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Entrevista

Arqueólogo explica riqueza do patrimônio no Rio Negro

Leia a entrevista com o arqueólogo Raoni Valle, professor do Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)

Entrevista
6 de agosto de 2013
09:00
Este artigo tem mais de 10 ano

Qualquer pessoa consegue retirar peças cerâmicas (cacos ou até objetivos inteiros) das rochas do rio? Os objetivos são sempre comerciais?

Podemos refletir sobre esse processo de diversas formas, por exemplo, como sendo manifestação de um comportamento neo-colonialista em que ao, submeter a arte rupestre a uma nova identidade gráfica e social – não-indígena -, reafirma a dominação de um território (porque a arte rupestre  também é um marcador paisagístico importante) por uma nova lógica socioambiental. Esse processo também se aplica à outra modalidade de vandalismo, com objetivo de remover as gravuras para outros locais, possivelmente para fins comerciais ou de apropriação particular indébita, Mas, nesse caso, é pior, porque nos leva a supor a existência de uma rede maior de articulações, implicando talvez em um esquema organizado e planejado, com logística adequada para se praticar tais ações.

Dito isto, para se fazer remoções de superfícies rochosas contendo gravuras rupestres (petróglifos), é necessário pessoal, equipamento, conhecimento, tempo e transporte adequado, ainda mais se tratando de rocha granítica, extremamente dura. Não pude avaliar as marcas da depredação, mas através de perícia, é possível estimar o aporte logístico para tal operação –  ferramentas utilizadas, quantidade de gente envolvida, tempo gasto para tal expediente e o tipo transporte, que deve ter sido utilizado.

De qualquer forma, indica um padrão preocupante de depredação a sítios rupestres no estado do Amazonas, que envolve saque, subtração ilícita de vestígios arqueológicos de superfícies rochosas fixas. Há registro de depredação para fins de remoção de parte do painel de pinturas rupestres na Gruta do Batismo, em Presidente Figueiredo, que inspecionamos diretamente em 2011, e que se tratou de uma operação bem mais modesta do que, aparentemente, a ação no Alto Rio Negro, cuja a logística, em princípio, teria sido mais complexa. Os dois episódios teriam ocorrido em um espaço de tempo relativamente curto, menos de dois anos de diferença, e, diante do exposto, é possível especularmos que esses blocos graníticos contendo as gravuras sagradas do rio Negro podem estar agora integrando coleções particulares no Brasil ou no exterior. É possível ainda imaginar que tal operação foi feita sobre encomenda. Mas, além de lamentar o fato, no momento não podemos fazer muito mais do que cobrar das autoridades uma investigação séria.

Você sabe de outros casos semelhantes ocorridos na Amazônia ou no Brasil?

Sim. Este tipo de ação, ainda que não corriqueira, ocorre com mais frequência do que gostariam os arqueólogos, os conhecedores indígenas e os cidadãos brasileiros conscientes da importância do patrimônio histórico indígena e arqueológico. Depredação de sítios rupestres, aditiva ou subtrativa, ocorre no Brasil inteiro, principalmente em sítios fora de áreas protegidas, como parques nacionais com visitação controlada. Podemos dizer que vandalismo do patrimônio arqueológico e da arte rupestre é diretamente proporcional ao grau de educação de uma sociedade. Verifiquei marcas semelhantes em diversos sítios no Nordeste do Brasil e na Amazônia. No rio Negro, posso citar o exemplo de uma conhecida localidade, na transição entre o médio e o baixo curso do rio, mas que dado o contexto local pode se relacionar com a extração de brita intensa na área, e não necessariamente com fins comerciais da arte rupestre, até porque marcas de explosivos foram detectadas, o que não é condizente com uma operação mais cuidadosa para remoção de superfícies rochosas contendo imagens. Também verifiquei marcas de artilharia pesada sobre pedrais no baixo Negro, possivelmente exercício de tiro da Marinha. Em ambos casos observam-se ameaças às gravuras rupestres.

Outro fator de risco é que nessa área as gravuras se encontram no meio do canal de transporte fluvial de passageiros e de cargas dentro da bacia. Estão, portanto, muito expostas a um público variado, incluindo pessoas propensas, pela ignorância, ao vandalismo do patrimônio cultural indígena. Mas, no rio Uaupés, o contexto é bem diferente, daí o estranhamento e a surpresa e, como se coaduna ao precedente da Gruta do Batismo, pode indicar um padrão especializado de saque a sítios rupestres.

A quem se destinariam essas peças furtadas?

Fico muito preocupado com a possibilidade disso estar ligado a uma rede “semi-organizada” de tráfico de material arqueológico operando no estado do Amazonas, que não se restringe mais à cerâmica arqueológica, alvo principal do comércio arqueológico ilegal, pela beleza e facilidade com que se encontra em toda região, mas uma rede que está se sofisticando e ampliando seus alvos.

Os destinatários finais dessas peças podem ser colecionadores particulares brasileiros ou estrangeiros, mas, infelizmente podemos ter também instituições, como museus na Europa e em outras partes, recebendo material ‘frio’, depois de algum processo de ‘esquentamento’ com respeito à proveniência ilícita do artefato, inclusive comprando material falsificado de colecionadores.

De forma nenhuma isto é um processo recente, estas ações de vandalismo e roubo se misturam à própria arqueologia em seu nascimento pré-científico. Mas o fato de ser prática antiga não quer dizer que seja inevitável, é até mais vergonhoso. Tivemos mais tempo para aprender sobre o fenômeno e não fizemos nada politicamente relevante para impedi-lo de se reproduzir. O tráfico de material arqueológico na Amazônia é uma triste realidade relacionada à falta de uma cultura patrimonial de valorização da materialidade do passado indígena nesta região, de socialização e gestão dos recursos da história cultural amazônica. Os fragmentos dessa história são então apropriados por elites colecionistas, que tratam as peças arqueológicas como troféus de uma guerra cultural contra os povos indígenas que dura até hoje.

Não quer dizer necessariamente que somos incompetentes como profissionais, gestores públicos e cidadãos, mas sim que não se trata de uma prioridade política no Brasil, um país de memória recente e seletiva, acima de tudo sobre a história indígena de longa duração, que insistimos em chamar de “Pré-História”, com todas as aspas da Cultura e da História.

É possível medir o valor das gravuras rupestres sob o viés comercial?

Na sociedade capitalista ocidental e ocidentalizada há tendência crescente de praticamente tudo virar mercadoria e possuir valor financeiro. Não é diferente com o patrimônio arqueológico. De maneira semelhante a outras modalidades de tráfico, é possível que colecionadores particulares de renome e de posses, museus e antiquários em países com legislação mais flexível sobre a propriedade do passado alheio possam receber e ‘esquentar’ artefatos ‘frios’ do mundo inteiro, isto é, forjar documentação de proveniência lícita. No Brasil, por exemplo, qualquer artefato que tenha sido exteriorizado antes de 1961, ano de promulgação da lei 3.924, saiu de maneira ‘lícita’;  após essa data, as aquisições particulares nacionais e exteriores passaram a se dar de maneiras ilegais, em sua maior parte. Assim, podemos especular que algumas das práticas de ‘esquentar’ esse material teriam consistido basicamente em modificar a data de exteriorização do Brasil para antes de 1961. Daí podermos ver peças da cerâmica Marajoara, em excelente estado de conservação, em leilões milionários recentes em Paris, Londres ou Nova York, mas com datas de aquisição pelas instituições e colecionadores primários recuando aos anos 50 do século 20 ou mais, que, todavia, podem ter sido extraídas do Brasil em data posterior. Ou seja, mesmo em países como o nosso, que ‘protege’ os sítios arqueológicos legalmente, estendendo essa proteção aos artefatos deles derivados e considerando o comércio de material arqueológico um ato criminoso, o tráfico de material arqueológico continua a florescer.

Entendemos que para uma apuração adequada dos fatos a participação dos indígenas é fundamental, principalmente dos moradores da área próxima ao local da possível abdução. Mesmo para uma perícia técnica no local, que implique apenas em coleta fotográfica e medidas das marcas, tais procedimentos devem ser conduzidos com extremo respeito e cuidado aos sistemas nativos de conhecimento e etiqueta, acima de tudo, sob expressa concordância das lideranças, das organizações, e dos depoentes. No Alto Rio Negro isto só pode acontecer em estreita colaboração e diálogo entre os Povos Indígenas e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que já possui ações efetivas e bem sucedidas na área acerca da cartografia cultural de lugares sagrados e proteção a sistemas de conhecimento nativos e paisagens culturalmente significativas e modificadas, principalmente a partir de uma atuação pontual dentro do setor de Patrimônio Imaterial do Iphan-Brasília, que tem sido muito interessante no Alto Rio Negro.

Onde estão os colecionadores de peças ou gravuras rupestres?

Há colecionadores particulares na Amazônia e no Brasil inteiro, nos outros países da América Latina também, mas os maiores mercados consumidores estariam em países ‘ricos’ com maior tradição de aquisição de material arqueológico em escala global e transcultural. As nações europeias com forte histórico colonial e imperial como França, Inglaterra e Alemanha até hoje enfrentam processos para repatriação (devolução para os países de origem) de material arqueológico coletado, principalmente, nos séculos 17, 18, 19 e 20 de países africanos e asiáticos. Os Estados Unidos passam por processos semelhantes e são questionados pelos próprios nativos norte-americanos com relação à espoliação científica não-indígena do patrimônio cultural ameríndio – mas lá, grosso modo, o material arqueológico é de quem o acha, e portanto pode ser apropriado por particulares.

Qual o valor do passado? Tive notícia de pontas de projétil lascadas (pontas de flecha de sílex e de quartzo) sendo comercializadas no Mercado Livre, por 100 dólares a unidade, há alguns anos, abertamente na internet. Mas, como fragmentos pertencentes a mundos sócio-culturais, em muitos casos, extintos, o valor da história material dessas sociedades não se mercantiliza, pois diz respeito a outro universo simbólico e, portanto, está no conhecimento que esses fragmentos podem gerar sobre a história humana e ambiental nos últimos dois milhões de anos. Coleções particulares, fechadas e cujos materiais não apresentam contextos de proveniência documentados, são epistemologicamente mortas, não produzem conhecimento.

Qual a situação dos sítios arqueológicos rupestres da Amazônia e sua relação com os povos ameríndios do passado?

Na Amazônia se conhece muito pouco a história indígena de longa duração contada pelos petróglifos e pelas pinturas rupestres. Uma parte, muito modesta, começa a ser contada agora pela arqueologia rupestre amazônica através dos esforços de um punhado de pesquisadores não-indígenas, sobretudo a Dra. Edithe Pereira, do Museu Goeldi, Belém, Pará, pioneira nesse tipo de pesquisa na região.

Esses pesquisadores têm chegado a conclusões interessantes, porém eminentemente provisórias. Por exemplo, que se faz arte rupestre na Amazônia pelo menos há 11 mil anos. Mas, há algo mais importante do que a antiguidade desses vestígios: em boa parte da região subsistem conhecedores indígenas, verdadeiros especialistas na tradução das histórias contadas pelas narrativas visuais que são as gravuras rupestres, escritas próprias da história indígena.

Em meu entendimento, esse é o verdadeiro tesouro da arte rupestre amazônica, a sua vida simbólica e cognitiva nas tradições culturais ameríndias. Na Amazônia, a arqueologia, de maneira geral, não é “produto” de sociedades extintas, mas de outras sociedades vivas fortemente ligadas ao passado por conexões que a arqueologia algumas vezes consegue entender e traduzir. Assim, pode-se observar em diversos casos uma “continuidade” entre registro arqueológico e registro etnográfico. Nessa conjuntura, o valor do artefato não está na peça, no fragmento, na sua materialidade, mas na sua relação viva com uma atmosfera cultural em contínua reprodução e ressignificação do passado, um contexto vivo muitas vezes mais informativo do que o contexto arqueológico.

Esse contexto relacional entre arqueologia e história indígena viva é extremamente raro no mundo capitalista ocidentalizado. Na Austrália com algumas etnias aborígenes, por exemplo, na África Austral com povos seminômades do Kalahari, e em algumas partes da América do Norte são verificáveis relações como essas presentes no Alto Rio Negro, e, provavelmente, em mais em nenhum lugar do mundo.

O que a arqueologia sabe sobre as gravuras rupestres do Alto Rio Negro?

Não houve nenhum trabalho arqueológico no Alto Negro sobre os petróglifos – fiz uma incursão pontual no rio Içana em 2008, mas coletamos poucos dados preliminares. A antropologia social no ARN tem tocado no tema indiretamente, à sua maneira, em trabalhos esporádicos, mas permanece uma temática sub-explorada. E o que a etnografia do Alto Rio Negro tem indicado é que todas as etnias da área conferem significados que, em linhas gerais, poderíamos definir como “sagrados” às gravuras rupestres. Elas contam histórias diversas, são os primeiros dispositivos de memória externa não biológica, como os HDs de nossos laptops, incalculáveis terabytes de memórias sócio-geológicas milenares.

Podemos pensar em alguns casos em sistemas de proto-escrita altamente codificados e estilizados que somente os povos indígenas do ARN, no caso das gravuras da área, possuem as chaves para a decodificação. Portanto, somente eles podem avaliar o significado, o valor propriamente dito de tal fenômeno. Somente eles podem traduzir para nós, “brancos”, o conteúdo e o sentido dessas histórias nas pedras.

Como arqueólogos, somos estudiosos das formas apenas, e tentamos encontrar os padrões estruturantes desses códigos (famílias de formas relacionadas, semelhante às famílias linguísticas), suas regras gramaticais, e mapear o processo de dispersão, comunicação e transformações estilísticas dessas gramáticas visuais pela Amazônia, Brasil e América do Sul, ao longo do espaço-tempo.

A dimensão temporal é extremamente difícil de aferir por problemas próprios do registro arqueológico, e  apenas sítios muito específicos oferecem possibilidades para isso, ainda raros na Amazônia, mais pela falta de pesquisas sistemáticas extensivas do que por qualquer outra coisa. No caso da Gruta da Pedra Pintada em Monte Alegre, no Oeste do Pará, por exemplo, os arqueólogos conseguem escavar e entender um pouco das relações que as pinturas e gravuras podem manter com o registro arqueológico enterrado e datável.

Também se observam relações muito interessantes das gravuras rupestres com sistemas de conhecimento xamânico dessas sociedades, em que as rochas são entidades vivas e intencionais e a arte rupestre engloba essa mesma dinâmica, com acesso muitas vezes restrito a pessoas com conhecimentos adequados para lidar com essas dimensões, como os Pajés, que manipulam ou dialogam com poder inerentes às rochas e aos desenhos nelas. Muitos desses sítios são lugares perigosos para pessoas não iniciadas e evitados por elas, ou até mais perigosos para os iniciados, que sentem, sonham, padecem e ficam doentes com o contato descuidado com essas gravuras e lugares. Portanto, qualquer operação de contato e interação entre as gravuras e os indígenas são procedimentos extremamente complexos que não dispensam preparações rituais para proteção.

É possível especularmos que, nessa dinâmica, as gravuras vêm sendo ritualmente feitas e refeitas, renovadas e modificadas seletivamente ao longo de gerações milenares de especialistas indígenas. Tais intervenções na escala da história indígena profunda se efetivam como os processos próprios de constituição dos sítios arqueológicos, que não são portanto imóveis, congelados no tempo, como podemos supor a partir de sua materialização estática em pontos geográficos, mas são formas que se modificam e viajam no tempo-espaço.

O que fazer para impedir a depredação?

Como investigador científico, apaixonado pelo tema, e tendo conduzido pesquisa sobre tais manifestações no médio e baixo Negro entre 2005 e 2012, a possibilidade de depredação para fins de tráfico comercial me é assustadora. Em minha última etapa de campo, em 2010, pude constatar outras marcas de depredação aditiva e subtrativa pontuais, e aparentemente mais recentes em alguns sítios. Quer dizer, o processo não pára e talvez essa seja mesmo a dinâmica histórica dessas marcas na atualidade: serem descaracterizadas pelo novo sistema sócio-econômico e ideológico vigente na Amazônia desde o início do período colonial.

No entanto, se isso fosse inexorável, não faria sentido existir a arqueologia nem as legislações patrimoniais, mas a maior parte da humanidade decidiu valorizar e proteger sua história e passado coletivos, e criou dispositivos político-jurídicos culturalmente específicos para que tais práticas se efetivassem em todas as sociedades. Se pensamos em nossa sociedade, nos referimos à legislação patrimonial e ao Iphan. Aqui na Amazônia, contudo, reconhecemos que o Iphan, dada a magnitude geográfica com a qual lida e outros fatores, está numa situação desfavorável para enfrentar essa ameaça, ou mesmo para investigar e caracterizar a situação enquanto ameaça. Para efetuar as investigações propriamente ditas uma força-tarefa interdisciplinar, com participação do Iphan e da Polícia Federal, deveria ser acionada caso o episódio venha a ser tipificado como crime patrimonial perpetrado por não-indígenas para fins comerciais.

Mas, para que essa tipificação venha a se efetivar é necessário o levantamento prévio de dados. Arqueólogos e geólogos poderiam periciar o local das extrações ao passo que as lideranças indígenas, bem como profissionais não-indígenas que atuem na região e conheçam as lideranças e as pessoas da área, poderiam trabalhar junto com as comunidades e moradores indígenas do lugar no levantamento de informações e na coleta de depoimentos de eventuais testemunhas dispostas a falar.

Mas tudo isso seria numa perspectiva ideal. O ponto fundamental é que os indígenas denunciem o episódio como algo nocivo para seus modos de vida e patrimônio histórico-cultural e solicitem ajuda na tomada de providências. Se a denúncia e o desejo de esclarecer não partir deles, penso que talvez não haja condições de resolver a situação nem de intensificar os protocolos de proteção a esses lugares.

Como o Estado deve proteger estas áreas?

Pela Lei Federal número 3.924 de 1961 os sítios arqueológicos são protegidos juridicamente, mas isso não garante proteção efetiva a tais lugares. O tombamento pelo Iphan, como lugar sagrado integrante do Patrimônio Imaterial dos povos indígenas do rio Negro, poderia conferir uma condição extra de proteção legal, como se fez na Cachoeira das Onças em Iauaretê, no Uaupés.

Mas, na prática, não é o Iphan nem os arqueólogos que protegem esses lugares. Só quem pode garantir a proteção é o povo, os cidadãos que moram perto desses lugares, muitas vezes em cima de tais lugares.

Essas pessoas são as únicas que podem fazer a diferença na hora da preservação da memória e da história plasmadas nos lugares onde vivem e nos vestígios depositados nesses lugares, e não leis, nem livros, cartilhas, vídeos, nem programas de educação patrimonial pontuais, muito menos pessoas que só aparecem de vez em quando em tais lugares, para científica e controladamente destruir um pouco desses lugares, como a arqueologia faz, inexoravelmente, para estudar sítios arqueológicos.

Ao escavá-los para descobrir a história enterrada nas camadas de tempo e sedimento destruímos o contexto deposicional em que os fragmentos dessa história foram depositados por uma mistura complexa entre processos naturais e culturais ao longo de séculos e milênios. Por isso que a arqueologia é obcecada com o registro meticuloso de evidência, informações e, a partir delas, construir dados, porque seu processo de investigação num sítio é irrepetível, em certo sentido.

O que se pode dizer sobre essas gravuras? Qual a data estimada em que foram feitas?

São gravuras estilisticamente relacionadas em uma ampla área geográfica, que iria do Peru ao Pará, o que não quer dizer que são os mesmos estilos, nem tampouco que foram as mesmas pessoas, ou culturas que os fizeram, ou que foram feitos nas mesmas épocas. Apenas que existem relações entre tais conjuntos numa ampla área geográfica mostrando que possivelmente havia grande capilaridade informacional dentro da região amazônica, muita troca de informação entre as culturas amazônicas, ao menos a partir de determinado momento.

Não há datas precisas para tais gravuras rupestres. Sabe-se que foram feitas e refeitas ao longo dos séculos, possivelmente dos milênios. Mas existem indicadores paleoambientais derivados do contexto hidro-geomorfológico, topográfico e tafonômico (processos naturais que alteram as propriedades físico-químicas visíveis e micro-visíveis da arte rupestre e de seu suporte ao longo do tempo) desses sítios e das superfícies rochosas, que sugerem que boa parte do conjunto rupestre do rio Negro foi feita em uma época em que as condições ambientais eram diferentes das atuais, com níveis das águas do Negro mais baixos, secas mais pronunciadas, expansão de áreas de savana, campinas e campinaranas, retração das florestas, etc. Vários indicadores paleoambientais mostram que o clima na região amazônica se estabilizou com características semelhantes às atuais apenas a partir de cerca de 3 mil anos, para a maior parte da região. Portanto, muitas das gravuras nos pedrais ribeirinhos que só aparecem nas secas mais pronunciadas, ou que mesmo nestas ficam permanentemente abaixo da cota hidrométrica mínima atual, teriam sido feitas durante o holoceno médio, isto é entre 3.000 e 7.000 anos A.P (Antes do Presente, datação arqueológica que tem o ano de 1950 como referência).

Você acha que essas ações de depredações e vandalismo podem se repetir?

Sim, há possibilidade dessas ações de vandalismo se repetir, já vêm se repetindo historicamente. Recentemente têm se tornado mais recorrentes, e com uma característica em comum, que é a remoção controlada das superfícies rochosas contendo grafismo, o que, como disse antes, implica que essas ações não estão sendo isoladas, portanto, podem se repetir sim, ainda mais se nada for feito, ou mesmo, caso uma investigação se mostre ineficiente na obtenção de dados conclusivos. A impunidade encoraja práticas criminosas, ainda mais se facilitadas pela incapacidade operacional na gestão do patrimônio arqueológico e, fundamentalmente, na educação de longo termo das pessoas no sentido de valorizar o passado e a responsabilidade que todos temos em preservar a memória.

Acho que a iniciativa mais legítima partiria de uma denúncia formal da organização indígena da área ao Iphan, tanto Brasília quanto Amazonas, ou por comunicação prévia informando das suspeitas sobre o ocorrido e solicitando uma verificação in situ e investigação subsequente. Seria interessante que a perícia subsequente à denúncia fosse efetuada por uma equipe composta por especialistas indígenas, por arqueólogos com experiência na área, tanto geográfica quanto temática, e por geólogos experientes com conhecimento da litologia do alto rio Negro.

Caracterizado o fato como tal, então partir-se-ia para uma investigação criminal conduzida, em meu entendimento, pela Polícia Federal e Iphan, auxiliados pelas Organizações Indígenas e Ministério Público Federal, este último caso necessário.

Mas, o mais importante não é a instauração de um inquérito policial (uma ação pontual específica), mas que haja uma política publica séria, bem planejada e de longo prazo, com investimento sobretudo na educação das novas gerações, e  que se pense em alternativas para intensificar a proteção desses sítios no rio Negro como um todo. O tombamento é um caminho, criar parques arqueológicos-temáticos nessas áreas com gravuras rupestres seria outro, mas é necessário fiscalização constante principalmente da atuação das britadeiras entre o médio e o baixo Negro e das atividades que levam pessoas a esses pedrais como a pesca esportiva.

Os sítios arqueológicos são destruídos pela expansão desenfreada do crescimento econômico no Estado e na região, por medidas insatisfatórias no detalhamento documental e analítico arqueologicamente necessário em virtude da pressa com a qual tais empreendimentos tem sido conduzidos no Brasil dos últimos anos. O problema é político, na eleição das prioridades de crescimento em detrimento das prioridades de desenvolvimento.

A culpa é de todos nós – do governo brasileiro, que padece de omissão generalizada à oposição agressiva a tudo que pode ser considerado “entrave ao crescimento” (como por exemplo, terras indígenas e sítios arqueológicos), aos arqueólogos como eu, que deveriam ser mais diligentes na divulgação, para a sociedade em geral e não apenas para seus pares, de suas pesquisas, sejam elas acadêmicas ,vinculadas a instituições públicas de ensino e pesquisa, ou vinculadas a contratos com empreendedores das obras de infraestrutura. E também mais perseverantes na iniciativa de ações contínuas de educação patrimonial nas áreas mais susceptíveis a diversos tipos de vandalismo, como são as áreas de expansão das fronteiras agropastoris, mineradoras, madeireiras.

Experiências bem sucedidas na preservação do patrimônio arqueológico vinculando-se à iniciativas de pesquisa, ensino e extensão duradouras no Brasil existem e são modelos, como o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, gerido pela Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM). O desafio é pensar esse modelo fora de unidades de conservação federais. Mais do que os parques nacionais, as Terras Indígenas podem ser síntese entre preservação e desenvolvimento (em seu amplo sentido, humano e ambiental), lugares de excelência para a criação e amadurecimento de ações socioambientalmente inteligentes e inovadoras. E nesse caso, o patrimônio arqueológico em Terras Indígenas está em melhor situação do que fora delas.

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