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Reportagem

A dois anos do início da Copa, documentos inéditos mostram que a coisa vai mal

Análise feita por organizações, pesquisadores e Comitê Popular aponta leis de exceção e mau uso do dinheiro público

Reportagem
12 de junho de 2012
09:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Faltando exatamente dois anos para a Copa do Mundo, a Pública teve acesso a dois documentos produzidos pela organização de direitos humanos Justiça Global e Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), em parceria com pesquisadores de universidades brasileiras e da Articulação Nacional dos Comitês Populares (Ancop) que analisam a legislação de exceção que está sendo criada para o período dos jogos e a falta de transparência na utilização de recursos públicos em obras para a Copa. O material na íntegra estará disponível para download aqui amanhã (quarta-feira) mas nós adiantamos os principais pontos apontados nos documentos, que você lê a seguir.

A criação de novas leis é o tema do primeiro artigo – “Legislação de Exceção no Contexto dos Megaeventos Esportivos no Brasil”. Nele, os autores destacam o Regime diferenciado de Contratações, usando como exemplo o projeto do Porto Maravilha (mais detalhes ao longo do texto) e discutem pontos polêmicos da Lei Geral da Copa e do Projeto de Lei do Senado n. 728 de 2011, também conhecido como AI-5 da Copa (já falamos dele aqui) que tipifica “terrorismo” e “dopping nocivo” – permitindo que a Fifa determine quais substâncias devem ser consideradas entorpecentes.

O documento “Recursos Públicos, Apropriação Privada” explica como o volume real de investimentos públicos parece não ser conhecido nem mesmo pelo Estado brasileiro, já que não existe uma base unificada de dados de gastos públicos e privados, e a concessão de isenções fiscais, além de estimativas iniciais de gastos muito baixas. Também fala sobre a discrepância de investimentos públicos e privados em aeroportos, portos e estádios.

Leia e não esqueça de voltar amanhã para baixar os docs na íntegra:

Legislação de Exceção no Contexto dos Megaeventos Esportivos no Brasil

O documento começa dizendo que a realização de megaeventos tornou-se objeto de disputa acirrada entre países e cidades que perceberam aí uma possibilidade enorme de expansão e circulação do capital: “desta forma, os espaços das cidades-sede destes eventos são apropriados, reorganizados e transformados em novos territórios de investimentos, que pouco ou nada têm a ver com a melhoria de políticas e serviços públicos para as camadas mais pobres da população”. É neste contexto que o ordenamento jurídico brasileiro é questionado: “De acordo com alguns parlamentares, nossa legislação não estaria de acordo com as expectativas das entidades responsáveis pela organização desses eventos e microrreformas seriam necessárias para a adequada realização dos mesmos” diz o artigo.

Falando especificamente das leis, o maior exemplo dado é a Lei Geral da Copa que, dentre outros temas, trata da criação de novos tipos penais exclusivamente para a tutela de determinados bens jurídicos que estariam sob maior risco durante o evento. Entre os artigos mais conflitantes com a nossa legislação, o texto destaca as zonas de exclusão (cap.2); a privatização e uso exclusivo da Fifa do uso de símbolos, emblemas e mascotes, (cap.2); a responsabilidade geral do Estado por danos e prejuízos em acidentes (cap.4) e a proibição de aulas nas redes do ensino público e privado durante os jogos (art.64).

O documento lembra também o modelo sul africano, que criou 56 tribunais especiais da Copa e teve aplicou leis totalmente desproporcionais: “condenações de quinze anos por furto de uma câmera fotográfica e distinções entre turistas brancos e negros fizeram parte da lista de absurdos da edição de 2010”.

“Em nome da suposta urgência e necessidade dos megaeventos esportivos, os poderes legislativos municipais, estaduais e federal têm aprovado uma normativa de ‘estado de exceção’ para flexibilizar leis, criar novos procedimentos e suspender e/ou negativar direitos” coloca o documento. Seguindo com outros exemplos, são citados o Ato Olímpico (Lei n 12.035/2009), que tem validade até 2016 e cria renúncias tarifárias, institui vantagens relativas à aquisição e utilização dos bens públicos para a realização ou apoio do evento e estabelece critérios de proteção da marca olímpica apresentando como principais beneficiários o Comitê Olimpico Internacional (COI), o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), patrocinadores e radiodifusores  e um regime licitatório especial, criado para os megaeventos: o Regime Diferenciado de Contratações Públicas. Abaixo, um quadro comparativo:

O Ministério Público Federal chegou a alegar a inconstitucionalidade do Regime de Contratação Diferenciada e se declarou desfavorável a aprovação de cinco de seus dispositivos, segundo o documento. Entre os argumentos apresentados na época (meio de 2011), estava a subjetividade implícita nos critérios de julgamento determinados nos dispositivos e na própria definição das obras que estariam suscetíveis a sua aplicação.

Outras medidas provisórias e novas leis são citadas no documento: a 12.348/2010 que autoriza os Municípios a endividarem-se acima da Renda Líquida Real em operações de crédito destinadas ao financiamento de infraestrutura para a realização da Copa e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos; a 12.350/2010 que isenta a Fifa, suas subsidiárias no Brasil e a emissora responsável pela distribuição de direitos de mídia no Brasil e exterior, de quase todos os tributos federais e ainda estende vários destes benefícios às empresas contratadas para a construção e reforma dos estádios.

Porto Maravilha

O projeto Porto Maravilha ganha destaque no documento. Constituído de três leis municipais, ele foi votado em regime de urgência menos de um mês após o anúncio da vitória carioca para sediar os jogos olímpicos sob justificativa de atender aos compromissos firmados na candidatura. “Ao autorizar o Poder Executivo a instituir a Área Especial de Interesse Urbanístico (AEIU) na Região Portuária, o pacote de leis constituintes do Projeto “Porto Maravilha” modifica o Plano Diretor e cria, dentro de seus limites geográficos, a Operação Urbana Consorciada (OUC), os Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPACs) e a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP). Além disso, ele estabelece benefícios fiscais para essa última empresa e demais que atuam, pretendem se instalar dentro da referida área ou ali prestam serviço no ramo da construção civil” coloca o documento. E segue: “Articulado aos decretos de lei 32575/2010 e 3276/2010 o Projeto estabelece uma Parceria Público-Privada (PPP) inédita no Brasil ao atrelar em um mesmo contrato, a realização de obras, sua manutenção e a privatização de serviços públicos”. O documento denuncia também que a forma com que os contratos foram feitos possibilita a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada através de ferramentas como a concessão de benefícios fiscais, mudanças nos parâmetros urbanísticos e parcerias público-privadas: “Os principais beneficiários do Projeto Porto Maravilha são empreiteiras, construtoras, promotoras, imobiliárias, hoteis, empresas do entretenimentos que atuam ou pretendem atuar na região e, de forma privilegiada, algumas empresas detentoras de vantagens especiais”.

O AI-5 da Copa e o dopping nocivo

O projeto de lei do Senado 728/11 conhecido como AI-5 da Copa  propõe a tipificação dos crimes de terrorismo e dopping nocivo. O artigo 10 do projeto pune o dopping com substância lícita porém vedada pela organização do evento mas não elenca quais seriam as substâncias, deixando à cargo da Fifa “transferindo para a iniciativa privada a competência para determinar o que é crime e o que não é”.

Copa 2014: Recursos Públicos, Apropriação Privada: Financiamento para a Copa do Mundo de 2014 

Resultado da parceria entre o PACS (Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul) e a Justiça Global, este artigo parte de uma questão aparentemente simples, mas de difícil resposta: quanto custa a Copa do Mundo no Brasil? Segundo o texto, “a dificuldade de acesso a dados precisos sobre a contabilidade da organização para a Copa do Mundo tem sido a tônica entre todos aqueles que buscam investigar o tema, desde o cidadão comum até o próprio Tribunal de Contas da União – TCU.”

Tal falta de transparência vem amparada inclusive na legislação, como, por exemplo, na Lei 12.462 de 2011. Ela institui o Regime Diferenciado de Contratações para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 e, de acordo com o texto, “na prática, essa inovação legal permite ao governo não divulgar os valores das licitações, além de liberar obras sem projetos-básicos e abrir exceções para o sobre-endividamento de Estados e Municípios caso os gastos sejam relativos aos megaeventos esportivos.” A Matriz de Responsabilidades para a Copa do Mundo, veiculada pelo Ministério dos Esportes, que é, na teoria, a base de dados única dos gastos com o Mundial já foi alvo de críticas do TCU em março deste ano. O órgão classificou a Matriz como “desatualizada” com relação a prazos e valores e já cobrou a Casa Civil e os Ministérios do Esporte, da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão o estabelecimento de “critérios objetivos” na Matriz para definir quais obras de fato são relativas à Copa do Mundo.

“Isso significa que a mais alta corte de contas do país não consegue averiguar se os projetos que estão sendo incluídos nessa Matriz de fato têm relação com a Copa do Mundo.” O medo, a partir desse desconhecimento com relação aos gastos da Copa, é que se abram precedentes para uma situação em que “tudo vai entrar como obra da Copa”, como declarou há um ano Alexandre Guimarães, consultor do Senado para as áreas de Esporte e Turismo. Um exemplo disso, aponta o texto, é o monotrilho a ser construído no bairro do Morumbi, que será financiado como obra da Copa, mesmo após a decisão da Fifa de excluir o Morumbi, estádio do São Paulo, do Mundial.

Estádios

O texto lembra que o próprio TCU já apontou que quatro cidades-sede (Manaus, Brasília, Natal e Cuiabá) estão sob o risco de ter estádios pouco aproveitáveis, por conta da demanda média de público dos times locais ser muito inferior à capacidade das novas arenas. Apesar disso, o órgão não apresentou medidas cautelares ou punitivas, como costuma fazer nesses casos.

Há o destaque também para a escalada do total de gastos com os estádios e as discrepâncias nos dados existentes com relação a isto. Segundo o Relatório de Situação de março de 2012 divulgado pelo TCU, o total de gastos com estádios seria de R$ 6,060 bilhões. O texto lembra que “a proposta original da CBF, apresentada em 31 de julho de 2007, estimava (os gastos) em R$ 2,1 bilhões. Dois meses depois, quando as cidades-sede dos países candidatos enviaram suas estimativas à Comissão de Avaliação da FIFA, os valores mais que dobraram: R$ 4,3 bilhões. A cifra salta para R$ 5,4 em 2011, segundo publicação do ‘Primeiro Balanço da Copa de 2014’, do Ministério dos Esportes.” No próprio mês de março deste ano, representantes do TCU fizeram apresentações no Congresso Nacional estimando os gastos com estádios em R$ 7 bilhões. No último Relatório de Situação, deste mês, o valor estimado com o gasto dos estádios é de R$ 6,778 bilhões.

Aeroportos

O artigo fala de uma discrepância entre gastos públicos e privados: R$ 6,5 bilhões foram investidos pelo poder público na ampliação e modernização de aeroportos nas cidades-sede, enquanto a iniciativa privada gastou R$ 408 milhões.

“Tamanha discrepância na relação entre investimentos públicos e privados torna-se mais controversa quando percebemos que os aeroportos que mais receberam aportes públicos para suas melhorias são exatamente aqueles que foram privatizados em 06 de fevereiro de 2012 [Brasília, São Paulo-Guarulhos e Campinas-Viracopos], junto com o Rio de Janeiro, cuja privatização já foi anunciada para este ano”, diz o texto.

Portos

O financiamento dos terminais marítimos em sete das doze sedes sairá exclusivamente do governo federal. Até agora, dos sete portos, quatro estão em obras, dois estão em fase de licitação e um em fase de elaboração de projeto para licitação. Os dados são do “3o. Balanço das ações do Governo Brasileiro para a Copa”, de abril deste ano. O temor, segundo o texto, é de que “este atraso leve a uma licitação às pressas que termine por aumentar o valor dos gastos, que são, novamente, públicos em sua totalidade.”

O Projeto Porto Maravilha também é destacado neste texto. “O Governo Federal já alocou R$ 223,19 milhões nas obras de melhoria do entorno. Estranhamente, o TCU nos informa que ‘as [referidas] obras no porto do Rio propriamente dito não integram o PPM, mas não informa o motivo. Além disso, uma mirada atenta permite encontrar projetos que dificilmente podem ser relacionados com a Copa do Mundo, como, por exemplo, a construção da nova sede do Banco Central do Brasil na região portuária. Esta obra tem valor orçado em R$ 72,7 milhões e integra o PPM.”

O texto critica a visão otimista adotada pelo governo federal de que a Copa trará desenvolvimento para todo o país. Ele aponta que São Paulo e Rio de Janeiro, as duas cidades mais ricas do país (representam 12% e 5,4% do PIB nacional, respectivamente), concentram a maioria dos investimentos da Copa e que a competição está ajudando a “concentrar mais capital onde já existe uma massa de capitais formada e sólida, deixando o financiamento para o resto das cidades bem atrás, mesmo que, em tese, elas necessitem mais desses recursos.”

Legado 

Há também o argumento de que a União está contraindo novas dívidas financeiras. Isso é problemático pelo desvio de investimentos que outrora figurariam em áreas sociais para pagamento de serviços da dívida. Segundo a estimativa da presidenta Dilma Rousseff, o Brasil gastará 33 bilhões com a Copa. “Para um evento que dura um mês gastaremos mais da metade do que destinamos para a saúde de 190 milhões de brasileiros em um ano inteiro!”, exclama o texto comparando a estimativa da presidenta com o valor total investido em Saúde em 2011. E há também tentativas de flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Desde 1997, quando a União comprou a dívida dos municípios, tanto estes como os estados não podem mais emitir títulos de dívida. “A Secretaria Municipal de Fazenda do Rio publicou estudo, em abril de 2011, defendendo que ‘o novo contexto macroeconômico’ e o ‘pragmatismo’ necessário para a realização dos megaeventos esportivos justificariam uma mudança nas normas atuais”. Tal conclusão sinaliza para uma tentativa de afrouxar a legislação a fim de que os municípios possam se endividar diretamente. E o mesmo vem ocorrendo com os estados.

 

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