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Entrevista

Patricia Collins: “Os EUA têm instituições democráticas, mas não têm uma democracia”

Autora de ‘Pensamento Feminista Negro’ vê como positivo o aumento da representação dos negros na mídia mas enfatiza que isso não substitui a representação política

Entrevista
15 de outubro de 2019
22:28
Este artigo tem mais de 4 ano

A socióloga e ativista estadunidense Patricia Hill Collins cita produções cinematográficas recentes, como o filme Pantera Negra e a obra da cineasta Ava DuVernay, para afirmar que estamos na “era de ouro” da representação das mulheres negras na mídia. Ao mesmo tempo, ela faz um alerta: a representatividade pode ser sedutora, mas é não suficiente se não vier acompanhada da participação política.

Collins recebeu a Agência Pública em São Paulo na tarde desta terça-feira, 15 de outubro, durante o intervalo de eventos e conferências que compõem a sua agenda no país. Nascida na Filadélfia, a professora da Universidade de Maryland é também ex-presidente da Associação Americana de Sociologia (ASA) — a primeira mulher afro-americana a ocupar o cargo em pouco mais de um século de existência da entidade.

Em 1990, Collins se debruçou na obra de autoras negras para escrever o livro Pensamento Feminista Negro — que três décadas depois ganhou uma tradução oficial em português, pela Boitempo. O livro chega ao Brasil em um momento de resgate e procura pela obra de outras intelectuais como Angela Davis e bell hooks.

Em sua obra, Collins ajudou a consolidar o conceito de interseccionalidade, quando questões de raça, gênero e classe estão interligados. A socióloga enxerga a ascensão das discussões que envolvem a negritude como uma possibilidade de diagnosticar problemas sociais, ao identificar, por exemplo, lacunas sociais que separam brancos e negros. “Você pode ver diferenças na educação, diferença nas desigualdades das casas, você pode ver diferenças nas vidas de todas as mulheres negras, que proporcionalmente trabalham muito mais no serviço doméstico. Você vê todas essas coisas e precisa se perguntar: ‘pera aí, há um padrão em que vejo pessoas negras em certos lugares e não em outros’”.

No momento em que o Congresso dos Estados Unidos avança na discussão do inquérito de impeachment contra o presidente Donald Trump, Collins enxerga uma possibilidade de debater modelos de democracia no país, mas enfatiza: “Os EUA têm muitas instituições democráticas, mas não têm uma democracia. Há muita desigualdade”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Patricia Hill Collins durante entrevista a repórter Rute Pina da Agência Pública

Gostaria de começar com a discussão que você traz em seu livro sobre as “imagens de controle”, que foram impostas às mulheres negras ao longo da história como uma relação de poder. Você poderia explicar a diferença principal entre “imagens de controle” e estereótipos e como elas funcionam?

Estereótipos são baseados nessa noção de imagens mentirosas, falsas, de mulheres negras e de outros grupos. E sobre estereótipos, nós costumávamos argumentar que se conseguíssemos fazer as pessoas mudarem de opinião sobre mulheres negras e se livrar das falsas ideias — é como se elas tivessem lentes que não permitissem que elas vissem a verdade —, isso é uma forma de política que levaria à libertação.

Imagens de controle são mais complicadas que isso. Basicamente, vários grupos têm imagens que são aplicadas a eles e que são usadas para manter relações de poder ou controlá-los de diversas formas. Elas podem controlar mulheres negras, quando essas mulheres acreditam nessas imagens. Mas também há imagens de controle que são aplicadas a homens brancos, a mulheres brancas e outros grupos. Imagens de controle podem ser positivas. Elas podem ser imagens maravilhosas: que homens brancos são mais inteligentes, mais bonitos ou que eles merecem ser líderes. E essas imagens, na ausência de oportunidades para as pessoas se conhecerem e formarem opiniões sem essas imagens no caminho, se tornam as bases de relações de poder, se tornam fatores em relações de poder.

Basicamente, nós estamos julgando e construindo nosso dia a dia usando essas ideias que podem ou não ser verdadeiras. Não importa se elas são verdadeiras, o poder delas consiste no poder que elas têm em influenciar nosso comportamento — em termos de como tratamos outras pessoas, em como nos vemos e como avaliamos instituições sociais. Por exemplo, instituições que não têm mulheres negras no topo talvez seriam melhores que instituições que têm muitas mulheres negras no topo, e vice-versa.
Elas são mais estruturais que estereótipos, que são muito mais individualistas, e são baseados em uma certa visão de como você vive e como estimula mudanças sociais.

Você recupera, no livro, a imagem dada a mulheres negras como Mammy [estereótipo racista usado pela mídia norte-americana] como uma imagem de controle, mas por outro lado, você vê a maternidade como uma forma de resistência para esse grupo…

Acho que, novamente, algumas imagens podem ser positivas, outras podem ser negativas, e isso está ligado à realidade histórica de como essas imagens funcionam. Então, se você consegue usar mulheres negras como boas apenas como “Mammy”, significa que elas se tornam todas as trabalhadoras domésticas, porque você pode dizer que é uma coisa boa isso que elas estão fazendo, ou seja, que elas estão fazendo aquilo para o que foram feitas.

Onde quero chegar é: como mulheres negras podem usar essas imagens de controle. Se você está consciente das imagens de controle que são aplicadas a você, você pode resistir a elas de forma mais sofisticada.

Para algumas mulheres negras, a imagem da mãe, da maternidade, é positiva, mas não é para todas as mulheres negras. Então, muitas de nós fogem do bom e do ruim disso tudo. Para algumas delas, a imagem de controle de ser Jezebel [um termo sexualizado comumente usado para se referir a mulheres negras] ou ser uma prostituta, é algo que elas querem evitar. Para outras mulheres negras, é algo que elas encaram de frente, e dizem “Não, essa imagem de controle é, de fato, uma imagem de controle que é projetada para que as pessoas me vejam de uma certa maneira em relação à minha sexualidade”. E, sabendo o que essa imagem, é possível subvertê-la socialmente, o que pode ser muito efetivo. É diferente de dizer: “ah, eu não sou realmente uma Jezebel. Eu não sou realmente uma prostituta. Eu não sou realmente nada disso”. É basicamente dizer, “isso é um roteiro social que foi escrito para mim e eu vou reescrever esse roteiro sobre essa categoria específica”.

Eu estou pensando na Lizzo [rapper, atriz e apresentadora norte-americana] porque, para mim, esse é um exemplo muito bom de alguém que está reescrevendo as imagens de controle. Ela tem consciência de quais são elas e não está fugindo delas. Ela está dizendo: “vou reescrever essas coisas com relação ao meu próprio corpo, minha sexualidade, minha arte, minha criatividade”.

Então, essas imagens podem ser uma fonte de empoderamento para mulheres negras, se elas souberem o que elas são. É muito útil para uma menina de 14 anos saber como ela é vista pelo mundo. Ao contrário de alguém dizer: “ah, não importa o que eles pensam de você, o que eles falam de você, você pode fazer o que quiser”.

Inversamente, no outro lado do espectro, é muito bom para jovens brancos do sexo masculino ter que se perguntar: “Por que todo mundo pensa que sou o mais esperto, que sou o mais forte, que sou o melhor?”. Isso é um fardo pesado quando você sabe que você não o mereceu. Então, você tem que passar todo seu tempo tentando controlar outras pessoas a serem subordinadas a você, porque você sabe que, fundamentalmente, você não mereceu. E isso pode causar danos a essas pessoas ou pelo menos tornar muito difícil ser um jovem branco do sexo masculino quando ele tem esse repertório de imagens de controle.

Pensando no nosso trabalho na imprensa, como você enxerga essas representações das mulheres negras nos meios de comunicação?

Estamos na era de ouro, pelo menos nos EUA, tendo imagens e representações que não tínhamos antes. Certamente se você cresceu na era da Michelle Obama como “mom-in-chief” [trocadilho com a palavra “mãe” e “comandante-chefe” em inglês], e tinha cinco anos e você viu isso na Casa Branca, você teve algo maravilhoso. Ou o Pantera Negra, esse filme que tinha mulheres negras muito fabulosas. Nós também estamos numa era de cineastas negras, o que é ótimo em termos de filmes independentes, como Ava DuVernay, que está usando seu trabalho de maneira muito criativa.

Então, é um ótimo momento, em diversos aspectos, para ver esse desabrochar das mulheres negras na mídia. Mas, ao mesmo tempo, a representação [midiática] não substitui a representação política de fato. Podemos ter uma geração de pessoas que estão curtindo ver a si mesmas representadas e amando. Mas, por outro lado, seus direitos têm sido tomados, retirados à força.

Nós celebramos a representatividade, quando uma mulher negra, por exemplo, ocupa espaços que antes eram reservados para a branquitude. Mas, ao mesmo tempo, temas estruturais como racismo e violência policial continuam muito presentes. Há um mês, por exemplo, tivemos o assassinato de uma menina negra de oito anos no Rio de Janeiro, a Ágatha. Então, pensando em democracia, qual o limite da representatividade em uma sociedade que é ainda muito segregada?

Eu meio que separo essas questões em esferas diferentes. Se dividindo em diferentes análises e instâncias. Acho que há um papel a ser empenhado pela mídia e há limitações para o que ela pode fazer. E isso é algo que estamos descobrindo, particularmente, nas mídias sociais em termos de manipulação — pelo Facebook, Twitter, Instagram. É todo um novo obstáculo agora para nós.

Quando olhamos para os EUA, uso esse exemplo: há 100 anos, em 1919, homens negros voltaram da Primeira Guerra Mundial, onde tinham lutado como soldados em unidades segregadas pelos EUA, pensando que serviram ao seu país, e que isso faria diferença quando voltassem para casa. Bom, os cidadãos americanos se sentiram tão ameaçados por esses homens que passaram a linchá-los, porque eles não eram mais subordinados como antes, porque eles não eram mais quem os americanos brancos achavam que eles deveriam ser. O episódio ficou conhecido como ‘verão vermelho de 1919’.

Nossa ausência de leis nas ruas é causada, infelizmente, pela polícia — não toda a polícia. Então, não estamos lidando com algo novo. Estamos lidando com a noção de que vidas negras não importam para algumas pessoas. E se ela não importa para os negros, por que outras pessoas deveriam se importar? Então, a dificuldade hoje é pensar de forma mais abrangente sobre esse problema da violência contra homens e contra as mulheres. Violência não é apenas o ato da violência. É o discurso. É aí que a mídia entra, com o discurso que cria o clima de ódio, que valida violência e seus atos e as políticas públicas a repetem. Isso nunca vai desaparecer. O que temos agora é apenas uma configuração diferente.

Nos últimos anos, no Brasil, a gente teve um grande movimento de reconhecimento da negritude, em um país que sempre foi descrito como uma democracia racial. Como você enxerga a importância desse movimento de autodefinição?

Eu não costumo abordar esse tema na perspectiva do indivíduo que reconhece sua negritude e que isso seja algo a se celebrar. Isso é maravilhoso. Mas eu abordo a partir da perspectiva de que se a negritude é reivindicada, é possível diagnosticar problemas sociais, porque você pode vê-los mais claramente. Você pode ver diferenças na educação que podem ser diferenças raciais, diferença nas desigualdades das casas, você pode ver diferenças nas vidas de todas as mulheres negras, que mulheres negras trabalham desproporcionalmente muito mais no serviço doméstico. Você vê todas essas coisas e pode se perguntar, “pera aí, há um padrão em que vejo pessoas negras em certos lugares e não em outros.” Não existe argumento para isso a não ser que haja a categoria “preta”, porque será tudo, menos negros.

Então, temos que nos perguntar: para quem isso é uma forma convincente ou atraente de olhar o mundo? Tudo menos preto? Não podemos deixar as pessoas se identificarem como pessoas negras sendo desproporcionalmente afetadas por certas políticas e problemas. Não, não, vamos deixá-los ignorantes sobre isso. Porque se não, eles começam a ver essas desigualdades e a próxima questão é: “Isso é errado. Isso é injusto”. Isso é a prova de que essa é a coisa certa a se fazer. Então como podemos, realmente, abordar um problema que é fruto do racismo.

Então, sim, acho que tem sido uma coisa boa. Como você pode abordar um problema que você está vivendo enquanto negro quando você não tem o vocabulário para falar da opressão? Por isso eu diria que é uma boa ideia, e se não der certo, então já temos toda a história da democracia racial. Vamos ver no que vai dar.

Sobre a eleição de 2020 nos EUA. O governo Trump está na reta final e quero saber como essas questões que tratamos aqui podem afetar a campanha. Podemos prever que serão temas importantes nas campanhas?

Eu sou uma pessoa que não faz previsões. Estou tentando pensar como dizer isso sem dizer… Eu não vejo como esse governo pode durar. Acho que é um teste para o público americano de como o Trump quer essa democracia. E vou manter meus dedos cruzados para que em 2020 haja uma outra oportunidade para reparar o dano que foi feito no mundo. Mas, ao mesmo tempo, é muito importante para todas as eleições que se tenha confiança nas instituições. Os EUA têm muitas instituições democráticas, mas não têm uma democracia. Há muita desigualdade.

Fotógrafo:

Colaborou na tradução: Bárbara D’Osualdo e Julia Dolce

Julia Dolce/Agência Pública
Julia Dolce/Agência Pública
Julia Dolce/Agência Pública

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