“A maioria desses garotos aí é frustrada. Muitos já tentaram a sorte em clubes grandes, mas não conseguiram por não ter padrinho forte. Nosso trabalho aqui vem para cobrir esse espaço.” A frase é do presidente da associação JUACRIS (Juventude Unida no Amor de Cristo), Doraci Mariano, ou professor Dora, como é conhecido no Jardim Rosana, bairro periférico da zona sul de São Paulo, distrito de Campo Limpo.
Enquanto fala, Dora gesticula em direção aos cerca de 30 garotos com idade entre seis e 22 anos que participam do primeiro treino da escolinha da associação em 2013, no dia 15 de janeiro. Nem mesmo a chuva forte afastou os garotos de lá.
Jefferson Nascimento da Silva, de 19 anos, tomava fôlego para contar sua história. “Desde os oito anos eu frequento escolinha de futebol. Já passei por uns oito, nove times, todos amadores. A dificuldade é grande, tem muitos moleques bons e tem que ter um contato forte por trás. No meu caso, não tive ninguém”. A história é muito comum – metade dos garotos no local contam trajetórias semelhantes.
A associação do Jardim Rosana realiza trabalhos sociais na região principalmente através da prática do futebol. A semana é cheia: segunda e quarta acontecem treinos do time masculino adulto; terça, quinta e sexta são os treinos da categoria infantil; aos sábados geralmente há jogos do time masculino adulto e no domingo são os treinos do time feminino adulto. Segundo Dora, 80 crianças e 40 adultos – 20 homens e 20 mulheres –são beneficiados.
“A lógica aqui é formar primeiro o cidadão e depois, quem sabe, o jogador. Nosso foco são crianças e jovens em fase escolar”, explica entre uma apitada e outra em direção à partida, que segue rolando. Para treinar, as crianças precisam estar matriculadas na escola ter bom desempenho escolar. A associação acompanha tudo de perto, e quando o aluno está mal, os pais são chamados para uma conversa.
A quadra do JUACRIS fica na Reverendo Peixoto da Silva, a mesma rua onde, no dia 4 de janeiro, aconteceu o que ficou conhecido como a “Chacina do 37”. Sete pessoas foram assassinadas, em uma suposta represália à divulgação de um vídeo no programa “Fantástico”, da TV Globo, em que dois PMs executam um pedreiro naquela mesma rua. Seis policiais foram presos – a chacina ganhou seu nome porque eles era do 37º Batalhão da PM, que fica bem próximo dali.
Lutar contra a violência foi o que fez a JUACRIS existir. Fundada nos anos 80, a associação trouxe a primeira creche do bairro, chamada Paulo e Admar em memória a dois jovens assassinados por um grupo de extermínio. “A ideia aqui é aliviar um pouco o dia a dia dessa comunidade que sofre tanto. As coisas tão muito ruins aqui”, diz Wellington Rodrigues de Souza, o Perna, assistente de Dora. “Queremos dar outro caminho às crianças”.
O sonho de ampliar o trabalho, no entanto, continua no papel. As dificuldades financeiras são evidenciadas pelas paredes descascadas do local. Dora buscou o governo municipal, ONGs, e empresas como Adidas, Alpargatas e Nike – grandes financiadoras de times de futebol e eventos esportivos. Nada. Segundo ele, a associação chegou a ter a promessa de verba para reforma da sua sede e de um campo de terra batida. A promessa, feita pelo hoje deputado federal Vicente Cândido (PT-SP) em troca de apoio político na sua campanha, foi abandonada. “Durante 2011 o que nós ouvimos foram só promessas”.
Mau uso
Não é que não existam espaços para fazer esportes pra lá da ponte João Dias. Mas, enquanto Dora e Perna brigam para treinar os meninos na sede da associação, outros espaços públicos são sucateados – ou loteados.
Entre os poucos espaços disponíveis para a prática esportiva estão os Clubes da Comunidade, ou CDCs, localizados em terrenos municipais.
A Prefeitura repassa esses terrenos a entidades comunitárias mediante algumas condições: ela coordena a eleição das entidades que farão a gestão, fiscaliza seu uso, ajuda a elaborar o calendário dos locais e faz reformas quando necessário. Atualmente, o distrito do Campo Limpo conta com 15 CDCs. Tudo muito bonito no papel.
Só que, em 2009, o promotor José Carlos de Freitas, do Núcleo de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo, iniciou uma investigação para ver como estavam sendo usados esses CDCs. “À época eram sete clubes na região do Campo Limpo e eles estavam em situação de não uso, de abandono, de obras a serem realizadas, ou em situação jurídica irregular. Um deles, o do Morumbi Sul, por exemplo, havia sido ‘privatizado’ por um condomínio que nem era exatamente de pessoas mais carentes”, afirma. “Essa situação de abandono e de falta de acompanhamento de tudo que havia lá era ainda mais absurda porque havia uma verba de R$ 14 milhões da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação disponível para investimento nos CDCs, mas a verba simplesmente não foi utilizada”. A ação do MP diz que faltou vontade de cumprir a lei em relação a esta verba, mas não faltou vontade em relação ao uso das verbas de publicidade.
A investigação do MP durou dois anos e resultou em uma ação civil pública proposta pelo órgão em julho de 2011, acusando a Prefeitura de São Paulo de “abandono (…) com os Clubes da Comunidade que, em sua maioria, não cumprem com sua finalidade de promover atividades esportivas comunitárias para a população local.” O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou procedente a ação do MP em 22 de agosto de 2012. A decisão ainda é em primeira instância e a Prefeitura recorreu.
A reportagem da Pública passou por 4 CDCs no Campo Limpo, e constatou que o abandono da Prefeitura aos CDCs persiste. Pelo menos três CDCs na região – do Jardim Rosana, do Jardim Martinica e do Esporte Clube do Sapy – funcionam de maneira contrária às normas. Em vez de serem locais de uso livre e comunitário, alguns deles funcionam como franquias informais de clubes de futebol profissional, outros cobram entrada da população e taxas para uso dos campos pelos times locais.
CDCs ou franquias?
No CDC do Esporte Clube do Sapy, que fica no Parque Ipê, funciona uma escolinha do Santos Futebol Clube. O local é um grande campo de terra com um ginásio ao fundo situado em um vale e cercado por muros de concreto batido. “Ali funciona a escolinha do Santos, todo mundo sabe disso”, diz um dos moradores ouvidos pela Pública.
É praxe os grandes clubes de futebol abrirem escolinhas em periferias das capitais ou em cidades do interior. Assim têm acesso a um grande contingente de população jovem que, sem oportunidades, vê no futebol uma esperança de futuro – aumentando suas chances de garimpar futuros craques. O problema é quando essas escolinhas, privadas, usam áreas públicas.
A Secretaria Municipal dos Esportes afirma que o CDC do Sapy pertence às associações jurídicas Mistura Fina Futebol Clube, Sempre Nóis Futebol Clube, Centro de Formação de Atletas Moleque Travesso e Associação Social, Esportiva, Cultural e Beneficente dos Moradores do Parque Ypê e Adjacências.
No entanto, no próprio site oficial do Santos, na lista de escolinhas licenciadas do clube, consta a Unidade Campo Limpo que, está no mesmo endereço do CDC (veja montagem acima).
A Pública telefonou para o número informado no site do Santos. A atendente, Verônica, confirmou tratar-se de um CDC. Perguntada se ali funcionava também uma escolinha do Santos, ela respondeu que sim. Depois, indicou a responsável da Unidade, Juliana Ferreira da Silva. A Pública tentou o contato, mas não teve resposta. A assessoria de imprensa do Santos não quis comentar o tema.
A Secretaria Municipal de Esportes nega que os clube usem os CDCs oficialmente. “Não há qualquer parcerias institucionalizadas entre esta Secretaria com o Santos Futebol Clube ou com quaisquer outros times profissionais de futebol para a gestão de CDC’s. Os CDC’s são geridos sempre por entidades da comunidade local”, respondeu a assessoria, por email. “E é claro que esta experiência e a expertise devem ter um foco local, na região em que será instalado o Clube da Comunidade”.
Nesse caso, a situação do CDC do Esporte Clube do Sapy é irregular, segundo o promotor José Carlos de Freitas. “Os CDCs têm regime de entrega a entidades privadas, mas exclusivos a associações comunitárias e de bairro. Para repasse a clube profissionais, a Prefeitura teria que regularizar a área dentro de outro programa. Se não tem convênio algum com a Prefeitura, não funciona um Clube Escola ali ou algo do tipo, então está irregular”, afirma Freitas.
Em outro CDC ali perto, no Jardim Rosana, moradores ouvidos pela Pública dizem que, desde 25 de janeiro deste ano, o local passou a ser aberto ao público apenas uma vez por semana. Membros dos times que costumam jogar no local afirmam que agora têm que pagar uma taxa de R$ 600 por mês. “Pra quem joga nem fica tão ruim, porque o pessoal divide entre o time, mas antes era de graça, né”, diz um deles, que preferiu não ser identificado. Os moradores também dizem que o CDC passou a cobrar entrada e inscrição das crianças que querem fazer parte da escolinha.
Antes de se tornar oficialmente um CDC em fevereiro de 2010, o local era utilizado como campo de futebol de terra pela comunidade. Em outubro de 2012 – época de eleição municipal – o campo foi reformado, recebendo a instalação de grama sintética, iluminação, alambrados, vestiários e banheiro. Porém, três meses depois, segundo os moradores, começou a funcionar ali uma escolinha de futebol que se diz afiliada ao Corinthians.
Nas grades em volta do campo há uma faixa com o símbolo do Corinthians e o nome da rede de escolinhas licenciadas pelo clube: “Chute Inicial” (veja foto acima). A assessoria do clube nega qualquer ligação e o endereço não consta no site oficial do clube. Oficialmente, as associações jurídicas responsáveis pelo CDC são a Associação Desportiva e Cultural Milianos e o Esporte Clube Bom Refúgio.
Mas, com o apelo de ser uma escolinha do segundo clube mais popular do Brasil, os garotos da região acabam pensando que em breve poderão chegar às categorias de base do Corinthians e se inscrevem nos projetos – pagando por isso.
A atual administração da Prefeitura de São Paulo, que tomou posse há 1 mês, enfatiza que existe uma equipe que fiscaliza o cadastramento, regularização de documentos, formação de diretorias e assembleias dos CDCs, mas diz que “a prioridade é aumentar a capacidade de atendimento e atuação desta equipe.”
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.