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Com base em levantamento da ONG Transparência Internacional, a Pública identificou 89 empresários investigados ou condenados pela Justiça em empresas controladas por offshores proprietárias de imóveis na cidade de São Paulo

Dados
22 de junho de 2017
12:54
Este artigo tem mais de 7 ano

Entre as 236 empresas proprietárias de imóveis em São Paulo controladas por offshores, reveladas em pesquisa de abril deste ano da ONG Transparência Internacional, a Pública identificou 89 empresários investigados ou condenados pela Justiça no Brasil. A maioria responde por crimes financeiros como lavagem de dinheiro e sonegação fiscal.

O investigado que detém a empresa com mais imóveis em nome de offshores é Manuel Seabra Suarez, irmão de Carlos Suarez, fundador da construtora OAS. Manuel é sócio da Suarez Habitacional Ltda. Na cidade de São Paulo, a empresa é dona de 101 propriedades, entre imóveis e vagas, com valor venal que soma quase R$ 29 milhões. O valor venal geralmente é menor do que o comercial.

Atualmente, a Suarez Habitacional Ltda. está cadastrada na Bahia, mas é controlada pela Telford Enterprises Inc, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, que teve como representante no Brasil o próprio Manuel. Empresas como essa, as chamadas “offshores”, são organizações jurídicas pouco transparentes, sediadas em países com baixa incidência tributária, conhecidos como paraísos fiscais.

Manuel Suarez foi denunciado em 2012 pelo Ministério Público como suspeito de participar de desvios de recursos da Prefeitura de São Manuel, interior do Estado de São Paulo. Segundo o MP, “o grupo se apropriou de R$ 1,46 milhão de recursos públicos da saúde no período de quatro meses”.

Ainda de acordo com os promotores, a ação apreendeu cerca de R$ 900 mil em dinheiro em poder do grupo investigado, além de veículo e bens de luxo, avaliados em R$ 500 mil. “Os bens foram tornados indisponíveis por ordem da Justiça, juntamente com imóveis pertencentes aos envolvidos, cujo valor ainda não foi apurado”, completa a nota publicada pela assessoria de imprensa do MP.

Outro empresário que entrou na mira da justiça é Marcos Augusto Henares Vilarinho, dono da St Martin’s Negócios e Participações. Em outubro de 2015, a sede da companhia foi alvo de busca e apreensão numa ação da Operação Zelotes, que investigava casos de corrupção no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

A St Martin’s é controlada pela offshore St Martin’s Lane, também das Ilhas Virgens Britânicas. Essa segunda pertence à Transglobal Corporate Services – cujo representante no Brasil também é Vilarinho. O Ministério Público pedia sua condenação por um suposto crime de extorsão, mas o empresário foi inocentado no início de 2016.

No levantamento encontramos também o nome de Enrico Picciotto, conhecido pela participação no “escândalo dos precatórios”. Ele é procurador da empresa Charlotte Investimentos S/A, outra com sede nas Ilhas Virgens Britânicas. Picciotto foi condenado a 15 anos de prisão.

Esses investigados representam offshores donas de imóveis nas regiões mais nobres de São Paulo, que é cenário de negociações milionárias, como a transação envolvendo o luxuoso Complexo JK. Essa façanha é do empresário Walter Torre Júnior, fundador da construtora WTorre e investigado na Operação Lava Jato.

Shopping JK Iguatemi é parte do Complexo JK, localizado no Itaim Bibi, área nobre de São Paulo (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

Negociação recorde de uma offshore

A venda de parte do Complexo JK para o Banco Santander rendeu R$ 1,06 bilhão à WTorre. Nunca se negociou tão alto um imóvel no Brasil, segundo um relatório de 2010 da empresa para a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima). Chamou atenção também o lucro obtido na operação.

O imóvel, antiga propriedade da Eletropaulo, foi adquirido pela WTorre em dezembro de 2006, por cerca de R$ 385 milhões. Com 60 mil metros quadrados, o terreno fica na zona sul, em uma das áreas mais nobres da cidade de São Paulo. Na época, a aquisição fez ferver o noticiário. “Novo shopping no esqueleto da Eletropaulo ameaça engolir a Daslu”, estampava a manchete do jornal O Estado de S. Paulo.

Apesar da repercussão, pouco se sabia que, para a Justiça, o negócio envolveu uma manobra fiscal irregular.

A Prefeitura de São Paulo descobriu uma complexa estrutura empresarial, de sucessivas operações, com a participação de duas empresas offshores com sede em paraísos fiscais. Com isso, a WTorre deixou de desembolsar R$ 7,7 milhões para recolhimento do Imposto de Transferência de Bens Imóveis (ITBI), valor que, segundo a prefeitura, deveria ser pago numa ação desse porte.

Depois de quatro anos, a Secretaria de Finanças de São Paulo concluiu que a WTorre mascarou a compra do imóvel para evitar o ITBI e a autuou por elisão fiscal.

Era o início de uma grande batalha que a construtora de Walter Torre enfrentaria no decorrer dos anos seguintes. E que pode estar prestes a chegar ao fim.

A prefeitura está de olho

As movimentações da WTorre na aquisição do complexo não configuram crime, mas despertaram a atenção das autoridades. O primeiro recado chegou aos sócios dois meses depois por meio de uma intimação da Secretaria de Finanças, que exigia documentação para comprovar a aquisição do imóvel.

A resposta da WTorre – no mesmo dia da intimação – foi surpreendente: “Walter Torre Junior Construtora Ltda. […] vem respeitosamente informar que não adquiriu o prédio situado na Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, onde está situada a loja Daslu, razão pela qual não há quaisquer documentos a serem apresentados”.

Embora publicamente assumisse a compra do terreno, a empresa negava o ato à prefeitura. A WTorre alegou que não houve uma operação de compra e venda do imóvel, mas sim a incorporação de uma empresa, dona do imóvel – o que justificaria, em sua visão, a ausência de recolhimento do ITBI na transação.

Até dezembro de 2006, o Complexo JK pertencia à construtora Ergi Empreendimentos Imobiliários. A Ergi havia incorporado o imóvel ao seu capital social. Essa é uma prática contábil que estabelece que determinado bem é “parte” da própria empresa.

Antes do negócio com a WTorre, os quotistas da Ergi eram o banco português BPN, com 20% de participação (R$ 3 milhões); a offshore Swiss Finance, com 80% (R$11,999 milhões); e João Lobo de Souza, que detinha a única outra quota que restava da Ergi. A empresa tinha um capital social de R$ 15 milhões.

No dia 7 de dezembro de 2006, a WTorre comprou as quotas do banco BPN e incorporou ainda outros R$ 254,8 milhões à Ergi – um acréscimo de quase 1.700% sobre o capital social da empresa. Assim, a WTorre passa a ser acionista majoritária, com 95,7% das ações. A participação da Swiss Finance, diluída após a injeção de capital da WTorre, passou a ser de apenas 4,3%.

No mesmo dia, entra em cena mais uma empresa offshore, a Venetian International Group. A WTorre criou essa empresa com o único propósito de avançar sobre as ações que lhe faltavam da Ergi e, consequentemente, do controle absoluto sobre o Complexo JK.

A Venetian seria uma empresa sem atividade e sem ativos, não fossem os R$ 94 milhões enviados do Brasil pela WTorre para adquirir a Swiss Finance de seus antigos controladores.

Com esse braço da operação finalizada, a WTorre encerrou as atividades das duas offshores, Venetian e Swiss Finance, e se tornou a única acionista da Ergi. A empresa adotaria o nome de seu novo controlador, WTorre Empreendimentos Imobiliários.

Decisão na Justiça

Segundo a WTorre, todas as operações foram devidamente declaradas aos órgãos competentes. A construtora acredita que a operação de aquisição do Complexo JK, através da antiga Ergi, foi inteiramente feita de acordo com leis do país, razão pela qual decidiu acionar o município de São Paulo na Justiça, pedindo a anulação do débito fiscal.

Mas a sentença do juiz Fernando Dias, publicada em 22 de janeiro de 2017, expõe uma visão bem diferente.

“Creio que o Fisco produziu evidências incontestáveis, na esfera administrativa e em juízo, de que efetivamente houve sucessivas reorganizações societárias de diversas sociedades empresariais, algumas, inclusive, com sede no exterior e em paraíso fiscal, que visaram mascarar, dissimular a efetiva aquisição imobiliária e escapar do pagamento do ITBI.”

Segundo a prefeitura, a WTorre ainda não quitou a dívida, estabelecida em R$ 11,5 milhões, dos quais R$ 3,8 milhões são referentes à multa pela operação. A construtora ainda pode recorrer a instâncias superiores da Justiça para reverter a decisão.

Segundo juiz, WTorre adquiriu o Complexo JK por meio de “sucessivas reorganizações societárias” (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

Offshores avançam sobre o mercado imobiliário

O levantamento da ONG Transparência Internacional (clique aqui para ler) revelou que a operação entre Ergi e WTorre, que envolve offshores no mercado imobiliário, não é um caso isolado. Segundo a pesquisa, mais de 3.400 imóveis da cidade de São Paulo pertencem a organizações que são ou foram controladas por empresas sediadas em paraísos fiscais.

De acordo com o relatório, o valor somado desses imóveis chega a quase R$ 9 bilhões. O Complexo JK, agora da WTorre, aparece no estudo como propriedade da empresa Swiss Finance, sediada em Wyoming, EUA. Esse estado americano é considerado um dos mais novos paraísos fiscais do mundo.

O estudo foi baseado nos dados do IPTU, que eram guardados sob sigilo pela prefeitura. Só se tornaram públicos em 2016 por determinação do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad.

A equipe da ONG cruzou as informações do IPTU com os cadastros de empresas na Junta Comercial de São Paulo e descobriu 236 empresas que são ou foram controladas por offshores e proprietárias de imóveis na cidade. Em geral, é difícil identificar os reais proprietários de offshores, que controlam parte significativa do mercado imobiliário de luxo da maior metrópole do país.

Sob controle de offshores anônimas, essas empresas têm 67 imóveis na avenida Faria Lima, no valor de R$ 131 milhões; na avenida Paulista, outros 195, que somam R$ 120 milhões. Entre as avenidas Chucri Zaidan e Berrini, estão 820 propriedades que, juntas, são avaliadas em R$ 1,1 bilhão. Já o Complexo JK, sozinho, vale R$ 2,8 bilhões. A Transparência Internacional ainda lembra que o estudo apresenta os valores venais dos imóveis.

O uso de offshores é permitido pela lei. “Várias empresas que operam em nível internacional têm a necessidade de ter uma offshore para centralizar pagamento, por exemplo. Nada disso é crime, desde que seja tudo declarado e os tributos, pagos”, avalia a advogada e professora de direito na Fundação Getulio Vargas (FGV) Heloísa Estellita. Mas ela acredita que o grande número de empresas controladas por offshores tem de ser visto como um sinal de alerta. “Sabemos que têm offshores que são donas, mas não sabemos se os donos estão declarando tudo isso. Você consegue esconder quem é o beneficiário final [dessas empresas].”

Para o presidente do Conselho Regional dos Corretores de Imóveis de SP, José Augusto Viana Neto, o uso de offshores toca numa questão delicada desse mercado – a falta de transparência. “Se você não consegue definir quem detém o direito jurídico sobre a propriedade, é claro que é um problema sério. A autoridade fica sem saber a quem fiscalizar e de que forma fiscalizar”, avalia.

A ausência de informações sobre o setor, segundo Viana Neto, não é problemática apenas em relação à identificação dos proprietários. “Você comercializa um imóvel por determinado valor, mas as partes podem escriturar essa transação pelo valor que acharem conveniente. A falta de um banco de dados que dê um histórico de negociação desses imóveis, que crie um antecedente que você possa consultar, facilita demais esse tipo de irregularidade, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro…”

Offshores lavam dinheiro

As offshores podem exercer um papel importante na organização da estrutura de um crime. Em 2010, um estudo do Banco Mundial revelou que 75% dos 150 casos de corrupção analisados ao redor do mundo tiveram o envolvimento desse tipo de empresa. Na prática criminosa, uma de suas principais funções é auxiliar na reinserção do dinheiro ilícito na economia formal, ou seja, na lavagem do dinheiro.

O caso envolvendo o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, condenado pela Lava Jato, é um exemplo claro: de acordo com a sentença, o executivo usou uma offshore para esconder a compra de um imóvel de R$ 7,5 milhões pago com dinheiro de propina.

Nessa operação, a offshore possibilitou o usufruto do produto final do crime de corrupção. “A maior parte dos crimes tem um objetivo financeiro. Ele quer usar o dinheiro. Se você impede o cara de usar o dinheiro, ele vai fazer outra coisa”, sugere Gustavo Rodrigues, presidente do Conselho de Controle sobre Atividades Financeiras, o Coaf. Heloísa resume: “A finalidade de toda a legislação antilavagem é fazer com que o criminoso sente em cima do dinheiro dele e não tenha nada o que fazer com aquilo”.

É com esse objetivo que o Coaf obriga profissionais de setores econômicos visados para lavagem de dinheiro a reportar atividades suspeitas que presenciarem. O mercado imobiliário é um destes setores – só em 2017, já reportou ao Coaf mais de 1.400 operações suspeitas. “Nós temos a atribuição da aplicação da lei de lavagem de dinheiro sobre os nossos profissionais, mas não temos acesso nem informação sobre as partes contratantes”, diz Viana Neto, do Creci. Ou seja, em transações imobiliárias feitas diretamente nos cartórios – sem intermediação de corretores –, o Coaf fica sem saber de movimentações que possam indicar práticas ilegais.

Processo semelhante acontece com a advocacia. O Coaf estabelece normas antilavagem de dinheiro apenas para setores que não têm órgão regulatório próprio. No caso da advocacia, esse órgão é a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que não exige que as atividades de seus profissionais sejam reportadas ao Coaf.

“Tanto que começaram a pagar propina por meio de escritórios de advocacia. A Lava Jato está mostrando isso. Por que por onde fosse pagar iria bater em pessoas sujeitas à lei de lavagem. Então começaram a usar setores não regulados. Advocacia, empresa de publicidade e marketing, que não têm obrigação de reportar”, alerta Heloísa.
De fato, dos 150 casos de corrupção analisados pelo Banco Mundial, 72 tiveram participação de algum intermediário, sendo 32 advogados. Nesses esquemas foram criadas mais de 800 empresas, que passaram por países como Panamá, Bahamas, Ilhas Cayman e Suíça. “Quem quer lavar vai sempre procurar um método mais sofisticado. Quanto mais sofisticado, mais gente sofisticada você precisa”, conclui Heloísa.

Respostas à Pública

A reportagem entrou em contato com Marcos Augusto Henares Vilarinho. Ele afirma que não é proprietário da offshore St Martin’s Lane, é apenas procurador, e que portanto não pode falar em nome da empresa. Ressaltou ainda sua absolvição na denúncia sobre corrupção no Carf.

Falamos também com o advogado de Manuel Seabra Suarez, Luiz Eduardo Menezes Serra Netto. Ele afirmou que não há nenhuma condenação contra seu cliente, mas que o processo ainda corre na Justiça. Pedimos ainda para conversar com Manuel sobre a Suarez Habitacional. O advogado prometeu falar com Manuel e nos retornar. Não retornou até o fechamento da reportagem.

Entramos em contato com o advogado de Enrico Picciotto e Francisco Queiroz. Ao advogado de Picciotto, pedimos esclarecimentos sobre a Charlotte Investimentos. Não houve retorno até o fechamento da reportagem.

À assessoria da WTorre perguntamos se a empresa já quitou as dívidas com a prefeitura e se pretende recorrer da decisão da Justiça. Em nota, a assessoria afirma que “adquiriu uma empresa 100% nacional em atividade, com contratos e funcionários” e que “tal empresa pertenceu anteriormente a um grupo português, o qual também era acionista da Eletropaulo”. A assessoria afirma ainda que não vai comentar processos em andamento.

*Colaborou Fernando Chrysostomo

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