Um grupo de apenas 189 mulheres consome mensalmente mais de R$ 3 milhões do governo federal – um gasto de R$ 36 milhões por ano. Os pagamentos, todos vitalícios, são destinados a viúvas e filhas de 142 magistrados federais falecidos que ocuparam altos cargos no Judiciário brasileiro, como ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Superior Tribunal Militar (STM), graças a uma lei do século 19.
Um levantamento inédito feito pela Pública revelou que as dez maiores pensões receberam em janeiro de 2018 valores brutos acima ou iguais ao teto atual dos salários dos ministros do Supremo, de R$ 33.763. Entre elas estão parentes de quatro ministros e dois juízes empossados durante a ditadura militar (1964-1985), três ministros do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e um empossado durante o mandato de Sarney (1985-1990).
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A maior das pensões é paga a América Eloísa Ferreira Muñoz, viúva de Pedro Soares Muñoz, ex-ministro do STF empossado em 1977 pelo general Ernesto Geisel durante o regime militar. Nascido no Rio Grande do Sul, Muñoz se aposentou em 1984 e faleceu há 28 anos, deixando desde então o direito à pensão vitalícia para sua ex-esposa. Em janeiro de 2018, o valor bruto pago pelo governo brasileiro a América foi de R$ 79 mil.
Procurado pela Pública, o advogado que representou América na ação para manter a pensão, Felipe Neri, informou que o valor foi reconhecido pelo STF como legal. Neri ainda ressaltou que o falecido contribuiu em vida para a pensão da esposa, ainda que o valor pago ao longo dos quase 30 anos necessite ser complementado com recursos do governo.
O segundo valor mais alto pago em janeiro é referente a um juiz togado também do Rio Grande do Sul, Anito Catarino Soler. O magistrado chegou a receber aposentadoria por 37 anos e, após falecer em 2007, conferiu a pensão vitalícia a Diamelia Carvalho Soler. O valor bruto pago à pensionista em janeiro foi de R$ 56 mil.
Entre os maiores pagamentos, há pensões de ex-magistrados mortos há 40 anos ou mais. É o caso de Abner Carneiro Leão de Vasconcellos, falecido em 1972. Convocado ao STF oito vezes entre os anos de 1948 e 1954, deixou uma viúva e duas filhas – apenas uma delas recebe pensão atualmente, Maria Ayla Furtado de Vasconcelos, no valor de R$ 33,7 mil brutos.
É a mesma situação de José Geraldo Rodrigues de Alckmin, morto em 1978, tio do atual governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). José Geraldo foi nomeado ministro do STF pelo ex-presidente militar Emílio Garrastazu Médici e deixou a pensão vitalícia à sua filha, Maria Lúcia Rangel de Alckmin. Ela recebe a pensão até hoje graças a uma liminar deferida pelo ministro do STF Edson Fachin no ano passado. Em janeiro, recebeu R$ 33,7 brutos.
Procurada pela reportagem, Maria Rangel de Alckmin optou por não comentar a pensão.
A Pública apurou que há situações nas quais um ex-magistrado deixou quatro pensões diferentes na mesma família. Foi assim com ex-presidente da Junta de Conciliação de Cruz Alta (RS), Otto Brodt Filho. Após ter recebido aposentadoria por 14 anos, Brodt deixou pensão vitalícia a quatro filhas há 29 anos. Juntas, Cynthia, Patrícia, Priscila e Vanessa Brodt Martins receberam R$ 28,9 mil brutos em janeiro.
O menor valor desembolsado pelo governo é de R$ 3 mil, pagos a três familiares de João Luiz Toralles Leite, ex-juiz togado da Junta de Conciliação e Julgamento de Passo Fundo (RS). Juntas, Maria Luiza Luaqim Leite, Louise e Anne Louise de Toralles receberam R$ 9 mil brutos da Fazenda.
Louise de Toralles respondeu à reportagem que não deseja comentar sobre a pensão e informou que sua irmã, Anne Louise, não reside no Brasil.
Durante uma semana, a Pública tentou entrar em contato com todas as demais pensionistas citadas na reportagem por telefone, e-mail ou redes sociais. Na maioria dos casos, não recebeu retorno.
Beneficiárias de Montepio da Fazenda
Pensões surgiram no século 19
Todas as 189 pensões de viúvas e filhas de ex-membros do alto escalão do Judiciário Federal são pagas pelo Ministério da Fazenda e compõem um tipo especial de pensão chamada de Montepio Civil, instituída nos primeiros anos da República Velha.
O Montepio surgiu em 31 de outubro de 1890, na recém-proclamada “República dos Estados Unidos do Brazil” – na época, se escrevia com “z” –, quando o presidente militar Manuel Deodoro da Fonseca publicou o Decreto 942-A. O ato criou o Montepio Obrigatório dos Empregados do Ministério da Fazenda, uma forma rudimentar de previdência de funcionários públicos que atendia apenas aos servidores da Fazenda. A lei estabeleceu que familiares de funcionários tinham direito a uma pensão de 50% do rendimento do falecido.
Ao longo de mais cem anos, o Montepio foi suspenso, retomado e reformulado por, ao menos, 15 decretos e leis que incluíram no sistema cargos de alto escalão de magistrados federais, como juízes da Justiça Militar, do Trabalho e do Tribunal de Contas, auditores e desembargadores.
Nas últimas versões do Montepio, para garantir a pensão, os magistrados deveriam contribuir em vida com 4% do rendimento mensal, sem tempo mínimo de contribuição. Já o valor da pensão, sempre vitalícia para viúvas e filhas solteiras sem empregos públicos, passou a 60% dos rendimentos do falecido.
Apenas em 2010, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) entendeu que o Montepio era incompatível com a Constituição de 1988 e submeteu a questão à Advocacia-Geral da União (AGU). Em 2012, a AGU se pronunciou contrária à continuação do Montepio, impedindo novas adesões, mas mantendo os pagamentos a quem já tivesse obtido o direito.
Briga nos Tribunais pela herança
A decisão, contudo, foi questionada por parentes de ex-magistrados. Por exemplo: Fernanda e Flávia de Colla Furquim, filhas do desembargador Luiz Dória Furquim, morto em 2013, recorreram na Justiça pelo direito a receber pensão vitalícia, afirmando tratar-se de direito adquirido e reforçando que o desembargador contribuiu em vida com o Montepio. Em maio de 2014, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) deu sentença favorável às filhas, concordando com a legitimidade das contribuições feitas pelo ex-magistrado. Atualmente, Fernanda e Flávia recebem juntas R$ 18 mil brutos.
Já o Tribunal de Contas da União (TCU) vem considerado ilegais pensões a filhas solteiras caso a beneficiada não comprove dependência financeira. Isso impediria, por exemplo, que filhas de ex-ministros que tenham empregos recebessem a pensão.
Maria Lúcia de Alckmin, prima de primeiro grau do governador de São Paulo, recorreu ao STF em 2017, após sua pensão ter sido considerada ilegal pelo TCU. A pensionista era professora celetista do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
Em dezembro de 2017, o ministro Edson Fachin deferiu liminar suspendendo a decisão do TCU e mantendo os pagamentos à filha do ex-ministro. Fachin argumentou que “o exercício de atividade na iniciativa privada, pela pensionista solteira maior de 21 anos, não é condição que obsta a concessão e manutenção da pensão”, visto que o Montepio previa cessão apenas para empregadas no setor público.
A relação das viúvas e filhas solteiras beneficiadas pelo Montepio não está disponível no site do Ministério da Fazenda e foi obtida pela reportagem após solicitação à assessoria, sem informar valores líquidos e desde quando cada pensionista recebe os pagamentos. A listagem também não está publicada no Portal da Transparência, mantido pela Controladoria-Geral da União (CGU). À Pública, a CGU informou que o portal dispõe apenas de informações sobre servidores ativos e que não inclui dados sobre servidores aposentados, pensionistas ou instituidores de pensão, ainda que pagos pela Fazenda.
Segundo o economista Valdemir Pires, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é preciso ainda mais transparência para que a sociedade possa debater quais reformas podem ser realizadas. “Mais importante que saber que ele [o custo do Judiciário] é alto e que é maior do que outros países, é preciso detalhar esses gastos. Quanto custam as pensões? Quanto as pessoas recebem? Quanto per capita cabe a cada uma dessas pessoas? Uma viúva de um juiz pode estar recebendo há 30 anos R$ 50 mil, R$ 70 mil. É um volume que a sociedade precisa saber”, pondera.