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Documento obtido com exclusividade pela Pública mostra que a poeira das casas em Mariana e Barra Longa está contaminada com metais pesados e nada foi feito

Reportagem
4 de novembro de 2019
15:00
Este artigo tem mais de 5 ano

Os moradores dos municípios mais devastados pelo tsunami de lama do rompimento da barragem do Fundão em 5 de novembro de 2015 até hoje não têm informações oficiais sobre os riscos à saúde que os rejeitos de minério, que ficaram impregnados na terra e poluíram as águas do Rio Doce, podem causar a curto, médio e longo prazo. Já o governo de Minas e a Fundação Renova sabem desde maio e março, respectivamente, que a poeira das casas dos municípios de Mariana e Barra Longa está contaminada com metais pesados, assim como o solo superficial dessas localidades, mas omitiram esta informação da população. Mesmo sabendo que as pessoas correm perigo e que é preciso uma ação urgente, nenhuma providência foi tomada.

A contaminação foi detectada pelo Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH), a que a Agência Pública teve acesso. Ele foi realizado pela empresa Ambios Engenharia e Processos ao longo de 2018 em oito distritos pertencentes a Mariana — Bento Rodrigues, Camargos, Ponte do Gama, Paracatu de Baixo, Paracatu de Cima, Pedras, Borba e Campinas; e em quatro distritos de Barra Longa, além do centro da cidade — Barretos, Mandioca, Gesteira, Volta da Capela. A pesquisa foi concluída em 22 de março deste ano, quando foi enviada à Renova. A entidade encaminhou o estudo à Secretaria de Estado de Saúde de Minas em 17 de maio.

Os resultados acendem um alerta sobre essas cidades que foram classificadas como “Local de Perigo Categoria A: Perigo urgente para a Saúde Pública”. Isso significa, de acordo com o relatório, “que existe um perigo para a saúde das populações expostas aos contaminantes definidos através da ingestão, inalação ou absorção dérmica das partículas de solo superficial e/ou da poeira domiciliar contaminadas”.

Paracatu é um dos municípios pertencentes a Mariana

Na poeira coletada nas residências foram encontradas concentrações de cádmio, níquel, zinco e cobre acima dos limites de segurança vigentes na legislação brasileira. Também em amostras de sedimento e solo superficial foram encontradas concentrações de cádmio, destacado como um metal cancerígeno, até 17 vezes superiores aos valores de referência utilizados na pesquisa com base em padrões nacionais existentes, às quais a população está exposta desde a ocorrência do desastre, há quase quatro anos.

Os pesquisadores analisaram ainda alimentos que estão em contato direto com a lama de rejeitos, como tubérculos e frutas, e os que poderiam ter sido contaminados por meio do contato de animais com os rejeitos, como o leite e ovo. A água do Rio Doce e a água para consumo humano também foi objeto de pesquisa. Em nenhum destes casos foram encontradas relevantes concentrações de metais pesados para a saúde, apesar de a equipe da Ambios fazer o alerta de uma possível contaminação no futuro.

Sobre os alimentos, por exemplo, eles destacaram que existe a possibilidade de haver contaminação por causa de “eventos naturais” que podem alterar as condições físico-químicas do solo superficial.

Os pesquisadores também consideram que a água para consumo humano deve ser monitorada permanentemente. O estudo não descarta “a possibilidade de que fontes de captação de água para consumo humano, principalmente as de captação subterrânea, venham a ser contaminadas futuramente”, em função das fontes de emissão presentes, principalmente no solo e sedimentos.

Passados quase quatro anos do desastre, este foi o primeiro levantamento realizado após o rompimento da barragem do Fundão que, a partir de dados ambientais, sociais e de saúde, estabelece as prioridades de atuação do setor de saúde, indicando possíveis implicações para a saúde pública vindos de uma contaminação ambiental a substâncias químicas.

O estudo foi contratado pela Fundação Renova a pedido da Câmara Técnica de Saúde do Comitê interfederativo (CIF). O CIF tem a função de orientar e validar os atos da Renova. Ele é presidido pelo Ibama e composto por representantes da União, dos governos de Minas e do Espírito Santo, dos municípios impactados e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. A Câmara Técnica de Saúde é a instância dentro do CIF responsável por estabelecer as ações necessárias para o monitoramento da saúde da população atingida pelo desastre. As próximas fases da pesquisa irão abranger os municípios de Rio Casca, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado e Governador Valadares.

O resultado desta primeira fase do estudo pode explicar o aumento no número de problemas respiratórios e dermatológicos da população, conforme indicam os pesquisadores da Ambios. Segundo eles, a exposição aos metais pesados na poeira pode causar alergias de vários tipos (respiratórias, dérmicas) que se manifestam nas pessoas através dos sintomas relatados pelos atingidos: coceira e vermelhidão na pele, irritação e lacrimejamento nos olhos, tosse, congestão nasal, entre outros.

“Estes metais têm diferentes graus de potencial tóxico, ou lesivo, à saúde humana. Ações de saúde específicas devem ser implementadas para a prevenção, diagnóstico e tratamento dos possíveis agravos à saúde. A população deve ser monitorada para a exposição que ocorreu no passado, ainda ocorre, e pode vir a ocorrer no futuro, caso medidas de interrupção da exposição não venham a ser adotadas”, recomendam os pesquisadores.

Omissão do Estado e da Fundação Renova

O rompimento da barragem destruiu o distrito de Bento Rodrigues

Contrariando as recomendações e os resultados da pesquisa, o governo de Minas Gerais e a Fundação Renova adiaram a divulgação do resultado do estudo e, consequentemente, a ação para minimizar os impactos à saúde da população. O retorno da pesquisa aos atingidos estava previsto para acontecer nos dias 22 a 25 de setembro. No entanto, o Estado solicitou à Câmara Técnica de Saúde o adiamento das atividades por noventa dias. Ou seja, os atingidos só terão informações sobre os riscos a que estão expostos em 22 de dezembro.

O cronograma inicial das atividades de comunicação à população de Mariana e Barra Longa foi encaminhado pelo então coordenador da Câmara Técnica de Saúde, Kleber Rangel Silva, em 19 de agosto, ao procurador Edmundo Antonio Dias Netto. De acordo com o planejamento, do dia 22 a 25 de setembro, funcionários do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde iriam visitar os pontos onde houve a coleta de material para análise; seria realizada uma assembleia com os atingidos para apresentar os dados do estudo; e os profissionais de saúde da rede municipal de Mariana e Barra Longa receberiam uma formação técnica. “A realização da atividade de comunicação dos resultados do estudo ARSH trata-se de um compromisso da CT-Saúde com as populações atingidas”, reforça o ofício enviado ao MPF por Kleber.

O documento destaca ainda que a atividade de comunicação tem como objetivo informar aos atingidos sobre os metais pesados presentes no ambiente em seus territórios, bem como suas rotas de exposição; prestar esclarecimentos sobre os riscos à saúde humana; elaborar de maneira participativa o protocolo de acompanhamento dos atingidos e seguimento na rede local de saúde, com base nas recomendações do estudo, além de realizar a capacitação dos profissionais de saúde.

Em setembro, Kleber deixou a coordenação da Câmara Técnica de Saúde. Conforme apurou a Pública, ele teria saído do cargo após desgastes com a secretaria estadual, devido ao adiamento da divulgação do estudo da ARSH.

Para justificar a atitude da pasta, o Subsecretário de Vigilância em Saúde, Dario Brock Ramalho, informou ao MPF, em 13 de setembro de 2019, depois de questionamentos do procurador, que solicitou à Renova um cronograma de plano de ação e que precisava de tempo para analisar a proposta da entidade. “Entendemos que a informação a respeito de eventuais riscos à que a população estaria exposta deve ser naturalmente acompanhada de informações acerca de medidas a serem instituídas, com vistas a preservar e monitorar a saúde destes cidadãos”, escreveu o subsecretário no ofício.

À Agência Pública, Dario Brock reforçou que a secretaria está tentando montar uma proposta do que fazer com os resultados da pesquisa. “O estudo em si ele levanta mais pergunta do que resposta. Nós solicitamos mais noventa dias para conseguir elaborar um plano de ação em cima do estudo, que é complexo”, justificou. O novo coordenador da CT-Saúde, Gian Gabriel Guglielmelli, fez coro ao discurso do subsecretário: “A gente entende a aflição deles (atingidos), mas nós enquanto Estado, enquanto poder público, temos responsabilidade de dizer: ‘nós temos essa situação e vamos resolver dessa forma’”.

O Ministério Público Federal também enviou um ofício ao governador Romeu Zema no dia 13 de setembro, cobrando diretamente do gestor planos de ação e a elaboração do planejamento de medidas para minimizar os riscos à saúde da população atingida pelo desastre e das futuras gerações que residam ao longo da bacia do Rio Doce. O governador ainda não respondeu o MPF.

Por meio de nota, a Renova informou que não deu transparência ainda à pesquisa porque “em cumprimento à Nota Técnica 11/2017, todos os dados, informações e relatórios produzidos pelo estudo são proibidos de serem publicados pelas instituições contratadas e pela Fundação Renova, sem autorização das autoridades públicas”.

Vidas em jogo

Simone Maria da Silva é representante da comissão dos atingidos de Barra Longa

Enquanto o governo de Minas aguarda um retorno da proposta de ação da Fundação Renova, que é vista pelos atingidos como braço das mineradoras, a população continua adoecendo em Mariana e Barra Longa. “O estudo da Ambios não é a resposta para nossos problemas, mas é um instrumento de luta. A resposta tem que ser construída junto com a população”, reivindicou Simone Maria da Silva, representante da comissão dos atingidos de Barra Longa.

Ela não mora à beira do Rio Doce, não teve a casa destruída diretamente pelo desastre, mas está certa de que é a lama, depois usada para calçar as ruas da cidade, que prejudicou a saúde da sua filha que tinha nove meses quando o desastre aconteceu. A Pública contou a história de Simone na reportagem “Raposa no galinheiro” publicada em setembro do ano passado.

Ela relatou à reportagem a luta para que a Renova reconheça sua filha, Sofya Marques, hoje com 4 anos, como atingida. Um exame toxicológico realizado por iniciativa do Instituto Saúde e Sustentabilidade detectou metais pesados no organismo da criança. Naquela época, Sofya apresentava problemas respiratórios, de pele e sentia dores na perna, além de estar com o rosto frequentemente inchado.

Pouco mais de um ano depois,encontramos com Simone novamente. Ela continua sem assistência da Fundação Renova e o quadro de saúde de Sofya piorou. “Sofya recebeu um diagnóstico gravíssimo. Está com inflamação do cérebro e no intestino e isso pode mudar o rumo da vida dela”, contou na última quarta-feira, em Belo Horizonte.Toda vez que ela precisa fazer um exame, “tem que ter guerra” com a Renova, conta Simone.

Os pesquisadores da Ambios destacaram no estudo que o desastre ocorrido em Mariana trouxe consequências sobre a qualidade e as condições de vida e de saúde da população das localidades estudadas, que extrapolaram o efeito lesivo específico dos metais pesados sobre a saúde e que perduram até hoje.

Atualização (5 de novembro às 13h 10):íntegra do posicionamento do Governo de Minas sobre a matéria publicada que aborda o Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (EARSH) realizado pela Ambios Engenharia, a pedido da Fundação Renova, nos municípios mineiros de Mariana e Barra Longa.

Mirela Persichini/Agência Pública
Mirela Persichini/Agência Pública
Mirela Persichini/Agência Pública

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