Duas semanas antes de sua morte, Bruno Alves de Campos perguntou ao pastor Ivo “por que existe o sofrimento?” Tinha os olhos tristes. O religioso, conhecido por seu trabalho social junto a moradores de rua em São José do Rio Preto, noroeste de São Paulo, recorreu à desobediência de Adão e Eva para justificar a existência de tanta dor no mundo. O rapaz não respondeu.
Negro, magro, pouco mais de 1,90m, Bruno estava na cidade havia um mês, largara um emprego na prefeitura de Presidente Prudente, a 270 km dali, para procurar a mãe biológica, Célia, de quem foi separado aos 4 anos de idade. “Todo mundo sabia que Bruno tinha um vazio no peito. Nunca precisou de uma informação precisa sobre o paradeiro da mãe, qualquer pista era uma esperança e ele não pensava, criança ainda, deixava tudo, calçava o chinelo e corria”, conta Onofre de Campos, 66 anos, ferroviário aposentado, que junto com a esposa Paulina, adotou o menino e sua irmã Bruna, em 1998, um ano depois de serem tirados da mãe, alcoólatra e moradora de rua, pelo conselho tutelar. Deu a eles casa, escola e seu sobrenome.
Com o casal de católicos praticantes Bruno viveu até a adolescência, quando, entre idas e vindas em busca de Célia conheceu o crack. Abandonou a família, mas foi acolhido pelo capoeirista Mestre Onça, com quem ficou até pouco antes partir para Prudente, em meados de 2013. Lá também foi acolhido, dessa vez pelo diretor de teatro Celso Aguiar que lhe ofereceu uma oportunidade de emprego na Secretaria de Cultura da cidade.
“Quem desse ao Bruno a chance de ser ouvido, se apaixonava. Ele tinha muita força de vontade e um coração bom”. Ficaram amigos a ponto de Celso entregar-lhe as chaves de sua casa. “Eu queria ajudá-lo a se estabelecer. Disse ‘vai ficando em casa até você conseguir se arranjar’. Nunca sumiu uma moeda”.
Ficou três meses por lá e novamente arriscou tudo por uma pista da mãe. “Eu vou atrás de mim” disse para Celso antes de partir. O destino era Penápolis. Antes parou em São José do Rio Preto. Dessa vez não teve acolhida, tampouco encontrou a mãe, apenas repetiu sua história marcada por drogas, pela vida nas ruas e pela morte.
Usuário de crack, sem dinheiro e morando na rua, foi assassinado com um tiro na testa a alguns metros da Praça da Liberdade, no bairro Santa Cruz, pelo soldado da Polícia Militar, Alexandre Mendes, da 2ª Cia do 17o. batalhão. Bruno agora engorda uma triste estatística que mostra que 6 em cada 10 mortos em decorrência de ação policial no Estado de São Paulo são negros, segundo a pesquisa de Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo, do Grupo de Estudos sobre a Violência e Administração de Conflitos (Gevac) da Universidade de São Carlos (Ufscar).
As circunstâncias do crime são nebulosas e incluem imprecisões no boletim de ocorrência, mudanças de versão por parte do policial e suspeita de plantação de provas. A investigação, que no último dia 29 de maio passou a correr em segredo de Justiça, é marcada pelo medo. Os moradores do entorno da praça temem os andarilhos e usuários de droga. As testemunhas do crime temem a polícia. Poucos se dispõem falar e quando o fazem pedem anonimato.
Uma bermuda e uma pistola
O policial Alexandre Mendes, 41 anos, estava de férias na noite de 25 de fevereiro quando, segundo ele mesmo, foi acionado por um morador do bairro para verificar três rapazes que estavam na Praça da Liberdade, apelidada de Figueira, em atitude “suspeita”. Rodeado por casas prósperas e a poucos metros do centro, o lugar é ponto de encontro de moradores de rua que costumam buscar aconchego em volta da figueira centenária, também usada como abrigo para o consumo de drogas. Um grupo de cerca de 20 pessoas estava ali naquela noite.
De bermuda, chinelo de dedo e com uma pistola .40, Mendes, que reside nas redondezas, foi com dois amigos até o local e não encontrou nada que evidenciasse ocorrência de crimes. Mesmo assim, mandou os jovens deixarem o local já que “não eram moradores das imediações”. Os rapazes recolheram suas cobertas e caminharam em outra direção. Mas Bruno olhou para trás e viu os poucos pertences que havia deixado sob a figueira da praça serem consumidos por uma fogueira. Catou uma pedra no chão e a atirou contra o policial.
Eram 23h e numa lanchonete a poucos metros dali a repórter Joseane Teixeira esperava pelo sanduíche que lhe serviria de jantar quando viu três pessoas descerem a rua correndo. “Olhavam assustados para trás e meu primeiro pensamento é que haviam feito algo de errado”, lembra. “Logo, um deles, muito jovem, se dirigiu ao comerciante da lanchonete e contou que um amigo havia acabado de ser morto por um policial militar.
Joseane foi até a praça, onde a fogueira ainda ardia, e ouviu das dezenas de pessoas que se aglomeravam no local relatos de situações humilhantes às quais os andarilhos já haviam sido submetidos na praça. Ouviu também comentários de alívio por parte de moradores que se diziam determinados a limpar a área, e como eles contavam com a ajuda de um ator importante para a higienização, o soldado Mendes. Era a ele a quem a vizinhança recorria quando a Figueira era ocupada por gente indesejada.
Testemunhas do crime, que não querem ser identificadas, disseram à jornalista que a pedra não havia acertado Mendes. Já o policial repetiu mais de uma vez, ainda na cena do crime, que atirou por ter visto a morte de perto. Joseane fotografou o corpo do rapaz e seguiu na sua apuração.
O PM prestou depoimento na delegacia de São José do Rio Preto e foi liberado. Segundo ele, o objeto atirado por Bruno teria acertado suas costas o que o levou a sair em perseguição aos três rapazes. Quando estava prestes a ser alcançado, Bruno teria se virado e ameaçado Mendes com uma faca, que reagiu com um único tiro “já muito próximo” da vítima. O delegado Hélio Fernandes dos Reis decidiu relaxar o flagrante por não reconhecer dolo na atitude do policial em férias.
A morte de Bruno foi registrada no boletim de ocorrência número 2853/2014 como resultado de uma ação de legítima defesa, por disparo de uma pistola Taurus .40, de propriedade da Polícia Militar, com apenas um cartucho deflagrado. No documento policial, o rapaz negro consta como branco.
No dia seguinte, em nota oficial a PM informava a morte de um perigoso bandido, suspeito de vários assaltos e que teria ameaçado um policial. Semanas mais tarde, a investigação de praxe da polícia, os arquivos da Justiça e as fotos da jornalista começaram a por em xeque a versão oficial.
Os peritos encontraram um segundo projétil no local do crime, o que obrigou Mendes a mudar seu depoimento e a reconhecer que fez mais de um disparo. Na reconstituição do crime, a perícia também concluiu que o tiro foi dado a uma distância entre 5 e10 metros, o policial havia dito ao delegado Reis que estava muito próximo da vítima quando atirou.
Nas fotos feitas pela perícia civil, há uma faca ao lado do corpo de Bruno que não aparece nas feitas pela jornalista 20 minutos depois do crime. Depois da divulgação pela imprensa local do misterioso aparecimento da faca, dois socorristas do SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência , afirmaram em depoimento ao delegado Laércio Ceneviva Filho, que investiga o caso, terem retirado o objeto debaixo do corpo da vítima.
A testemunha de defesa do policial, Adriano Rocha, funcionário de uma pizzaria foi indiciada por falso testemunho. Segundo Ceneviva Filho, ele se contradisse 6 vezes. No seu primeiro depoimento ao delegado Reis, na noite do assassinato, Rocha disse que passou pelo local do crime logo após os disparos, sem parar. Imagens de uma câmera de segurança instalada no local mostram que o motoqueiro estacionou a moto, conversou com Mendes e depois saiu.
E finalmente, no Tribunal de Justiça consta que Bruno tem apenas uma passagem pela polícia por furto qualificado. “Há indícios de execução” afirma o ouvidor da Polícia Militar de São Paulo, Júlio César Fernandes. “Ele poderia ter atirado na perna, mas foi um tiro certeiro, na cabeça, para matar,” completa. “Pelo que analisei previamente, ele deve ser denunciado pelo Ministério Público e ir a júri popular”, informa o ouvidor.
O delegado Ceneviva Filho ainda não concluiu o inquérito, o prazo é 15 de junho, e o promotor designado para o caso, José Heitor dos Santos, reclama da lentidão. “Esse inquérito já deveria estar concluído há muito tempo e tenho certeza que vou ter que mandar voltar por falta de informações, adiantou “Fiquei muito contrariado ao saber que os peritos não haviam lido o inquérito antes da reconstituição. Como eles vão reconhecer as contradições sem tomar conhecimento do que já foi dito sobre o caso? questiona. “Vi coisas muito esquisitas na reconstituição.”
A reportagem procurou pelo soldado Mendes e por seu advogado, Wagner Domingos Camilo, mas eles não quiseram se manifestar.
PMs cobrem o corpo de Bruno
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Leia o BO
No BO, o rapaz negro foi registrado como branco
A versão do soldado Mendes
Relaxamento do flagrante