A província de Jujuy, no norte da Argentina, fronteira com a Bolívia, é a sede da organização social Tupac Amaru, que durante dez anos – até 2015 – foi a maior do país. O nome do líder indígena peruano foi escolhido para ressaltar um passado indígena apagado não apenas na região, como em todo o país. Os membros de “la Tupac”, como é chamada em Jujuy, não são todos indígenas, mas fazem parte da parcela mais pobre da população, e boa parte deles tem a pele mais escura do que se vê em geral na Argentina.
A Tupac nasceu para lutar contra a pobreza e de início se tornou conhecida pela distribuição de “copos de leite” – para que as crianças tivessem ao menos um copo de leite por dia. Era o começo do milênio, quando milhões de argentinos foram jogados na pobreza em consequência da crise econômica dos anos 1990. Em 15 anos, a Tupac obteve conquistas que impressionam os visitantes. São oito bairros em várias localidades de Jujuy, construídos no mesmo padrão por cooperativas de trabalhadores. Todos com casinhas de 55 metros quadrados e um tanque de água enfeitado com as imagens de Tupac Amaru, Che Guevara e Evita Perón.
A Tupac construiu 8000 casas – mais rápido e com menor custo do que as empresas de construção tradicionais. Para isso utilizou a materia-prima produzida em suas próprias metalúrgica e fábrica de blocos de cimento. Em reconhecimento a esse trabalho, os ex-presidentes Kirchner (de 2003 a 2015) a tornaram a principal beneficiária do programa nacional de habitação social do norte do país.
“Lembro que trabalhamos dia e noite na construção das primeiras 200 casas. Nós, mulheres, não sabíamos construir, mas aprendemos tão bem e rapidamente quanto os homens. Quando Néstor Kirchner veio inaugurar as casas, estávamos todos ansiosos. Disso dependia ter mais trabalho”, diz com um sorriso Julia, que construiu sua casa no primeiro bairro da Tupac, o Alto Comedero.
Com a garantia de apoio institucional, a organização não se limitou a construir casas. Como faltavam os serviços básicos para a população, eles ergueram e puseram em funcionamento postos de saúde, escolas e centros de formação profissional, culturais e esportivos. Preocuparam-se também com a geração de renda, principalmente para as mulheres, e abriram padarias, restaurantes, ateliês de cerâmica e uma cooperativa têxtil.
“Queríamos saúde em primeiro lugar porque não tínhamos acesso a hospitais por causa da distância – isso sem falar na discriminação que sofríamos por sermos pobres”, conta Julia.
Acabar com essa discriminação sempre foi a obsessão da mulher que idealizou a Tupac Amaru: Milagro Sala, hoje com 54 anos. Milagro foi adotada bebê por uma família de classe média branca de San Salvador de Jujuy, capital da província. Mas de pele escura, traços indígenas e cabelo liso, sofria com o racismo quando jovem. Ao contrário de seus irmãos, foi barrada na entrada das piscinas da cidade por causa da cor de sua pele. Por isso, a Tupac construiu 21 piscinas nos bairros pobres e um enorme parque aquático no bairro Alto Comedero, todos com entrada gratuita.
Hoje esse parque é símbolo da luta entre a Tupac e o atual governo da província de Jujuy. Como aconteceu com a maioria das instalações da Tupac nos últimos dois anos, o parque aquático foi saqueado e suas 12 bombas de água, roubadas. Em novembro, as máquinas do governo chegaram para reabastecer o parque por causa da proximidade do verão. “Não falta fazer muita coisa, apenas alguns consertos e as bombas de água, para voltar a funcionar”, explica o encarregado da obra. Não se sabe, porém, se o parque continuará gratuito para o público, já que o logo da Tupac Amaru foi apagado dessa obra emblemática. O governo já se apossou da escola construída e administrada pela organização ao lado do parque. Apropriou-se também da cooperativa têxtil, onde um policial nos impede de entrar mesmo com a presença de Julia, que criou e dirigiu essa cooperativa durante anos. Da cooperativa de fabricação de blocos de cimento, roubaram todas as máquinas. A metalúrgica está sendo vigiada dia e noite por membros da Tupac para não ter o mesmo fim. A algumas quadras, a clínica de saúde também foi totalmente saqueada; não sobrou nada, nem as portas. Quem é responsável pelos saques? Impossível saber, mas esses fatos parecem estar ligados à perseguição que sofre a organização desde que Mauricio Macri subiu ao poder.
Em 2015, o senador Gerardo Morales, apoiado pelo governo de Macri, assumiu o governo de Jujuy. Uma de suas bandeiras era acabar com a Tupac Amaru. Em janeiro de 2016, ele mandou prender Milagro Sala quando um acampamento da Tupac Amaru na frente da sede do governo completava 50 dias. As mobilizações das cooperativas sempre existiram, seja para obter mais recursos, seja para apoiar as lutas nacionais pelo aumento do salário mínimo ou pela prisão dos responsáveis por crimes da ditadura militar. Nesse acampamento, que começou em dezembro de 2015, a Tupac pedia uma reunião com o recém-eleito Morales para garantir o funcionamento das cooperativas de Jujuy, já que o governador as havia ameaçado com corte de recursos. A reunião nunca aconteceu e aos poucos as cooperativas foram fechando as portas. Na Tupac, 5 mil trabalhadores ficaram sem salário. No dia 14 de janeiro, o governador havia dado um ultimato às cooperativas que se manifestavam: as que não se retirassem do protesto seriam “excluídas de todo tipo de benefício ou programa social, adjudicação de lote ou casa, se financiados com recursos provinciais ou nacionais”. Milagro Sala foi detida dois dias depois acusada de “instigação a cometer delitos, tumultos e sedição” por causa do acampamento. Logo acrescentaram às acusações a prática de “lesão e danos a propriedade privada” por causa de um protesto ocorrido em 2009 contra o então senador Gerardo Morales em uma conferência pública. O protesto era um escracho – como depois se tornou conhecido no Brasil –, uma denúncia contra uma pessoa em um lugar público – às vezes acompanhada de “ovadas”.
No dia seguinte ao escracho, em cadeia nacional de TV, o então senador acusou Milagro Sala, “que tem linha direta com o governo federal [Cristina Kirchner] e nos mantém reféns desse tipo de atitude”. Mesmo com a comprovação de que Milagro não participou do escracho nesse dia e de que a única testemunha que a apontou como autora do protesto saiu de uma das organizações sociais para ocupar um cargo no governo de Jujuy, Milagro Sala foi condenada, como “instigadora do escracho”, a três anos de prisão; sentença confirmada em segunda instância em junho de 2017 – ainda com apelação não julgada na Corte Suprema. Em fevereiro de 2016, a líder social foi acusada de “encobrimento” de um tiroteio em 2007 que feriu uma menina e tinha como objetivo matar um líder da Tupac Amaru. Ao ser detido em outubro de 2016, o autor dos tiros, Jorge Páez, fugitivo da polícia por vários anos, acusou Milagro de ser a “autora intelectual do ataque”. Depois dessa declaração, foi colocado em liberdade sem acusações (o caso foi suspenso), e ela foi denunciada por “tentativa de homicídio qualificado por dinheiro ou promessa de remuneração”. Esse caso, no entanto, não foi a julgamento, mas Milagro passou a ser acusada de ameaçar membros do Tupac Amaru mesmo já estando na prisão.
A acusação que mais pesa contra ela, porém, é de “associação ilícita agravada, fraude e prejuízo contra a administração pública”. Nas palavras do governador Morales, Milagro “roubou milhões” e “ é violenta”, afirmação repetida inúmeras vezes nos meios de comunicação, mas até agora não comprovada. “Sempre tentaram ratificar essas afirmações com denúncias e ameaças. Mas todas elas acabam caindo porque não têm nenhuma sustentação”, diz o seu advogado, Luis Paz.
Em agosto de 2016, o Grupo de Trabalho de Detenções Arbitrárias da ONU considerou arbitrária sua prisão, assim como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch. As organizações de direitos humanos denunciaram também a perseguição a outros membros da Tupac – atualmente seis deles estão presos –, assim como as más condições carcerárias. Em dezembro passado, a pedido da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Suprema obrigou a Justiça local a transferir imediatamente Milagro para prisão domiciliar. Uma semana depois, porém, ela foi levada a uma casa de campo, a 30 quilômetros de seu domicílio, com câmeras de segurança, cercas e vigilância policial armada 24 horas por dia. “O translado para essa casa é ilegal, assim como a presença policial. É mais uma irregularidade a se somar a todas já conhecidas”, diz Luis Paz, por sua vez denunciado pela Justiça de Jujuy por “ameaça coativa” depois de uma audiência do caso Sala.
É o marido de Milagro, Raúl Noro, que nos recebe, atrás das grades da entrada da casa onde ela está, a quem não podemos visitar. Indignado, ele considera uma afronta que “uma lutadora social esteja guardada como uma narcotraficante perigosa enquanto, na Argentina, todos os militares envolvidos com crimes lesa-humanidade, que mataram, violaram, torturaram, estão em seus domicílios verdadeiros recebendo quem queiram”. Para Noelia Garone, advogada da área de direitos humanos da Anistia Internacional da Argentina, “se vê claramente nesse processo uma perseguição política contra ela e contra sua organização”.
Em San Salvador de Jujuy, sabe-se que a Tupac incomodou muito três grandes atores regionais: os poderes econômico, político e religioso (católico). As empresas de construção privadas perderam a metade de seu trabalho com o surgimento das cooperativas. “Mais ou menos 50% do orçamento do governo federal para a construção de habitações sociais passou a se destinar às cooperativas depois do surgimento da Tupac”, explica Luis Paz. Além disso, baixando o custo das casas, as cooperativas construíram os equipamentos sociais com os mesmos recursos, competindo de forma agressiva com o setor de construção tradicional.
Em 2013, a Tupac Amaru decidiu em assembleia criar um partido político na província, o Partido por la Soberanía Popular, que obteve 12% dos votos na eleição de deputados estaduais no mesmo ano e se tornou a terceira força política da região, desequilibrando a partilha de poder entre radicais e peronistas que vigorava havia 30 anos. Milagro Sala foi eleita deputada de Jujuy e, em 2015, deputada do Parlasul (Parlamento do Mercosul). “Romper o bipartidismo na província foi um feito histórico que mostrou o poder conquistado pela Tupac. E foi por isso que criaram essa história de mulher violenta e perigosa que teria que ser detida a qualquer custo. Milagro abriu demasiado espaço aos ‘negros’, como os mais pobres são chamados aqui por uma questão de cor de pele. E valorizou a cultura indígena, o que foi visto como um desafeto pela Igreja tradicional”, diz o deputado Juan Manuel Esquivel, eleito pelo Partido por la Soberanía Popular.
De fato, ao lado do parque aquático da Tupac há uma pequena réplica do antigo templo de Kalasasaya, na Bolívia, onde se realizaram as cerimônias de posse dos três mandatos do presidente boliviano Evo Morales. Essa réplica do templo no bairro Alto Comedero foi palco de várias cerimônias indígenas, em particular o Inti Raymi, o Festival Incaico do Sol, que se celebra em 21 de junho. Vídeos na internet mostram uma multidão participando da cerimônia em Alto Comedero com as bandeiras da Tupac Amaru. Como ocorreu em todas as instalações da Tupac, o templo foi depredado e as esculturas, quebradas. No mesmo bairro, a Tupac construiu uma igreja católica.
O jornalista e defensor dos direitos humanos Horacio Verbitsky, conta no livro La libertad no es un Milagro (Editorial Planeta) que Milagro Sala teve vários conflitos com a Igreja Católica local, entre eles por ter decidido casar-se de acordo com os rituais indígenas. Segundo Verbitsky, Milagro Sala fez vários gestos para não entrar em conflito com os religiosos, como a construção da igreja no mesmo bairro do templo. Ao bispo de Jujuy, ela havia dito: “Eu construo a igreja, mas vocês trazem os fiéis”. A igreja não foi tocada pelos saqueadores. Como por milagre está intacta – mas vazia.