Buscar

A administração Obama continua deportando haitianos, que são detidos ilegalmente quando chegam ao país e levados para cadeias superlotadas em plena epidemia de cólera

Reportagem
18 de novembro de 2011
11:00
Este artigo tem mais de 13 ano

Por Jacob Kushner

Apenas desde janeiro deste ano os Estados Unidos deportaram mais de 250 haitianos – com o pleno conhecimento de que metade deles seriam presos ao chegar ao país e correriam graves riscos de saúde nas insalubres cadeias haitianas.

Uma investigação do Florida Center for Investigative Reporting descobriu que a administração Obama não cumpriu sua promessa de buscar alternativas à deportação nos casos em que há riscos humanitários.

“No Haiti, diferentemente de outros países, os deportados são imediatamente presos quando desembarcam. E as condições das prisões são universalmente condenadas como grave violação aos direitos humanos”, diz Rebecca Sharpless, da clínica de Imigração da Faculdade de Direito da Universidade de Miami, que ajuda imigrantes a apelar contra a deportação.

Os riscos à saúde para deportados encarcerados aumentaram ainda mais desde outubro de 2010, quando teve início uma violenta epidemia de cólera que infectou cerca de 470.000 pessoas e matou mais de 6.500 – incluindo alguns prisioneiros.

Especialistas em saúde afirmam que os deportados presos correm grande risco de contrair cólera, que se espalha rapidamente nas cadeias superlotadas, onde não há água tratada, sabonete e sistemas adequados de eliminação de resíduos.

Uma vez expostas à cólera, as vítimas podem morrer em menos de 24 horas.

Esse parece ter sido a caso de um deportado de 34 anos, Wildrick Guerrier, que morreu em janeiro deste ano. Guerrier foi condenado na Flórida por agressão e posse de arma de fogo – o que motivou sua deportação.  Ele faleceu como conseqüência dos sintomas similares aos da cólera dois dias depois de ser libertado da prisão onde adoeceu. É a mesma prisão usada hoje em dia para abrigar os haitianos que são enviados de volta ao país.

O governo haitiano diz que cerca de metade dos deportados são detidos para que se verifique quais deles são “criminosos sérios”. Trata-se, portanto, de uma detenção arbitrária. O período de detenção sem qualquer processo formal pode chegar a até 11 dias, em clara violação às leis haitianas e aos tratados da ONU.

Uma breve pausa

Um dia depois do terremoto de janeiro de 2010 destruir grande parte da capital, o governo americano suspendeu todas as deportações. Desde então a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem feito lobby para que os países vizinhos suspendam o procedimento por causa das péssimas condições atuais do país.

“A crise não acabou”, diz o especialista em direitos humanos Michel Forst, que trabalha para a ONU no Haiti. “A ajuda mais importante que a comunidade internacional pode dar ao Haiti é suspender o retorno forçado de haitianos”.

No entanto, o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos voltou a fazer deportações no dia 20 de janeiro deste ano — no mesmo dia em que o Departamento de Estado emitiu um alerta pedindo que americanos evitassem viajar ao Haiti por causa dos riscos à saúde e da insegurança.

Oficiais de imigração e alfândega dos EUA dizem que as deportações para o Haiti foram retomadas por causa de uma decisão da Corte Suprema que exige que os imigrantes ilegais detidos sejam libertados depois de 180 dias.

Essa decisão significaria que “haitianos presos que têm ficha criminal seriam liberados para ficar em comunidades americanas, o que significa uma grande ameaça ao público americano”.

Barbara Gonzalez, assessora de imprensa do departamento que executa a política imigratória do governo dos EUA (ICE, na sigla em inglês), diz que a agência “prioriza aqueles oferecem grandes riscos à comunidade”.

Mas a reportagem averiguou que pelo menos três dos deportados entre agosto e setembro deste ano tinham condenações por crimes não violentos relacionados a drogas.

Além disso, 75% dos haitianos deportados nos últimos anos não tinham cometido nenhum crime, segundo os registros de imigração.

“A hipocrisia é espantosa”, diz Rebecca Sharpless, da Universidade de Miami. “Oficiais americanos sabem há muito tempo dos riscos de mandar pessoas para a prisão no Haiti. Eles também sabem que a epidemia de cólera piorou ainda mais a situação, tronando-se uma combinação mortal junto às más condições carcerárias. Mesmo assim, decidiram voltar a deportar”.

Na volta ao lar, cadeia

Na manhã do dia 9 de agosto deste ano, Franco Coby, um jovem de 24 anos nascido no Haiti mas criado em Fort Myers, na Flórida, desembarcou de um avião em Porto Príncipe.

Ele esteve detido por quase dois anos em uma prisão na Flórida por vender cocaína a um informante da polícia, e depois ficou quatro meses em um centro de detenção de imigrantes nos Estados Unidos.

Logo na chegada a polícia haitiana colocou-o junto com outros 42 deportados em dois ônibus brancos.

“Para mim, estou em um país estrangeiro, apesar de ser o local onde nasci”, diz Frantz Fils-Aime, de 29 anos, outro deportado proveniente de Nova York, também condenado por vender cocaína.

Florence Elie, diretora da organização Haiti Citizen Protection Ministry, entrou em um dos ônibus para explicar que os deportados têm que se apresentar semanalmente durante 18 meses – embora não haja nenhuma lei no Haiti que estabeleça esse tipo de penalidade.

Ela também explicou que alguns iriam em breve ser colocados em “retenção administrativa” – ou seja, na prisão.

Na manhã seguinte, o haitiano da Flórida, Franco Coby, já estava detido no Comissariado Petionville, uma prisão que fica em frente a um dos maiores campos de desabrigados da capital Porto Príncipe, onde vivem cerca de 900 pessoas.

Ele ficou numa cela de cerca de 18 metros quadrados, junto com Filis-Aime e outros deportados de Nova York, Georgia e Michigan. Durante a semana seguinte, chegaram a dividir o espaço com 15 outros deportados. Às vezes, não havia espaço para que todos dormissem no chão.  E um cheiro horrível de fezes saía do banheiro entupido.

“Agora tem caroços aparecendo em todo o meu corpo, cara. Eu não sei se sou alérgico a algo…”, disse Coby à reportagem depois da sua primeira noite ali. “Estou me sentindo meio mal; meu estômago está me matando. Comi um pouco de arroz hoje, e não parou nem um tempinho no estômago”.

John May, presidente da ONG Health Through Walls, de Miami, que luta por melhores condições carcerárias, visitou a cadeia onde Coby e outros deportados estiveram presos.

“Isso é o que eu vejo em toda parte”, diz May. “É um ambiente propício à tuberculose e a doenças de pele como sarna. Mas no caso do Haiti o mais preocupante é a cólera – basta uma pessoa com cólera para que a doença se espalhe rapidamente para todo mundo”.

A cólera se espalha primariamente através de fezes contaminadas, causando vômito e diarréia. “Qualquer ambiente sem condições adequadas de higiene é propício à cólera. E é exatamente o que vemos”, diz May.

Perguntado se as condições carcerárias são um risco à vida e à saúde dos detentos, Pierre Wilner Casseus, presidente da comissão responsável pelos deportados do governo haitiano, respondeu que aqueles que parecem doentes são imediatamente liberados.

Sem atendimento médico

Em alguns casos, a precariedade das prisões do Haiti agrava condições de saúde pré-existentes. Foi o que aconteceu com Jeff Dorne, que morava há muitos anos em Boston e foi diagnosticado com esquizofrenia. Antes de ser deportado, Dorne estava preso em Nova Jersey, onde foi condenado por estupro em 2003.

Quando chegou ao Haiti, as autoridades o enviaram imediatamente para a cadeia — sem qualquer processo legal — onde ele ficou na mesma cela em que Coby ficou preso.

A doença de Dorne exigia que ele tomasse quatro remédios por dia, e um estoque suficiente para um mês foi enviado à polícia haitiana.

Mas, no Haiti, as prisões no Haiti não têm equipes médicas e os guardas não recebem treinamento para lidar com problemas de saúde.

Logo na primeira noite, Dorne recebeu seus remédios. E nunca mais. Os demais remédios sumiram.

“No sábado eu perguntei ao guarda se ele poderia me dar as pílulas. Disseram que não conseguiam encontrá-las. Continuei pedindo. Mas depois de três dias, desisti”, lembra ele.

Nos dias seguintes, os sintomas voltaram. “Eu não conseguia dormir e minhas mãos começaram a tremer”.

O doutor John May explica que detentos com problemas mentais enfrentam um risco gravíssimo porque não conseguem se defender sozinhos. “Alguém que precisa de medicamentos antipsicóticos pode gravemente afetado se não receber a medicação”.

Procurado pela reportagem, o diretor da prisão afirmou desconhecer o caso de Dorne.

No dia 1 de abril, uma decisão do ICE explicando a razão para a continuidade das deportações afirmou que alternativas deveriam ser consideradas nos casos em que há riscos humanitários ou de saúde. No entanto, como no caso de Dorne, haitianos com problemas graves de saúde continuam a ser deportados.

Com base na Convenção da ONU contra a Tortura de 1984 – que proíbe que governos deportem pessoas que possam se expor ao “sofrimento ou dores severas” decorrentes da deportação – advogados estão lutando nos EUA contra a deportação de haitianos.

Um caso bem-sucedido aconteceu em abril, quando um imigrante em Miami teve a deportação suspensa por causa das condições das prisões no Haiti.

Liberdade em versão “roleta russa”

A comissão responsável pelos deportados do governo haitiano, composta por representantes de quatro ministérios e da Defensoria Pública, é quem decide quem vai ser libertado – e quem será preso. O processo é decidido caso a caso. Não há uma política pré-determinada, e há pouco consenso entre membros da comissão sobre o propósito de manter os deportados em prisões.

Aramick Louis, secretário de Estado para Segurança Pública, afirma que as detenções acontecem para proteger os próprios deportados durante o processo “vulnerável” de transição para o Haiti.

Já Frederic Leconte, comissário da polícia judicial no Haiti, diz que a detenção permite que o governo haitiano tenha o tempo necessário para entender a situação de cada indivíduo – embora o governo dos Estados Unidos envie os relatórios sobre cada caso duas semanas antes da deportação.

Durante a investigação, a reportagem não constatou nenhuma circunstância em que os detidos tenham sido entrevistados ou mesmo observados pelos oficiais haitianos.

Clique aqui para ler a reportagem original, em inglês.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes