No último sábado, 11 de junho, a Casa Pública, no Rio, recebeu dois grandes articulistas e influenciadores das redes sociais. Autores de artigos polêmicos, que suscitam amor e ódio na internet – muitas vezes, defendendo visões opostas –, eles acolheram o convite da Pública para se sentarem lado a lado e conversar sobre um tema pra lá de necessário: a intolerância política nas redes.
Leonardo Sakamoto é fundador e diretor da ONG Repórter Brasil, que cobre trabalho escravo, e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas da Escravidão. Autor do Blog do Sakamoto, tem mais de 460 mil seguidores nas redes sociais. No começo de junho, lançou pela editora Leya o livro O que aprendi sendo xingado na internet. Também integra o Conselho Consultivo da Agência Pública.
Pedro Doria escreve sobre tecnologia e política na internet. Foi editor-executivo do Globo e editor-chefe de conteúdos digitais do Estado de S. Paulo e mantém a coluna “Vida Digital”, na CBN, O Globo e no Estadão. É autor de seis livros, entre eles 1789 e 1565, sobre história do Brasil, e Manual para a internet.
A entrevista, ao vivo e com a participação do público, durou duas horas. Leia abaixo, os melhores trechos:
Natalia Viana: Uma conversa sobre tolerância é necessariamente uma conversa sobre a diferença. Então, para começar, queria que vocês me dissessem se vocês se leem, se acompanham o trabalho do outro e como descreveriam a diferença entre o seu jornalismo e o do outro.
Pedro Doria: É claro que eu leio o Sakamoto. A principal diferença, eu acho, entre o nosso trabalho é que eu sou um jornalista talvez mais tradicional no sentido de não ter uma causa. A carreira do Sakamoto é muito marcada por uma questão de militância, principalmente em relação ao trabalho similar à escravidão. Agora, ele faz essa militância de uma maneira superinteressante, usando as ferramentas do jornalismo.
Leonardo Sakamoto: Estou feliz de estar ao lado do Pedro, e é claro que o leio. Faço das palavras dele as minhas. O texto do Pedro é muito gostoso de ler, gosto muito. Sempre falo que a viralização de um texto na internet se dá pelo conteúdo, mas também pelo formato que você consegue exprimir, ou seja, o formato pelo qual você consegue se conectar com os seus leitores garante que um texto vá longe. Acho, também, que a diferença nesse sentido se dá porque, realmente, eu acabo abraçando, no meu trabalho, no dia a dia, uma causa – acho que o Pedro foi bem direto e correto nisso; eu tento utilizar o jornalismo como um instrumento para a causa do combate ao trabalho escravo ou para a efetivação dos direitos humanos.
Natalia Viana: Sakamoto, queria saber se você, por ser mais ativista, acabou sentindo mais a intolerância nas redes. E queria que contasse como foi essa experiência que virou o livro que você acaba de lançar, O que aprendi sendo xingado na internet.
Leonardo Sakamoto: É importante falar que o ativismo, no jornalismo, não significa que você vai dobrar os números ou distorcer as informações para atingir a sua causa. Acho que o livro acaba surgindo porque, no final de 2014, depois que o PT e o PSDB quase levaram o país às vias de fato por conta daquela polarização extremada no final do segundo turno das eleições, com a utilização de guerrilhas virtuais de um lado de outro… E aquilo continuou depois das eleições. Houve muita gente que veio para cima de mim de forma sistemática. Muito por causa das pautas ligadas aos direitos humanos, gênero, LGBT, pautas trabalhistas. E desde então aquilo explodiu. O fato é que qualquer pessoa que fazia uma discussão pública sobre a questão dos direitos humanos no Brasil começou a sofrer muito no pós-2014. E determinados grupos que, na minha opinião, são de extrema direita, vieram para cima, tentaram tirar credibilidade. Eles esbarraram no fato de eu não me importar em ser xingado na rede. Se xingam, eu falo “beleza, xingamento faz parte”, eu brinco, dou uma resposta irônica. E aí o pessoal subiu um andar, aquele ódio foi para a rua: me cuspiram, me xingaram, me bateram na rua. Aquelas coisas de que pegaram o Guido Mantega [ex-ministro da Fazenda] e outras pessoas e xingaram em restaurantes comigo já acontecem há muito tempo. Tenho stalker perto de casa; um dia desses comprei atum Coqueiro e falaram que eu estava comprando caviar. E aquilo, na verdade, vai como uma bola de neve, extravasa para fora da rede e as pessoas acreditam naquilo, acreditam em campanhas de difamação, aquilo vai ganhando corpo. Ao longo de 2015 teve campanhas de difamação – uma matéria da Folha de S.Paulo desvendou que a JBS/Friboi tinha pago no Google anúncios contra mim; outro jornal em Minas Gerais me bota uma entrevista difamatória na capa dizendo que eu havia falado que aposentados eram inúteis e mereciam ser reciclados. Achei por bem escrever o livro para, a partir da minha experiência, tentar fazer uma discussão a respeito da empatia, do respeito à diferença, do entendimento da diferença e da educação para a mídia. Acho um absurdo completo uma reportagem gigante do Globo, da Carta Capital, da Folha, da Agência Pública ou de qualquer outro veículo que tem credibilidade e é conhecido ter menos valor do que um post apócrifo postado no WhatsApp ou no Facebook.
Pedro Doria: Eu jamais sofri nada perto do que o Sakamoto sofre por conta da rede. Mas estamos vivendo um período em que é absolutamente impossível você ter qualquer opinião a respeito de qualquer coisa que passe por política sem sofrer uma baita pressão na internet. A questão da polarização, acho, é uma das mais delicadas da política no mundo hoje, porque não é só o Brasil que está polarizado, os Estados Unidos estão polarizados, a Espanha, Israel, a França, o Peru acaba de finalizar uma eleição que terminou 49% contra 50%. E uma quantidade razoável de cientistas políticos começa a olhar para as redes sociais e atribuir a elas essa polarização. E por um mecanismo muito simples: quando você pega um Facebook, mas isso vale para o Google também e tudo o mais, aquilo é uma máquina, um software escrito por engenheiros com único objetivo: fazer com que você fique a maior quantidade de tempo lá dentro. E a maneira com que ele faz isso é tentando te dar mais das coisas que você quer ler. Então, você lê muito sobre temas, opiniões e assuntos com os quais você concorda e muito pouco sobre o outro lado. Isso acaba criando na cabeça de cada um a impressão de que “olha, o mundo concorda comigo”. E, na verdade, o que está acontecendo é que está todo mundo se radicalizando, porque o que nos “desradicaliza” é a constante exposição a opiniões distintas das nossas.
Natalia Viana: Uma coisa que me surpreendeu muito, quando fui fazer a reportagem A direita abraça a rede, é que há muito pouco de natural nesse debate, nesse embate na rede. Pelo contrário: existem grupos, agentes, dinheiro, posts impulsionados, reportagens pagas que, partir das eleições de 2014, foram conformando a rede como ela é hoje. Queria que me dissessem se vocês veem esse mecanismo, quem é influenciador, quem está pagando, quem está artificializando o debate?
Leonardo Sakamoto: Nenhum partido desligou totalmente os robôs, e o problema maior não são nem os robôs dos partidos, na verdade, mas [o fato de que] o PT e o PSDB achavam que poderiam controlar as guerrilhas virtuais que eles ajudaram a fomentar durante as eleições. Só que elas, para um lado e para o outro, se tornaram independentes dos próprios partidos. Teve matérias da Folha de S.Paulo que mostraram que os partidos ainda deslocavam dinheiro para o pagamento desses grupos virtuais, mas que, em certa medida, esses grupos têm as suas próprias pautas e estavam ganhando independência em relação a esse processo. Eu entrevistei, durante as eleições, uma empresa que era uma fazenda de perfis virtuais, uma fazenda de seeders, que eles chamam de semeadores, perfis que semeiam opinião dentro de grupos com o intuito de formar opinião contra ou a favor de determinado candidato. Perguntei: “Mas o que vocês fazem entre as eleições?”. “A gente trabalha para empresas.” “Que empresas?” “Grandes empresas, grandes multinacionais que querem que determinado produto venda, que você coloque na cabeça de determinada pessoa certa coisa – a gente ganha com isso e também com certos grupos políticos.” Então, esses perfis nunca são desligados. Boa parte dos ataques que consigo identificar, inclusive com rastreamentos… os ataques mais inteligentes não surgem de pessoas ou cidadãos comuns, mas sim de perfis construídos, que pertencem a grupos. É interessante como determinados grupos políticos mantêm suas fazendas de perfis operacionais, produzem campanhas de difamação que aparecem em um site, no outro e no outro, e aí depois você descobre que todos esses sites são controlados por um mesmo grupo. Se você pegar sites como a Folha Política, Ceticismo Político e Marcha contra a Corrupção, eles pertencem a um mesmo grupo de pessoas. Eles conseguem gerar credibilidade e reputação através de processos que se autocompartilham o tempo inteiro e acabam gerando pressão sobre certo grupo social para adotar determinada opinião. Com a limitação do financiamento empresarial de campanhas, eu acredito que a campanha municipal de 2016 vai contar com um aumento da contratação desses grupos virtuais que fazem ataques. Porque a doação de caixa 2 fica cada vez mais complicada. Nada impede, contudo, que uma empresa ou grupo financie essas empresas de perfis falsos, de ação sistemática na internet – que, por sua vez, são fantasmas – para tentar mover a opinião pública durante as eleições.
Pedro Doria: Acho que isso faz todo sentido, até porque é uma forma mais barata de fazer campanha, exige menos dinheiro. Agora, deixa só eu fazer uma observação. Eu percebo, dentro da esquerda, uma imensa surpresa com o surgimento de uma direita brasileira. Primeiro, ela não dava as caras fazia muito tempo, e isso porque a ditadura foi um terror, ditaduras são um terror, e nós calhamos de ter uma ditadura de direita. Durante muitos anos após a ditadura, se identificar como uma pessoa de direita era quase como dizer “eu sou favorável à ditadura”. Caso nós tivéssemos vivido uma ditadura de esquerda, talvez ser esquerda soasse como ser favorável à ditadura. Não é o caso. Já passou tempo suficiente para que este estigma passasse, e não é ruim para o Brasil que exista uma direita presente; pelo contrário, o nosso sonho deveria ser chegar em um momento em que o debate político fosse um debate em que não estivesse presente o fisiologismo, mas sim um debate real entre direita e esquerda, e de preferência com ambas se alternando no poder – é assim que democracias vão para a frente.
Leonardo Sakamoto: Há tantas interpretações sobre junho de 2013. Não entendo por que as pessoas querem encontrar em junho de 2013 meio que a pedra filosofal do futuro do país, e eu acho uma besteira. É claro que, depois daquela quinta-feira, 13 de junho de 2013, em que a violência policial em São Paulo destampa, aquilo faz com que as pessoas vão para a rua e tragam não só a sua revolta contra o Estado agressor, mas também uma série de outras pautas, muitas vezes conectadas a serviços públicos de péssima qualidade. A direita sai do armário e vai para as ruas, que eram, até então, quase que um monopólio da esquerda. Então as pessoas ficam assustadas – “meu Deus, fodeu” – e eu digo: “Não, não fodeu”. E aí que é a grande sacada disso, que concordo com o Pedro: gente, isso é muito bom, o debate nas alcovas, nos subterrâneos, nos calabouços, entre quatro paredes, é ruim, porque é endógeno. Para que possamos evoluir como sociedade, precisamos ter um embate educado e civilizado entre a esquerda e direita, os dois na rua.
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Natalia Viana: Já que estão falando sobre direita e esquerda, como vocês se definem politicamente?
Pedro Doria: Eu não me defino publicamente [risos].
Leonardo Sakamoto: Até como sou ativista, seria difícil não me qualificar. Fico à esquerda, mas também sou apartidário.
Luna Arouca para o Sakamoto: Qual o papel da esquerda nessa situação? Quando parte da esquerda, que se diz democrática e que diz lutar por esses ideais, qualifica aqueles que são contrários à sua opinião como “coxinhas” e daí para baixo, como a gente cria espaços de diálogo?
Leonardo Sakamoto: A gente tem que trabalhar com a educação para a tolerância. O grande problema disso é que ela é muito mais útil se você consegue, nos primeiros anos de vida escolar da pessoa, educar para a alteridade, a ter empatia com a diferença e educar para a mídia também. Tem esses dois processos. Em São Paulo, por exemplo, eu visitei, durante as eleições de 2014, escolas onde estava havendo bullying entre alunos, separando os amiguinhos pelo candidato em que votam: ou então “sua mãe e seu pai votam em tal pessoa, então você não é meu amigo”. Aí tinha pais desesperados que estavam escondendo em quem votavam para evitar que os filhos sofressem bullying na escola. A escola é o primeiro lugar onde as pessoas têm acesso à diferença, onde convivem com a diferença. Em casa, no clube, na família, você não tem [diferenças], porque são grupos relativamente coesos. Então, a escola tem uma responsabilidade muito grande de fomentar esse respeito e, se possível, o amor à diferença, porque é da diferença que temos crescimento a partir do embate de ideias.
Pedro Doria: Tem uma descoberta: descobrir o prazer intelectual no debate. Ser contestado por uma pessoa que pensa muito diferentemente de você, quando essa contestação vem com inteligência, com bons argumentos. Pode te levar, inclusive, a reforçar as convicções das suas próprias ideias. Mas te testa, te obriga, te melhora. O debate é bom, pode ser um prazer.
Lara Fogueira: Como é que a gente pode educar o público leitor para ser crítico e para filtrar fontes de informação?
Pedro Doria: Me surpreende um pouco como coisas que deveriam ser básicas às vezes as pessoas não entendem. Isso me assusta um pouco. As pessoas não sabem diferenciar um editorial de um artigo assinado, de uma matéria. Uma coisa é informação, outra coisa é opinião do veículo. E frequentemente não sabem diferenciar qual é a origem. É bom existir jornalismo tradicional. É fundamental. E, quando eu falo de jornalismo tradicional, eu não estou me referindo apenas ao que Globo, Folha e Estado publicam. Também é o caso da Agência Pública. A coisa do repórter que vai a campo, apura informações, conversa com pessoas, traz informação, assina aquela matéria. Você não escapa muito de ter que começar, em algum momento, a escolher quais são os veículos que você lê com frequência.
Leonardo Sakamoto: A mídia tradicional se furta de questionar o conteúdo da própria rede. Existe um processo de validação porque, querendo ou não, TV, jornal, rádio vão perdendo força, claro, na quantidade de informação que circula. Facebook, WhatsApp hoje, em determinados grupos de pessoas, têm uma presença muito maior que os grupos tradicionais. A mídia tradicional precisa olhar para a internet de uma forma mais crítica. Não só de uma forma “esse é meu futuro, lindo, maravilhoso” ou “esse é o inimigo para o qual eu preciso dar as costas”. Não, olhar de forma crítica e fazer fact-checking, fazer checagem de boato e vir a público. Os veículos estão fazendo isso um pouco mais, mas de forma tímida. Isso tem que ser feito de uma forma bem objetiva para mostrar para as pessoas e fazer circular. E eu acho que, se você está numa mesa de bar e vem um amigo e solta uma barbaridade, baseada numa informação que todo mundo sabe que é falsa, todo mundo dá risada e acabou, ele vai se sentir empoderado para continuar se informando daquele jeito. Se as pessoas que têm consciência dos processos se calam, elas são corresponsáveis pela perpetuação daquele processo. Então, se você consegue qualificar o debate público que é na mesa do bar, na feira, no boteco, no bar, na família, na ceia de natal, em qualquer lugar, você consegue qualificar aquilo e fazer com que a pessoa se sinta incomodada de estar absorvendo uma informação de fonte sem credibilidade.
Natalia Viana: Eu queria problematizar aqui qual foi o papel da imprensa nesse acirramento, no caso da crise brasileira atual. Queria falar do Globo, e obviamente minha pergunta é para você, Pedro. Ontem eu estava vendo um questionamento muito forte feito pelo Rafucko sobre uma manchete do Globo sobre uma manifestação em que 70 manifestantes foram presos e dizia que “70 vândalos foram presos” – era a manchete de capa. E o Rafucko argumentava que aquilo era ser ativista, aquilo era um julgamento de valor. Avaliando de uma maneira global, a cobertura do Globo do processo de impeachment da Dilma, você acha que essa cobertura foi ativista? Ela foi engajada?
Pedro Doria: Eu acho que foi uma cobertura noticiosa. Fui editor executivo do Globo entre março de 2011 e setembro do ano passado. Editor-executivo me bota no alto comando da redação. Eu não era o chefe, mas estava imediatamente abaixo do chefe. Boa parte deste trabalho, pelo menos até setembro do ano passado, estava sob minha responsabilidade. Agora, veja, O Globo tem vários colunistas. Colunistas com todo tipo de opinião, tanto à esquerda quanto à direita. Quando a gente está falando da cobertura, a gente não está falando da opinião dos colunistas. Tampouco estamos falando da opinião do jornal, que é aquilo que sai na página de editoriais e sobre a qual a redação não tem nenhum controle. O que a gente está falando é sobre o ritmo continuado de notícias. Eu não lembro do Globo ter publicado nenhuma barrigada, nenhuma notícia que se comprovasse incorreta ao final. Estivemos na luta cotidiana para conseguir furos, principalmente de Curitiba. E tivemos, principalmente na Folha e no Estado, imensos e importantes adversários, rivais nessa disputa. Agora, tem uma coisa que eu ouvi mais de uma vez, e que em alguns momentos mexe comigo emocionalmente mais do que outras, eu ouvi mais de uma vez do alto comando do PT, que era: “Cara, a gente chegou no governo, a gente é militante, o que é uma característica fundamental e marcante do PT, a gente precisa de um inimigo externo para manter a militância aguerrida”. E, a cada escândalo dentro do governo que surgia, era porque a imprensa estava querendo derrubar o governo. É a mesma imprensa que cobriu o Collor quando teve o impeachment dele. É a mesma imprensa que deu os furos a respeito, por exemplo, da compra de votos pelo PSDB, para a emenda da reeleição do Fernando Henrique Cardoso. É a mesma imprensa que já derrubou dois ministros do governo Temer. É a imprensa fazendo aquilo que a imprensa faz, que é descobrir bobagem que governante faz. Eu acho que O Globo publicou muito e continuará publicando, e é este o nosso trabalho.
Leonardo Sakamoto: Realmente a gente tem que fazer a separação entre as partes noticiosas dos veículos de comunicação e a parte opinativa. Então, se você me perguntar se concordo com os editoriais do Globo, do Estadão, da Folha, com relação ao processo de impeachment, eu vou falar que não. E acho que alguns editoriais, particularmente os do Estadão – achei que alguns não condiziam com a história do jornal no que diz respeito ao conteúdo, às formas de condução de certos raciocínios – foram editoriais ruins. O grande problema, e por isso que eu acho importante fazer essa análise, é que no modelo do jornalismo, por conta de mudanças no financiamento do jornalismo, a quantidade de conteúdo opinativo é muito maior que a quantidade de conteúdo narrativo. O New York Times tinha um para quatro textos de opinião em relação à reportagem, e hoje inverteu praticamente. A Folha tem mais de cem colunistas. Quer dizer, a quantidade de conteúdo opinativo é muito maior, em algumas edições de jornal, do que o conteúdo narrativo, pura e simplesmente. Então, isso gera um ruído, porque as pessoas acham que o jornal é a opinião dele. Não é, é a opinião das pessoas que estão publicando no jornal. E que as pessoas realmente não sabem fazer diferenciação entre um texto opinativo e um noticioso. O grande problema, a crise do jornalismo, não é que o jornalismo está morrendo, mas o modelo de negócio do jornalismo como a gente conhece hoje está sofrendo uma transformação gigante. Muitas vezes opinião é mais barata do que produzir conteúdo jornalístico.
Natalia Viana: Para quem não é jornalista, nunca foi jornalista ou trabalhou numa grande redação: como é que é que a opinião do jornal influencia ou não na notícia? Chega o dono lá e fala: “Olha, a gente é a favor, vamos todo mundo só cobrir coisa a favor”? Se vai sair um editorial, o cara no chão da fábrica sabe que vai sair?
Pedro Doria: Eu, no comando da redação, não tenho a mais vaga ideia do assunto do editorial do dia seguinte. É um outro grupo, que tem um responsável, o editor de opinião, que tem conversas com o dono do veículo. Isso vale para O Globo, isso vale para o Estado, isso vale para a Folha. Vale para qualquer grande jornal do Ocidente. Isso não permeia para a redação.
Leonardo Sakamoto: Eu acho que, por exemplo, eu posso ter coisas contra reportagens, por exemplo, da Veja, mas eu não quero que a Veja deixe de circular. Eu quero que o cenário brasileiro de mídia consiga produzir um contraponto à Veja. Ou seja, eu gosto da ideia de ter vozes diferentes, como na França. Você vai ter o Le Figaro, mas você tem o Libération. E aí você tem um panorama de mídia, passando pelo Le Monde, por outros veículos, em que as pessoas podem ler aquele tipo de análise ou aquele tipo de cara. Porque os jornais têm cara, os jornais têm voz, as revistas têm voz. O grande problema não é que determinados veículos tenham uma voz ou outra. O problema é a falta de pluralidade, de cores no espectro. Esse é o ponto. Há países no mundo – a França, por exemplo – que têm leis com relação a isso. Países da Escandinávia têm leis com relação a isso. Independentemente da opinião do segundo ou do terceiro colocado, é ter fomento a outros pontos de vista da sociedade para que eles também possam ter seus veículos de comunicação. Isso deveria ter no Brasil.
Claudia Antunes: Falando de polarização, a Folha com certeza é dos jornais mais plurais. Tem mais colunas de diferentes tendências e até sofre um pouco desse excesso de colunistas. Mas mesmo na Folha houve uma polêmica muito grande, não sei se vocês lembram, primeiro quando foi contratado o Reinaldo Azevedo, depois, agora mais recentemente, quando foi contratado o Kim Kataguiri. Porque são duas pessoas, assim como Rodrigo Constantino, que expressam, dentro da rede, essa polarização muito grande, agressiva. A gente deve incorporar essas vozes na imprensa tradicional ou não? Queria saber o que vocês acham disso.
Pedro Doria: Eu acho que a gente tem que incorporar todas as vozes que já são reconhecidas por parcelas do público da imprensa tradicional. Isso é o caso até do Kim. Eu acho que no caso dele, risadas à parte, tem injustiça porque, poxa, qual a idade do cara? Tem 19, 20 anos. Eu comecei a escrever com essa idade. E, para 19 anos, ele montou um movimento impressionante. Se esse cara fosse de esquerda, ninguém aqui estaria rindo. Eu não acho em nada absurdo que a Folha tenha oferecido para ele uma coluna.
Leonardo Sakamoto: Compartilho em partes com a sua opinião. Eu acho que não é absurdo a Folha ter dado [espaço para o Kim Kataguiri], mas acho que a Folha peca um pouco pelo excesso. Eu esqueci a frase da nova ombudsman, a Paula Cesarino, em relação ao próprio Reinaldo – que eu acho que é uma voz que precisa estar na Folha, ele tem seguidores, é influente. A Paula lembrou que, de vez em quando, o jornal peca exatamente pela sua opção, pelo excesso de pluralidade, porque o Reinaldo acabou falando que a cultura do estupro era um estandarte político, não era uma realidade necessariamente. Acho que, se a Folha tivesse mais recursos financeiros, teria menos espaço de opinião, ou deixaria isso mais relativo ao online e teria mais espaço para produção de reportagem. Acho que isso é bem consequência de um processo e também de uma tentativa da Folha de abraçar todas as correntes e visões.
Isac César: Eu tenho irmão mais novo, ele tem 15 anos, e sentei para conversar sobre o dia dele na escola. E ele me falou: “Isac, o que você acha de imposto? Eu vi na internet que imposto era roubo”. Aí eu falei: “Nossa, onde você viu isso? Quem foi o professor?”, e aí ele disse que tem esse e esse canais do YouTube onde tem um cara falando assim por 20 minutos, que imposto é roubo, que existe uma alternativa e essa alternativa seria, por exemplo, o anarcocapitalismo. Aqui se falou de educação para debate e educação para política. Qual seria a consequência de jovens de 13 ou 14 anos que têm como ídolos, ou até mesmo como referenciais para educação, essas pessoas, que não são ligadas a movimentos partidários, que possuem uma oratória demagógica e expõem sua opinião dando a cara a tapa, como se estivessem chamando para a briga?
Pedro Doria: Cara, seu irmão está sendo exposto à política, ele está começando a pensar. Foi provocado por alguma coisa ali, se mobilizou, já começou a te perguntar. Democracia está funcionando, está tudo certo.
Leonardo Sakamoto: Eu acho o seguinte: essa é uma fonte de informação a que ele teve acesso. O problema seria se ele tivesse acesso a essa única fonte de informação. Ele está na escola, ele está vendo TV, ele está vendo jornal, te fazendo perguntas. Se ele estivesse sozinho num quarto te fazendo perguntas que nem em Laranja Mecânica, aí eu ficaria preocupado e falaria para não soltar seu irmão sozinho, senão ele mataria alguém. Mas acho que ele está sob várias fontes. A escola é um bom lugar também. A gente precisa apostar mais na função da escola – não é dizer o que é certo, o que é errado. É mais dizer: “Você trouxe isso para a escola? Legal, vamos debater”. O problema não é ter ideologia. Ideologia todo mundo tem, como diria Paulo Freire. O problema é se é uma ideologia exclusiva ou excludente. Se você traz a pessoa para fazer parte deste mundo ou se você quer a morte desta outra pessoa.
Assista à entrevista na íntegra: