O camisa 10 dominou a bola com estilo no meio de campo. Loiro, magro e esguio, com boa vontade lembraria Zico em início de carreira, não fosse a falta de pontaria na hora de bater faltas. Avançou em direção à grande área tentando controlar a bola no campo quase sem grama, muitas pedras e algumas cápsulas de munição para AK-47 jogadas entre as quatro linhas. Passou pelo primeiro com um sutil jogo de corpo e um leve toque com o pé esquerdo. Retomou o domínio com a perna direita e levantou a cabeça em busca de algum jogador bem colocado para fazer o lançamento. O ataque se movimentou e dois jogadores do time de Tabka se posicionaram para receber a bola. Um passe bem dado era só o que faltava. A torcida se animou, o técnico a incentivar com ininterruptos “bravo, bravo” e, no banco de reservas, os colegas gritavam: “Vai Zizou, vai Zizou, toca pro Mahmud!”.
Não deu tempo.
Quando se preparava para fazer o passe, um adversário o colheu por trás. Haleb Kassin, conhecido por aqui como o Zizou do Eufrates, em clara alusão ao ex-jogador francês e hoje técnico do Real Madrid, Zinedine Zidane, caiu teatralmente, aos berros. Estava sendo caçado pela defesa do time de Manbij desde o início da partida. Era a terceira falta seguida que sofria. Técnico, comissão, jogadores e alguns torcedores à beira do campo invadiram o gramado. Gritam daqui, berram dali, acusações mútuas de favorecimento, empurrões e algumas cusparadas no chão. Soldados armados com rifles AK-47 entraram em campo para acalmar a situação. Um deles engatilhou a arma, dando a entender que faria disparos para o alto. Foi contido pelo superior.
A confusão, que parecia insolúvel, de repente se foi. O jogo recomeçou e terminou num zero a zero entre Tabqa e Manbij, duas cidades às margens do Eufrates que estiveram sob o controle do Estado Islâmico até pouco tempo. “O pessoal está com muita vontade, sabe? Muito tempo sem jogar e esse é o primeiro campeonato. É importante, então esse tipo de coisa acontece, mas não é nada, não, é só vontade, só futebol”, diz Ibrahim Nadjin, o chefe do departamento de Esportes das Forças Democráticas Sírias, um aglomerado de milícias curdas e árabes aglutinadas pelos Estados Unidos para combater o Estado Islâmico no norte da Síria.
Após quatro anos de proibição, esta é a primeira vez, desde a expulsão do Estado Islâmico, que jogos de futebol são disputados no Estádio de Raqqa, a principal prisão do “califado”, centro de torturas e execução do “califado”. Durante todo esse tempo, os moradores dessa região, apaixonados por bola, tiveram de assistir escondidos ao clássico entre Real Madrid e Barcelona, a partida de futebol que desfaz amizades, causa brigas de morte e une corações e mentes por aqui. “Ainda estamos aprendendo a jogar de novo. Foi muito tempo sem bola, estamos nos readaptando”, explica Kassin, o Zizou do Eufrates, enquanto é puxado por Shahoud Zaer, de 47 anos, técnico do Tabqa. “Me desculpe, ele precisa descansar para o segundo tempo”, diz, encerrando a breve entrevista de seu craque e capitão.
Ao longo de uma semana, no final de março quatro times das principais cidades às margens do Eufrates se enfrentaram no primeiro de dois quadrangulares. Manbij, Raqqa, Tabqa e Der Razor disputavam o título de melhor equipe do Eufrates. O vencedor teria o direito de jogar contra os campeões de torneios semelhantes em regiões controladas pelas milícias apoiadas pelos Estados Unidos no norte e nordeste da Síria. A região, dominada pelo Estado Islâmico até o ano passado, está fora do controle de Damasco há quase seis anos.
A disputa do campeonato no Estádio de Raqqa é simbólica. Muitos dos que estavam em campo nesses últimos dias de março estiveram presos aqui. Alguns foram torturados por meses, outros viram amigos serem mortos. Todos têm lembranças de experiências ou histórias relacionadas a esse lugar que gostariam de esquecer. Poucos relatam abertamente o que passaram nos vestiários transformados em celas desse estádio.
Qis Abdulah, de 35 anos, é goleiro do time de Raqqa e, quando não está jogando, faz às vezes de juiz. Ele e quatro amigos do time desafiaram as ordens de não jogar futebol e foram pegos batendo bola no quintal da casa de um deles. Com eles foram encontrados também cigarros, radicalmente proibidos pelo Exército Islâmico. Todos foram para a cadeia. Abdulah diz que nada aconteceu com ele. Mas dos quatro colegas três tiveram um destino diferente. “Iniciaram uma investigação e descobriram que eles estavam passando informações para os americanos. Cortaram a cabeça do nosso antigo técnico, de um lateral e de um meio de campo”, conta com naturalidade. “Eu e meu amigo recebemos apenas uma advertência e fomos soltos. Estávamos com sorte”, diz rindo.
Seis meses após a saída do Estado Islâmico daqui, o Estádio de Raqqa ainda guarda as marcas do papel que desempenhou ao longo do reinado de terror dos jihadistas. No subsolo, as celas permanecem quase intactas. Nas paredes, diversos desenhos, textos e mensagens dos prisioneiros. Várias delas estão escritas em russo, algumas em turco e até em inglês. Em uma das solitárias, um prisioneiro fez questão de marcar na parede a direção de Meca para fazer suas orações diárias. Bandeiras do Estado Islâmico estão desenhadas em toda parte, como se os prisioneiros quisessem mostrar aos seus captores que eram tão fiéis ao califado quanto eles.
Ismail Wally, de 53 anos, é o atual técnico do time de Raqqa. Ouviu com atenção os relatos de seu goleiro. Enquanto Qis Abdulah relatava sua sorte, manteve-se quieto. Depois, me disse em particular: “Ele está mentindo, ninguém que esteve aqui saiu ileso, algo de ruim se passou”. Wally não foi preso, mas seu filho sim. Acusado de ajudar uma escrava sexual da minoria religiosa yazidi a escapar, ficou detido na cadeia do estádio por um longo período. “Foi torturado como um animal. Todos foram torturados aqui. Eles tinham prazer em fazer isso, em especial os estrangeiros.” Wally parece carregar tristeza dentro de si. Olhar sempre baixo, pouco sorriso, rosto cansado. Envolvido com futebol há 37 anos, ele se diz feliz em voltar ao Estádio de Raqqa para jogar futebol. Mas não consegue descer aos vestiários. Os relatos do filho, que ao final sobreviveu, ainda o aterrorizam. “Não quero ver o local onde fizeram tudo aquilo com ele.”
O estádio, como quase toda cidade de Raqqa, ainda guarda também as marcas das batalhas que se passaram aqui para expulsar o Estado islâmico. Nas arquibancadas, pequenos buracos negros espalhados por todos os cantos mostram onde os morteiros pousaram. A cobertura da área nobre do estádio parece ter sido atingida por um furacão, e enormes buracos nas estruturas mostram onde os mísseis caíram. Nas áreas administrativas do estádio, ainda é possível encontrar farta documentação do Estado Islâmico: formulários para ordens de prisão, para sentenças de morte ou simplesmente boletos para pagamentos de multas para os crimes menos graves. Tudo está sujo, repleto de destroços, e cápsulas deflagradas estão por toda a parte.
Depois de três dias de jogos, o quadrangular chegou a seu ápice com o maior clássico do Eufrates: Raqqa x Manbij. As duas principais cidades da região guardam divergências irreconciliáveis, me conta Khalid Hamid, o assistente técnico do Raqqa, sem conseguir me explicar exatamente que divergências eram essas. “Resumindo, não se pode confiar muito neles”, diz. O jogo, como qualquer clássico, começou tenso. Hamid, que parecia um poço de candura ao me dar uma entrevista, se transforma. Toma o lugar do técnico na beira do gramado. Grita, xinga, cospe. Antes dos 10 minutos já invadiu o gramado. O juiz Abdulah, agora na posição de goleiro, corre da pequena área até o centro do campo e empurra um jogador de Manbij. Logo uma chuteira voa na direção do time de Raqqa. Sururu formado, uma vez mais. Os soldados entram novamente no gramado. Gritaria, armas nas mãos e, enfim, tudo volta ao normal. Sob a sombra da arquibancada, na beira do gramado, o cartola Ibrahim Nadjin me diz para ficar tranquilo. “Não é nada. Isso é natural, é coisa de futebol. No Brasil também não é assim?”