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Desde os preparativos da Copa, moradores de rua foram retirados das ruas e sofreram agressões em pelo menos 6 cidades-sede; as denúncias mais graves são de Salvador (BA)

Reportagem
15 de julho de 2014
12:00
Este artigo tem mais de 10 ano

Em diversas cidades-sede da Copa, os moradores de rua foram vítimas de expulsões e violações de direitos humanos durante o evento. Impedidos de transitar e permanecer em locais escolhidos para abrigo, os que vivem nas ruas foram removidos à força por agentes públicos, sofreram agressões e tiveram seus poucos pertences subtraídos.

Em Belo Horizonte, moradores de rua chegaram a ser agredidos por policiais durante manifestações, tiveram documentos e cobertores retirados, e foram encaminhados para a abrigos com superlotação durante a Copa do Mundo. Em São Paulo, apesar de um acordo assinado entre a Prefeitura, o Estado e o Ministério Público antes da Copa, para evitar a remoção compulsória, os moradores de rua foram vítimas de revistas policiais e retirada de pertences segundo o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua.

Abrigo Rio Acolhedor foi um dos destinos de moradores de rua na capital fluminense. Foto: divulgação
Abrigo Rio Acolhedor foi destino de moradores de rua na capital fluminense. Foto: Divulgação

No Rio de Janeiro, o destino de centenas de moradores de rua foi o Abrigo Rio Acolhedor, no bairro Paciência, na Zona Norte da capital, a 60 quilômetros da região central. Também há denúncias de ameaças a moradores de rua em Brasília – onde a região que ocupavam, a Rodoviária do Plano Piloto, esvaziou-se durante a Copa -, Porto Alegre e Salvador, onde jatos d’água disparados por caminhões de limpeza pública acordavam os que dormiam sob marquises e viadutos, moradores de rua denunciaram ter sido levados para fora da cidade durante a Copa.

A despeito de relatos de violência feitos pelos moradores e por movimentos sociais, os MPs estaduais não entraram com ações para sobre as denúncias nem em Brasília, nem em São Paulo. Em Porto Alegre, dois casos estão sendo investigados pelo Ministério Público: a retirada de um grupo de moradores de rua pela Guarda Municipal no entorno da estátua do Laçador, próximo ao aeroporto da cidade, em 23 de maio; e a remoção por policiais de pessoas que se abrigavam próximo ao Gasômetro, no dia 9 de junho, dias antes da instalação da Fan Fest.

“Pedimos as cópias das câmeras de vídeo dessas regiões e estamos buscando testemunhas desses dois casos, mas há uma dificuldade em localizar essas pessoas. A investigação está em curso”, informou a promotora de Justiça de Direitos Humanos, Liliane Dreyer Pastoriz.

Até agora apenas o Ministério Público do Rio de Janeiro – que em anos anteriores já havia ingressado com duas ações,uma delas pedindo o impeachment do prefeito, forçando a Prefeitura a assinar dois Termos de Ajuste de Conduta (TAC), -, entrou com liminar – já derrubada pela Prefeitura – para impedir a remoção compulsória. Segundo a assessoria de imprensa, o MPRJ ainda analisa se entrará com pedido de reconsideração da decisão judicial.

Internação compulsória em Salvador

Em Salvador, a iniciativa de atuar em defesa dos moradores de rua partiu da Defensoria Pública da Bahia, depois de denúncias de remoções violentas e subtração de pertences de moradores de rua durante os preparativos da Copa. Mais grave: segundo o núcleo baiano do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH) alguns desses moradores foram internados compulsoriamente em comunidades terapêuticas e levados para fora da cidade pela Prefeitura de Salvador.

Impetrada na 6ª Vara da Fazenda Pública de Salvador, no dia 23 de maio a ação de número  052619559.2014.8.05.0001, pede antecipação de tutela para três requisitos. Primeiro, para coibir práticas higienistas, violadoras dos direitos humanos por parte da Prefeitura de Salvador; depois para que a Limpurb se abstenha de lançar jatos de água na população de rua e, por último, pedindo a proibição de remoção dessas pessoas para comunidades terapêuticas e outras instituições não cadastradas na região metropolitana. No dia 12 de maio, a entidade já havia encaminhado ofício para a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, no dia 12 de maio deste ano, pedindo providências para os fatos citados.

“As pessoas confirmam que são acordadas com jatos de água, têm sua documentação e pertences retirados e jogados em um caminhão da prefeitura. Se tentam pedir os documentos, são agredidas por policiais militares ou guardas municipais, que normalmente acompanham essas ações. Fora isso, também temos situações de moradores de rua levados para comunidades terapêuticas, sítios e hotéis não cadastrados”, argumenta a defensora pública do Núcleo de Direitos Humanos, Alexandra Soares da Silva.

Entre os casos relatados pela defensoria (a pedido do órgão, os nomes foram abreviados para evitar represálias aos moradores de rua), está o de J.J.B.S. ocorrido neste ano, semelhante a diversos outros citados no documento. Ele contou que dormia na rua dos Reis Católicos, na Federação, distante cinco quilômetros do Estádio da Fonte Nova, quando os agentes da prefeitura chegaram. Eram dois caminhões, um carro-pipa que o acordou com jatos de água, e outro que “não era uma caçamba de lixo, mas um caminhão destinado a recolher materiais de pessoas em situação de rua”.

Segundo seu relato à Defensoria: “o agente da Prefeitura solicitou ao assistido a retirada dos seus pertences do local: papelão, materiais recicláveis e suas vestimentas. O assistido disse ao agente que poderia levar o papelão e o material reciclável, mas que não permitia que o agente levasse suas roupas e documentos. Com a reação do assistido, o agente chamou três guardas municipais e o coordenador da abordagem. O coordenador disse ao assistido que este não poderia mais permanecer naquele local. O assistido alegou que a Constituição não permitiria a retirada daquele local, até porque não havia qualquer abrigo para ele. (…) O coordenador determinou que seus pertences fossem retirados do local, começando a retirar o seu cobertor. O assistido segurou o seu cobertor, para que não o levassem. Os três guardas municipais então agrediram fisicamente o assistido, com tapas e pontapés no rosto (…) Com isso, levaram todos os pertences, roupas e o único documento do assistido, sua certidão de nascimento, deixando-o apenas de bermuda e sapato”.

Outro caso que chama a atenção é o de uma moradora de rua (E.S.A.), ouvida em abril de 2014, relatando que “constantemente observa Guardas Municipais retirando de forma violenta, os moradores de rua (…), utilizando a arma de choque e gás sem mesmo acordar os mesmos”. Já F.O.G., ouvido em 29/04/14, disse que: “há pouco mais de um mês, estava dormindo (…) ele e mais cerca de doze pessoas, foram acordadas com jatos de água do caminhão pipa da Limpurb, e uma Kombi azul e branca da prefeitura”.

Dentre os 18 casos incluídos na Ação Civil Pública, seis são de profissionais que trabalham com população de rua, reafirmando as mesmas denúncias: os moradores de rua são atingidos por jatos d’água de caminhões da Preitura, seus pertences são molhados e documentos perdidos. Segundo o depoimento de uma dessas profissinais, “que ia para as ruas quatro vezes por semana fazer atendimento”, esses relatos eram “quase diariamente”, e a partir do início deste ano a abordagem estaria sendo feita por agentes da Prefeitura acompanhados da Guarda Municipal, que “passa, recolhendo os pertences dos moradores de rua e os jogam em um caminhão que acompanha essa ação da prefeitura”.

Além dos relatos semelhantes, o núcleo do CNDDH-BA enviou um ofício à Defensoria Pública denunciando abordagens durante a madrugada (de 2h às 4h) quando “pessoas estão sendo surpreendidas nas ruas com carro pipa e jato d’água da empresa que presta serviços de limpeza em Salvador, a Limpurb. De acordo com os relatos, as ações são realizadas com a presença de guardas municipais em carros pequenos, particulares, sem identificação de algum órgão. Além dos jatos d´água, foi relatado fato de igual gravidade, segundo a denúncia, uma Kombi passa recolhendo pessoas para levá-las à cidade de Simões Filho, na região metropolitana de Salvador.”

Jogados no prédio em ruínas

As denúncias de higienização social estão sendo feitas pelo MNPR (Movimento Nacional da População de Rua) desde maio de 2013, no período anterior à Copa das Confederações. A Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps) chegou a ser notificada por colocar mais de 600 moradores de rua, entre eles crianças e idosos, em um prédio em ruínas, abandonado há mais de 10 anos – a antiga sede da psiquiatria do hospital Ana Nery, na praça Soledade, Lapinha. A Semps admitiu a situação e assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Estado da Bahia para retirar as pessoas daquela situação degradante e encaminhá-las para locais de atendimento adequados. Em 30 de setembro, a Semps desativou o abrigo, mas no final de maio de 2014, pelo menos 20 famílias ainda estavam ocupando o local. A Secretaria diz que se tratam de “sem teto cadastrados no Minha Casa Minha Vida e que se recusam a sair do local enquanto não são chamados”.

Luiz Gonzaga Dias Luz, do MNPR, denunciou as perseguições sofridas pelos moradores de rua. Foto: Lena Azevedo
Luiz Gonzaga, do MNPR, denunciou as perseguições sofridas pelos moradores de rua. Foto: Lena Azevedo

Entrevistado em maio deste ano, Luiz Gonzaga Dias Luz, integrante do MNPR, diz que a perseguição aos moradores de rua se intensificou com a proximidade da Copa. “A limpeza está sendo feita em todo lugar: no Pelourinho, setor da Fonte Nova, na Barra, Pituba, onde é ponto turístico. Tudo para deixar a cidade limpa, bonita, mas o usuário (morador de rua) mesmo é que tá sobrando, sofrendo. Tem muita gente denunciando que os colegas já sumiram e não aparecem mais. Tem gente lá no comércio que já não aparece mais. Tinha grupo, de quatro, cinco, que dormia, como ali no Mercado Modelo. Dizem que dois já sumiram, mandaram pro espaço. A guarda municipal arrebentou meio mundo nos últimos meses, dando tiro em morador de rua. Os caras já vêm preparado na valentia e não é sozinho”, descreve.

As denúncias de execução não foram formalizadas pelo Ministério Público nem pela Defensoria, uma vez que não há provas consistentes para isso. Os 18 casos apresentados no pedido de liminar antecipada pela Defensoria Pública ainda estão sendo investigados: o juiz da 6ª Vara da Fazenda Pública, Ruy Eduardo Almeida Brito, decidiu, em 30 de maio, ouvir a Prefeitura de Salvador antes de emitir qualquer sentença. Até hoje a audiência não foi agendada.

De acordo com levantamento feito pela Prefeitura Municipal, Salvador tinha, em janeiro de 2013, 3.560 pessoas em situação de rua. O titular da Semps, Henrique Trindade, diz que não tem como mensurar hoje quantas pessoas estão morando nas ruas da capital. “Eventos como o carnaval, festa junina e agora a Copa sempre atraem mais pessoas. É como enxugar gelo”, admite. Segundo ele, a prefeitura mantém dois hotéis sociais, um em Pau da Lima e outro em Itapuã, e duas equipes fazem abordagens na região central, “sempre de dia” para tentar convencer os moradores a irem para essas instalações. Os dois hotéis são na verdade antigos motéis adaptados para receber, cada um, 50 pessoas, com direito a três refeições diárias. Além dessas instalações, a Semp mantém dois Centros de Reintegração Social, casas de pernoite, como na Baixa do Sapateiro, e convênios com outras entidades.

Trindade nega o recolhimento compulsório de moradores de rua mas admite a dificuldade de lidar com o problema. “Intensificamos a abordagem, mas em épocas de evento, a população de rua aumenta. Infelizmente, não tem como maquiar isso e esconder para o gringo não ver. É uma realidade difícil”.

Ele também critica a Defensoria por ter apontado a inadequação dos hotéis sociais, que não têm janelas e nem área social concluída. “Estamos fazendo adaptação nos prédios. Fornecemos pelo menos três refeições diárias, tem lavanderia coletiva. A Defensoria quer que deixemos as pessoas nas ruas? Estou há 60 dias na Semps e se alguém provar que a secretaria está envolvida em remoções, entrego o meu cargo”, desafiou.

Remoções de moradores de rua em Salvador já eram registradas em junho do ano passado, às vésperas da Copa das Confederações. Foto: Talles Lopes (Reprodução/Facebook)
Remoções de moradores de rua em Salvador já eram registradas em junho do ano passado, às vésperas da Copa das Confederações. Foto: Talles Lopes (Reprodução/Facebook)

Já a assessoria de imprensa da Limpurb, nega que a empresa de limpeza pública esteja jogando jatos de água nos moradores. “A denúncia não procede. Após a saída dos moradores de rua do local, retiramos os papelões, varremos e, só depois jogamos água”.

A coordenadora do MNPR na Bahia, Maria Lúcia Pereira, disse que as ações higienistas e a proibição de que os moradores de rua entrassem no Pelourinho fizeram com que eles migrassem para outros bairros da capital, como Federação e outros do Subúrbio Ferroviário durante o evento. De acordo com Maria Lucia, a prefeitura fechou equipamentos na região central, como casas de pernoite, o que dificultava ainda mais a situação dos moradores de rua. O movimento fez plantão durante toda o campeonato mundial e circulou com um grande grupo pelos locais mais vulneráveis. “Na Aquidabã e em outros lugares as pessoas sumiram. Soubemos que foram para outros pontos da cidade e mesmo municípios, como Feira de Santana”.

Ela afirma que no dia 22 de julho haverá uma reunião nacional do MNPR, quando será feito um balanço das violações nas cidades-sedes da Copa. Além das denúncias que chegaram ao movimento em todos os estados, dados do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, devem integrar o relatório final.

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