Quem se aproxima do quilômetro 6 da Rodovia Juiz de Fora-Ubá, em Minas Gerais, ainda pode ver trechos da cerca de bambu que por quase quatro décadas isolou a Colônia Padre Damião do resto do mundo. Para ali eram mandados portadores de hanseníase, a pretexto de tratar a doença tida como incurável e altamente contagiosa na época, o que seria desmentido pela ciência depois.
O modelo de internamento permanente dos pacientes foi estabelecido a partir de 1920, com a criação da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas – órgão do governo federal. Foram mais de 30 unidades construídas – os leprosários – que funcionavam como um mundo à parte, com total destituição dos direitos dos internos, entre elas a Padre Damião.
Na Colônia de Ubá, como era conhecida na região, os portadores de hanseníase chegavam à estação ferroviária da cidade geralmente contra a própria vontade e sem saber do caráter permanente da internação. Ali passavam a integrar um Estado autônomo, quase autossuficiente, mantido em funcionamento pelo trabalho e submissão dos internos, governados por um regime com normas próprias, que incluíam um sistema carcerário específico. A polícia convencional não entrava lá. “Infrações”, como namorar sem autorização ou envolver-se em brigas, levavam os internos à prisão, chamada por eles de “estufa”.
O encarceramento e os castigos não eram as únicas violências a que estavam submetidos. A mesma lei 610/49 que se tornou o instrumento legal para a segregação dos portadores de hanseníase, também os obrigava a entregar os filhos à adoção. Revogada em 1968, mas na prática estendida até a década de 80, a política de encarceramento amparada pela lei levou à separação de milhares de famílias. No caso da Colônia de Ubá, os bebês eram encaminhados ao Educandário Carlos Chagas, em Juiz de Fora, a 112 quilômetros dali, onde sofriam negligência e maus tratos, de acordo com os depoimentos de vários antigos acolhido. O retorno à família, abandonada quando ainda eram bebês, não era mais fácil, assim como a necessidade de se adaptar à colônia – à qual os pais estavam condenados para toda a vida.
Em 2007, o governo brasileiro reconheceu formalmente seu erro quanto às políticas de segregação adotadas no tratamento da doença e, através da lei 11.520, estabeleceu o direito de pensão especial aos portadores de hanseníase submetidos ao isolamento. Nem sempre, porém, as famílias conseguem receber a pensão porque precisam comprovar a internação compulsória, e em muitos casos a documentação não foi preservada. Os ex-moradores da Colônia Padre Damião e ex-internos de outras três ex-colônias mineiras também reivindicam a regulamentação da posse de suas casas, localizadas em áreas “hospitalares”, que formalmente pertencem ao governo estadual.
Hoje com nome Casa de Saúde Padre Damião, a instituição recebe recursos do Complexo de Reabilitação e Atenção ao Idoso, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Ex-internos e seus familiares passaram a fazer parte da população dos povoados vizinhos: São Domingo e Boa Vista. Em 2009, graças à relação de amizade com alguns moradores, passamos a frequentar a comunidade e, a partir de 2012, começamos a gravar depoimentos de ex-internos em vídeo. Entrevistamos também ex-moradores do educandário, ex-funcionários do hospital-colônia e membros do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN).
Os depoimentos trazem uma história tão rica que renderam um longa-metragem, em processo de produção. Uma pequena amostra destes registros compõem o minidoc Cortina de Bambu, realizado em parceria com o Canal Futura.