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Apesar das promessas, a grande maioria dos contratos para infraestrutura no país afetado por terremoto em 2010 vai para empresas americanas

Reportagem
19 de janeiro de 2012
12:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Por Marjorie Valbrun

Depois de dois anos de frustração com a lenta reconstrução do país destruído pelo terremoto, haitianos dizem que foram deixados de lado enquanto as empresas americanas abocanham a maioria dos contratos – e do dinheiro – destinados a obras de infraestrutura e assistência.

Auditorias e análises sobre os dois últimos anos feitas pelo inspetor geral da Agência americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) encontraram problemas que têm dificultado a reconstrução e levam ao descumprimento das promessas de distribuir de forma justa contratos entre empresas haitianas e americanas.

De acordo com estimativas do governo americano, 1.537 contratos foram concedidos, somando um total de 204.604.670 dólares até o terceiro trimestre de 2011. Apenas 23 destes contratos foram para companhias haitianas, totalizando 4.841.426 dólares.

Onde há dor, há lucro

O governo dos Estados Unidos destinou 3,1 bilhões de dólares para o Haiti, de acordo com o Gabinete do Coordenador Especial para o Haiti no Departamento de Estado americano. Isso inclui 1,8 bilhão de dólares para a reconstrução durante os próximos cinco anos.

O Congresso também destinou 1,14 bilhão em fundos suplementares em julho de 2010, depois do terremoto, segundo a Controladoria do governo americano. Mas neste caso os fundos foram para o Departamento de Estado e para a agência de desenvolvimento internacional (USAID), que por sua vez repassaram a empresas e ONGs. Juntos, esses departamentos estão administrando cerca de 412 milhões de dólares para projetos de infraestrutura no Haiti.

Muitos críticos dizem que poderia ser feito mais para garantir que pelo menos uma parte dos contratos sejam entregues a companhias haitianas. Mas, em vez disso, o dinheiro vai para os suspeitos de sempre – empresas que são velhas conhecidas do governo americano, em Washington, afirma Bob Remy, um consultor de equipamentos farmacêuticos e presidente do Comitê de Ajuda Haitiana de Washington.

“Esse círculo é conhecido pelo seu poder de lobby, especialmente as companhias que são contratadas para trabalhar em áreas propensas a desastres”, ele diz. “Sempre que existem desastres, as mesmas companhias se juntam. Para eles, onde houver dor, há  lucro”.

Segundo o Centro para Economia e Pesquisa Política, de Washington,  até setembro de 2011, 2,4% dos contratos do governo americano foram para empresas haitianas, enquanto 35,5% contemplaram empresas do mesmo círculo, sediadas em Washington, Maryland e Virginia.

Trabalhadores haitianos também foram excluídos

O  governo americano garantiu que iria obrigar as empreiteiras a contratar uma boa parcela de haitianos. Mas, de acordo com uma auditoria do inspetor geral de gastos da USAID feita em setembro de 2010, os dois maiores contratadores americanos do programa “dinheiro por trabalho” empregavam apenas 8 mil haitianos por dia – em vez dos 25 mil requeridos pelo contrato.

“Esse programa ‘dinheiro por trabalho’ foi uma piada completa,” diz Remy. “Eles deram baldes e vassouras aos haitianos para remover entulho. O fundo para reconstrução deveria limpar a capital haitiana e ao mesmo tempo criar empregos”.

Além disso, de acordo com um relatório publicado em novembro pela Controladoria do governo dos EUA, o atraso na reconstrução ocorre por falhas na execução dos programas.

A USAID e o Departamento de Estado “empenharam e gastaram uma pequena quantia dos fundos para as atividades de construção da infraestrutura,” afirmou o relatório. Um exemplo: dos 412 milhões de dólares alocados para infraestrutura, apenas 3,1 milhão foi gasto até setembro de 2011.

Segundo o documento, depois do terremoto as agências tiveram dificuldade em contratar pessoal, em planejar projetos e conceder contratos.

USAID: é complicado… 

Reconstruir o Haiti é uma tarefa complicada. A capital, Porto Príncipe, tinha uma infraestrutura muito precária antes do terremoto.  Depois do terremoto, houve necessidade de contratar ONGs  e companhias com experiência em lidar com desastres naturais, empresas com capacidade técnica, conhecimento estratégico, equipamento pesado e já aprovadas pela USAID. Essas empresas estavam, em sua maioria, localizadas nos Estados Unidos.

Funcionários do USAID disseram que inicialmente a agência não tinha escolha a não ser confiar em empresas americanas durante o período de emergência, devido ao dano extensivo do terremoto e à incapacidade das empresas haitianas.

“A natureza de emergência do Haiti exigiu velocidade, então a USAID chamou seus parceiros tradicionais para garantir uma resposta efetiva,” disse um porta-voz da agência. “A maioria dos fundos da USAID para o Haiti, durante os últimos dois anos, destinava-se  a dar uma resposta rápida às emergências e crises humanitárias, incluindo os danos causados pelo terremoto, a cólera, o suporte às eleições locais e a mitigação dos efeitos da temporada de furacões”.

Agora, o trabalho de ajuda pós-terremoto está em fase de desenvolvimento, em que 500 organizações e companhias haitianas seriam contratadas, adicionou o porta-voz. “A USAID está ajudando ativamente o governo do Haiti e o povo haitiano e coordenando com outros doadores para trabalhar diretamente com atores locais e organizações nascentes”.

O Departamento de Estado também está buscando descendentes de haitianos nascidos nos EUA que querem fazer negócios no Haiti. Por isso houve uma conferência recente dirigida aos interessados em “trabalhar com o governo dos Estados Unidos no Haiti”.

“Ficou óbvio que existia na comunidade da diáspora haitiana uma vontade de ajudar a reconstruir seu país”, diz Preeti Shah, do Gabinete do Coordenador Especial para o Haiti, criado em 2010 para supervisionar a estratégia de reconstrução em parceria com o governo haitiano.

Albert Cady, um advogado de Washington, foi a eventos externos e workshops dos Departamento de Estado e do USAID e os achou de grande ajuda. Ele é membro do Grupo de Aconselhamento para o Desenvolvimento Haitiano, uma organização ad-hoc de descendentes de haitianos em Washington que se encontram mensalmente para buscar formas de ajudar o Haiti.

Quem manda é o Bill Clinton?

Não são só as empresas haitianas que têm sido largamente deixadas de lado na reconstrução. “São os indivíduos também”, reclama Monique Manigat, descendente de haitianos nascida nos EUA que recentemente voltou para o Haiti.

 “Algumas organizações abrem vagas só para estrangeiros, pagam a eles quantias enormes de dinheiro. Eles ficam aqui vivendo essa vida boa, usando o dinheiro que deveria ser para ajudar o país”, diz.

Para ela, a evasão de profissionais capacitados, que tem retirado do Haiti cidadãos talentosos, precisa ser revertida. “O Haiti perdeu muitas pessoas com boa educação e grandes habilidades. Precisamos trazê-las de volta”.

“Nós deveríamos estar aqui reconstruindo o país com nossa capacidade”, acredita Manigat.

O pai de Manigat, Leslie Manigat, foi presidente do Haiti durante cinco meses em 1998, antes de ser derrubado por um golpe militar. Sua madrasta, Mirlande Manigat, concorreu à presidência nas últimas eleições.

A  exclusão chegou até a Comissão Interina Para Recuperação do Haiti (IHRC), estabelecida para garantir que a reconstrução seja liderada por haitianos, e dirigida por Bill Clinton, ex-presidente dos EUA e Enviado Especial da ONU para o Haiti, e pelo ex-primeiro ministro haitiano Jean Max Bellerive.

A Comissão tem sido palco de atrito entre membros haitianos e internacionais.

Em dezembro de 2010, nove dos 14 membros votantes da Comissão – existem 14 votantes não-haitianos – escreveram para os diretores, reclamando da “completa desconexão das atividades do IHRC”.

“Corremos o risco de acabar com uma variedade de projetos mal distribuídos, alguns dos quais certamente interessantes e úteis quando considerados individualmente, mas que, em conjunto, não respondem à urgência da situação nem estabelecem a base para a recuperação do Haiti, e muito menos do seu desenvolvimento”, dizia a carta.

O IHRC admitiu que no começo não se comunicou bem com seus membros haitianos, mas avalia que as coisas têm melhorado depois de um esforço para engajá-los e chamá-los a uma participação mais regular.

Jocelyn McCalla, conselheira sênior de Leslie Voltaire, ex-enviado especial da ONU para o Haiti, diz que esperava uma maior inclusão de haitianos por conta do trabalho do IHRC, mas que a organização “virou uma mão de ferro em prol dos americanos”.

“O processo de tomada de decisão é completamente opaco. São as pessoas levadas à comissão por Clinton que estão tomando todas as decisões. Em essência, os americanos estão dizendo que haitianos não estão pronto para comandar seu próprio país”.

Clique aqui para ler a reportagem original em inglês.

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