íntimas para gigantes da industria têxtil americana, como as marcas Dockers e Nautica.

Para resolver o problema entre as empresas e o Congresso, o Departamento de Estado americano insistiu que o presidente haitiano René Préval intervisse:

“Uma atuação mais engajada de Préval pode ser crítica para resolver a questão do salário mínimo e os protestos pelo seu aumento  – ou então, corremos o risco do ambiente político fugir do controle”, avisou o embaixador americano Janet Sanderson em junho de 2009.

Dois meses depois, Préval negociou um acordo com o Congresso para estabelecer dois tipos de salários mínimos: um para a industria têxtil de 3,13 doláres por dia (125 gourdes) e outro para todas as outras indústrias e setores comerciais, de 5 doláres por dia (200 gourdes).

Mas mesmo assim, a embaixada americana não ficou satisfeita. O chefe da missão, David E. Lindwall, disse que um aumento para 5 doláres “não leva em conta a realidade econômica”, e teria sido apenas uma medida “populista” para apelar “às massas desempregadas e mal-pagas”.

Os defensores do mínimo haitiano insistem que era necessário manter o passo com a inflação e aliviar o aumento do custo de vida.

O Haiti é o país mais pobre do continente, e o Programa Mundial de Alimentos da ONU estima que 3,3 milhões de pessoas, um terço da população, estejam em risco de passar fome.

Naquele mesmo ano de 2008, uma onda de protestos conhecidos como “protestos do cloro” sacudiram o país – o nome era uma referência à dor no estômago causada pela fome aguda, como se a pessoa tivesse ingerido cloro.

De acordo com estudo do Consórcio dos Direitos dos Trabalhadores realizado em 2008, uma família da classe trabalhadora sustentada por um único individuo e tendo dois dependentes precisaria de 550 gourdes haitianos, cerca de 13 doláres e 75 centavos por dia, para manter um nível de vida normal.

Segundo o assessor de imprensa da embaixada norte-americana Jon Piechowski, “a política do Departamento de Estado é de não comentar documentos com informações classificadas e condenar o vazamento ilegal dessas informações”.

Ele afirmou ainda que “no Haiti, 80% da população está desempregada, e 78% vive com menos de 1 dólar por dia – o governo americano está trabalhando com o governo haitiano e outros parceiros internacionais para aumentar a criação de empregos, apoiar o crescimento econômico e atrair investimentos estrangeiros que sigam as normas da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e consigam alavancar a industria e a agricultura do país”.

O interesse dos EUA: zonas-francas para têxteis no Haiti

Porém, durante um período de 20 meses, do começo de fevereiro de 2008 a outubro de 2009, agentes da embaixada americana monitoraram atentamente e informaram Washington sobre a questão dos salários.

Os relatórios mostram que a embaixada compreendia a popularidade da proposta de aumento do minimo.

Os telegramas afirmam que o novo mínimo tinha o apoio da maior parte da comunidade de negócios do Haiti “com base em relatos de que o mínimo na República Dominicana e na Nicarágua (países que competem no setor têxtil) também vão aumentar”.

Mesmo assim, a proposta gerou uma oposição ferrenha dentre a elite manufatureira haitiana, que Washington vinha apoiando com suporte financeiro direto e acordos de livre comércio.

Em 2006, o congresso americano aprovou o plano Oportunidade Hemisférica através do Incentivo à Parceria (HOPE, na sigla em inglês que significa “esperança”). A lei permitiu incentivos fiscais para criar zonas-francas de fábricas no Haiti – elas podem exportar para os EUA sem pagar impostos.

Dois anos depois, o congresso dos EUA aprovou outra lei de isenção de impostos, chamada HOPE II, e a USAID passou a fornecer assistência técnica treinamento para ajudar as fábricas a expandir suas produções e aproveitar ao máximo a nova legislação.

Os documentos brasileiros do WikiLeaks, publicados pela Pública, demonstraram que empresas brasileiras estão fazendo lobby para integrarem essa iniciativa – usando a mão-de-obra barata do Haiti e exportando sem impostos para os EUA.

Os telegramas da embaixada haitiana afirmam que essa iniciativa dos EUA estava em perigo por causa da proposta de aumento do salário mínimo.

“Representantes da indústria têxtil, liderados pela Associação da Indústria Haitiana (ADIH), se opuseram ao aumento de HTG 130 (US$ 3,25) por dia no setor manufatureiro, afirmando que iria devastar a indústria e ter um impacto negativo no projeto HOPE II” afirma um documento confidencial de 17 de junho de 2009  assinado pelo conselheiro da embaixada Thomas C. Tighe.

Ironicamente, um relato confidencial assinado por Tighe uma semana antes , no dia 10 de junho, observou que um estudo da Associação da Indústria Haitiana havia concluído que “de modo geral, a média salarial para os empregados do setor têxtil é HTG 173 (US$ 4,33)”, ou seja, apenas 67 centavos menos do que o mínimo proposto no Congresso.

Mesmo assim, o estudo alertava que deveria haver oposição ao aumento do mínimo porque “a atual estrutura de salários promove a produtividade e serve como um elemento de competitividade na região”.

Tighe observa, no entanto, que “o salário mínimo para os trabalhadores na Zona Franca na fronteira entre Haiti e República Dominicana é de cerca de US$ 6,00”, um dólar a mis do que o projeto de lei no Congresso.

Mesmo assim, o estudo conclui que “um salário minimo de HTG 200 resultaria na perda de 10.000 postos de trabalho, o que significa mais de um terço do total na época.

Tighe afirmou então que “estudos financiados pela Associação da Indústria Haitiana e pela USAID sobre o impacto do aumento do salário mínimo na indústria têxtil mostram que o aumento iria tornar o setor inviável economicamente e consequentemente forçar o fechamento de fábricas.

Apoiados por este estudo pago pela USAID, os donos de fábricas fizeram lobby pesado contra o aumento, reunindo-se com o ex-presidente Préval em diversas ocasiões e com mais de 40 membros do Parlamento e partidos políticos, segundo os documentos do WikiLeaks.

Monitoramento

Os documentos diplomáticos procedentes do Haiti revelam como a emabaixada americana monitarava o aumento de salário e se preocupava com os impactos da batalha dos salários na política.

Tropas da ONU foram chamadas para reprimir protestos estudantis, aumentando o sentimento contra a presença militar da ONU no Haiti.

Em 10 de agosto de 2009, trabalhadores da indústria têxtil, estudantes e outros ativistas protestaram no Parque Industrial (SONAPI), próximo ao aeroporto de Port-au-Prince.

A polícia prendeu dois estudantes, Guerchang Bastia e Patrick Joseph, por “incitar” os trabalhadores.

Exigindo sua libertação, os protestantes marcharam até a delegacia Delma 33, onde os policiais atiraram gás lacrimogêneo e os protestantes revidaram atirando pedras.

No percurso do protesto, o pára-brisa do carro do conselheiro da embaixada americana, Tighe, foi quebrado, e ele teve que se abrigar na delegacia.

Depois, quando perguntado por jornalistas sobre o incidente e a controvérsia do salário mínimo, Thige disse apenas: “É sempre a minoria que causa desordem”.

Devido aos protestos vertiginosos de trabalhadores e estudantes, os donos das fábricas e Washington venceram apenas parcialmente a batalha dos salários, atrasando o aumento por um ano e mantendo o salário das fábricas têxteis um pouco abaixo do restante.

Em outubro de 2010 a assembléia dos trabalhadores conseguiu aumentar para 200 gourdes por dia de trabalho na indústria têxtil, enquanto em todos os outros setores o salário foi para 250 gourdes por dia (cerca de 6 doláres e 25 centavos)

Clique aqui para ler a reportagem original em inglês.

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