Sofia teve que escolher quem salvaria entre seus dois filhos pequenos, em um campo de concentração nazista polonês, durante a Segunda Guerra Mundial. A história, narrada no romance A escolha de Sofia, tornou-se conhecida pelo filme de Alan Pakula, premiado com um Oscar em 1983. A partir daí a expressão passou a ser usada quando se tem que tomar decisões profundamente dolorosas, quase impossíveis.
Na pandemia do coronavírus, o termo voltou à tona para se referir à escolha de a quem dar acesso a um disputado leito de terapia intensiva; em uma situação em que um respirador pode determinar quem morre e quem vive. Internacionalmente, há estudos até para avaliar o compartilhamento de um mesmo equipamento de ventilação para dois ou mais pacientes, o que nunca foi testado em humanos e ainda está fora de cogitação pelo risco que oferece.
Com um número insuficiente de leitos de UTI, desigualmente distribuídos pelo país, são as equipes médicas que acabam obrigadas a optar entre os pacientes que terão prioridade. E pelo visto terão que fazer isso sozinhas, já que não há protocolos definidos pelo Ministério da Saúde e pelas secretarias estaduais sobre como agir nesses casos.
Talvez para evitarem falar da morte, um risco inerente à pandemia, as autoridades estão deixando mais essa carga aos médicos da linha de frente. Discute-se o aumento de recursos para atenuar o problema, mas não se fala de quais seriam os critérios para essa difícil escolha, que deveriam ser transparentes para a população. Nisso concordam médicos, entidades e especialistas em fim de vida, os paliativistas. Segundo eles, apenas hospitais isolados e a Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib) tomaram iniciativas de elaborar protocolos e recomendações.
“O que está acontecendo hoje é que cada hospital está criando seu protocolo, e aí a gente pode começar a ter uma desigualdade entre os serviços, porque não é uma política pública. O Ministério da Saúde não criou um protocolo e o Conselho Federal de Medicina não se manifestou sobre isso”, pontua a advogada Luciana Dadalto, doutora em ciências da saúde, que lida com a temática da bioética na medicina há doze anos.
Luciana cobra: “É preciso que fique claro para a sociedade quais serão as premissas adotadas durante a pandemia”.
A advogada lembra que, ao contrário da Itália e de outros países que tiveram que fazer essas definições em meio ao caos, o Brasil teve tempo para planejar medidas e cuidados antes do avanço dos casos de Covid-19. Já se sabia, por exemplo, que a criação de leitos de UTI dificilmente superaria o ritmo da pandemia.
De acordo com o Imperial College London, que publicou os números previstos para os desfechos da pandemia em todos os países, em um cenário com distanciamento social de toda a população, o Brasil terá 831 mil pessoas precisando de UTI, enquanto dispomos de pouco mais de 55 mil vagas. Além disso, mais de 80% das regiões de saúde (grupos de municípios que compartilham a mesma rede) não atingiam o parâmetro de 1 a 3 leitos para 10 mil pessoas – o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) –, como apontou há mais de um mês a reportagem o Brasil vive um deserto de UTIs, da Agência Pública.
“Estamos perdendo tempo e vamos ser engolidos pela necessidade de tomar decisão, sem ter conseguido padronizar algumas coisas”, preocupa-se Luciana.
Em capitais como Manaus a crise se instalou já no início de abril, quando a ocupação dos leitos totais chegou a 95%. O número de mortos ontem (21 de abril) foi de 193, segundo boletim da Secretaria de Estado de Saúde, e câmaras frigoríficas foram instaladas nos hospitais da capital amazonense, depois de fotos nos jornais terem mostrado corpos ao lado de pacientes vivos. Três médicos morreram.
Uma situação já excessivamente cruel para os profissionais de saúde, que não devem ser submetidos a mais sofrimento, como diz José Bernardes Sobrinho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Amazonas (Cremam): “É uma situação degradante para o médico. Ele não tem esse poder de decidir quem vai viver, quem vai morrer. Isso não deveria acontecer”.
Os protocolos dos hospitais e Associação de Medicina Intensiva
A Pública entrou em contato com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério da Saúde há duas semanas e, apesar de pedidos de resposta insistentes, não obteve resposta sobre a existência de protocolos que orientem os hospitais sobre os critérios de prioridade. O que se tem até o momento é o documento da Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib), feito com o objetivo de amparar os médicos. Intitulado “Princípios de triagem em situações de catástrofes e as particularidades da pandemia Covid-19”, o artigo indica os parâmetros de admissão de pacientes em UTIs, baseados na resolução 2.156 do CFM, de 2016.
A gravidade do quadro clínico atual do paciente e a probabilidade de sobrevivência são os principais pontos para definir a prioridade entre os doentes, conforme o artigo (veja os detalhes no quadro abaixo). A Amib também recomenda que as decisões sejam coordenadas com diretor técnico hospitalar e autoridades de saúde em nível local, regional ou nacional, além de documentadas no prontuário de cada paciente. “As equipes de triagem para cuidados intensivos devem ser compostas, no mínimo, por três pessoas, dois médicos e um outro profissional de saúde, experientes no cuidado de pacientes graves, especialmente com disfunção respiratória”. São elas que devem decidir juntas, baseadas em critérios previamente definidos para priorizar pacientes.
A maior preocupação é evitar decisões subjetivas, relacionadas com o status social do paciente, por exemplo. A idade também não pode ser o primeiro critério, e sim o último, num possível desempate. “Independentemente da situação, todas as pessoas são dignas. Não é possível tolerar qualquer forma de discriminação”, aponta o artigo da Amib.
Os critérios da AMIB
Níveis recomendados
– Prioridade 1: pacientes que necessitam de intervenção imediata, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de recursos curativos (podendo receber todas as intervenções para serem salvas). Exemplo: uma pessoa com uma pneumonia grave, com necessidade de ventilação mecânica, sem doenças prévias ou com doenças que não limitam a expectativa de vida (asma, hipertensão controlada, diabetes controlado…);
– Prioridade 2: pacientes que necessitam de monitoramento intensivo, com alto risco de precisarem da intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte;
– Prioridade 3: pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, mas com baixa probabilidade de recuperação ou com alguma limitação terapêutica;
– Prioridade 4: pacientes com limitação de intervenção terapêutica, como os que têm câncer avançado, doença cardíaca e pulmonar avançadas – nesses casos, as intervenções avançadas podem ser fúteis e não indicadas;
– Prioridade 5: pacientes com doença em fase terminal, sem possibilidade de recuperação.Situação do paciente
Serão avaliados: quadro clínico atual; presença de comorbidades (mais de uma doença); comprometimento irreversível de funções cognitivas; e fragilidade.Não discriminar
As decisões não devem levar em consideração: idade, religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor da pele, orientação sexual, condição social, opinião política ou deficiência.FONTE: AMIB – PRINCÍPIOS DE TRIAGEM EM SITUAÇÕES DE CATÁSTROFES E AS PARTICULARIDADES DA PANDEMIA COVID-19 (março de 2020)
Protocolos em Minas Gerais
Hospitais públicos e privados de Belo Horizonte e de algumas cidades de Minas Gerais também fizeram um protocolo conjunto para situações extremas. O documento é baseado em publicações internacionais anteriores que previam critérios de atendimento em grandes catástrofes, como terremotos e o atentado do World Trade Center, em Nova York.
A ideia é salvar o maior número de vidas e priorizar aqueles que parecem ter maiores condições de sobrevivência, explica a médica Maria Aparecida Bicalho, do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que participa da feitura do protocolo. Os critérios serão reavaliados a cada plantão de 12 horas. É uma equipe, com um número ímpar de profissionais, que decide. “Não nos baseamos na idade, mas na gravidade. Pacientes com falência de três órgãos vitais [coração, pulmão e rim] têm a prioridade reduzida por ter uma chance muito pequena de recuperação”, explicou a geriatra. As comorbidades também são observadas: “Se tem um câncer de metástase, a chance de viver mais de um ano é pequena”.
Aparecida esclarece que um idoso pode ter uma expectativa de vida maior quando comparado com um jovem que tem doenças graves, embora seus
pacientes mais velhos estejam apreensivos com a possibilidade de não serem atendidos. “A discussão está sendo feita aqui para não sermos pegos de surpresa, mas é difícil a população entender isso”, afirmou.
Consequências psicológicas e legais
Boa parte dos médicos intensivistas brasileiros que trabalham no sistema de saúde pública, muitas vezes sobrecarregado, já teve que tomar decisões ditadas pela escassez de recursos. Mas em uma situação de pandemia, em que esse sistema será pressionado ao máximo, a disputa por ventilação mecânica é quase inevitável. São os respiradores que auxiliam o corpo a obter oxigênio e liberar dióxido de carbono quando os pulmões são afetados, e seu uso pode ser determinante para o desfecho de cada caso. “No momento, ninguém quer falar disso, mas quando acontecer, se tiver que sobrar para alguém, é o profissional da ponta que vai arcar com todas as consequências”, destaca o intensivista Cristiano Augusto Franke, um dos autores do documento da Amib.
Podíamos estar mais preparados, defende Franke, “promovendo a discussão [sobre esses critérios] com toda a sociedade, médicos, juristas, bioeticistas, filósofos, líderes religiosos…”. Ele sugere que o debate poderia ocorrer em uma audiência pública, no Congresso Nacional, no Ministério Público, em reuniões pautadas pelo Ministério da Saúde ou pela própria OMS.
A partir dessa conversa mais ampla, cada estado, cidade ou região definiria critérios de acordo com suas realidades, em protocolos a serem reavaliados diariamente. “Em uma cidade, quando não tem UTI em um hospital, a unidade vizinha pode receber o paciente. Por isso precisam considerar os mesmos princípios de triagem [na transferência]”, explicou.
O que não pode ocorrer é um médico decidir sozinho quem vai para UTI quando há fila para leitos. “Essa decisão tem muito impacto para as pessoas que vão sofrer as consequências dela e para o médico, do ponto de vista psicológico e legal. Esses profissionais não podem estar jogados, sem respaldo”, reforça Franke. Entre os trabalhadores da saúde, “existe no ar um sentimento importante, de medo mesmo.”
Proteção não é só EPI
A advogada Luciana Dadalto alerta que fora do Brasil já há iniciativas de legislações específicas que garantem imunidade cível e criminal a esses trabalhadores, para resguardar condutas durante os atendimentos da Covid-19. O que para ela também faz parte da proteção dos médicos, como os EPIs, usados para evitar o contágio por coronavírus.
Luciana menciona o estado de Nova York como um exemplo a ser adotado, por ter aprovado, no fim de março, uma lei que protege os profissionais de saúde em decisões como limitar ou suspender o suporte artificial de vida ou não reanimar o paciente durante o período de pandemia. “O que está sendo mais difícil para mim como advogada é lidar com o sofrimento dos profissionais”, afirmou Luciana, que tem recebido ligações de médicos em busca de orientações.
Há outros dilemas, como mostra um caso ocorrido em um hospital do interior de São Paulo. Uma paciente de 50 anos, diabética, diagnosticada com Covid não queria ser intubada. Os médicos não sabiam o que fazer. “Eu orientei que eles respeitassem a vontade da paciente, se percebessem que não havia traços de depressão, e anotassem a recusa terapêutica no prontuário.” Luciana soube depois que a paciente acabou aceitando receber a intubação e morreu dias depois.
O documento da Amib orienta também que a vontade do paciente seja levada em consideração. “Os cuidados são oferecidos de acordo com um consenso estabelecido entre equipe e paciente/família. Contudo, podem ocorrer situações em que a alocação de recursos se torna tão escassa ou inexistente e que isto não é mais possível”, indica o texto.
A recusa terapêutica, independentemente de fim de vida ou não, é reconhecida no Código Civil, desde 2002, lembra Luciana. “O problema é que a gente não segue isso; na prática, os profissionais desconhecem.”
“Meu medo é que a gente não aproveite a oportunidade que estamos tendo de conversar sobre esses temas sérios, necessários para um sistema de saúde mais humano, e que a gente volte a engavetar o tema da morte”, ressaltou a advogada, que é a maior especialista do Brasil em testamentos vitais – como são chamados documentos em que as pessoas, prevendo a impossibilidade de se manifestarem por causa de uma doença grave, registram como querem ser cuidadas no fim da vida. O ideal é que seja lavrado em cartório, mas no período atual basta assinar e entregar para mais de uma pessoa de confiança.
Testamentos vitais crescem
Com a pandemia, o número de pessoas que procuraram Luciana para fazer testamentos vitais aumentou 800% nas últimas semanas. O que pode ajudar também os médicos em situações-limite, pois o profissional poderá avaliar a vontade do paciente ao determinar os procedimentos.
Um movimento na internet com a hashtag #meutestamentovital expõe alguns dos desejos de muitas pessoas em fim de vida, além de não sentir dor ou falta de ar: “ter alguém que saiba me ouvir”, “estar lúcida”, “ter minha biografia respeitada”, “não fazer tratamentos invasivos se o quadro já tiver definido”, “não ser deixada sozinha”, “não esconder informações de mim”, “não ser mantida viva artificialmente”, “ouvir música” e, se possível, “morrer em casa”. Quase todos são pedidos viáveis mesmo no contexto da Covid.
A médica Cláudia Inhaiá, de 48 anos, revistou agora o testamento vital que fez em 2015. “A pandemia traz uma outra perspectiva, posso me encontrar numa condição de saúde em que eu sobreviveria com sequelas muito importantes, e isso não está de acordo com o que significa dignidade para mim”, afirmou. Poder se cuidar sozinha é uma vida digna para ela.
Em caso de uma infecção respiratória grave, a médica prefere não ser ou permanecer intubada por um tempo longo demais, porque isso pode comprometer outras funções. “Eu não tolero ser mantida viva esperando seis meses para ver se eu vou ficar bem lá na frente. Isso pra mim é tempo demais.”
Cuidados paliativos
O direito de abrir mão de procedimentos ou a prioridade médica exigida pela situação não podem ser confundidos com abandono. O paciente não poderá ficar sem cuidados se não houver leito de UTI para ele. É aí que entram em cena os cuidados paliativos, uma área da medicina que, embora esteja crescendo, é oferecida por menos de 10% dos hospitais brasileiros. O objetivo é reduzir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida dos pacientes com doenças crônicas e incuráveis, principalmente os casos em estágios terminais.
“O mais importante é o entendimento da equipe, do paciente e da família de que, mesmo para os que não receberem o leito de UTI, [seu ente querido] foi cuidado da melhor forma possível”, afirma a psicóloga oncológica e paliativista Francine Portela, que ressalta a necessidade de os familiares serem comunicados claramente sobre riscos e consequências de procedimentos médicos.
Para esses profissionais, a pandemia é também uma oportunidade para expandir a medicina paliativa no país, de explicar sua importância para a população, que a partir daí poderia cobrar o acompanhamento de paliativistas e remédios para reduzir a dor – o uso da morfina, por exemplo, uma das drogas mais importantes para aliviar a dor, ainda é restrito no Brasil.
Outra preocupação dos paliativistas é que também faltem remédios para aliviar o sofrimento durante a pandemia – a Índia, responsável por grande parte da matéria-prima para a produção, fechou as exportações de diversos insumos. “Temos que lembrar que também os medicamentos para alívio de sintomas não podem se esgotar”, destaca Camila Alcântara, geriatra paliativista do HC de Belo Horizonte.
Profissionais do HC de Belo Horizonte elaboraram vídeos e fluxogramas para orientar médicos de outras áreas sobre princípios paliativos, sobretudo o manejo de sintomas, especialmente entre idosos frágeis. A sedação paliativa é um dos procedimentos que costumam gerar polêmica por ser comumente usada pouco antes de a pessoa morrer, mas é importante para aliviar falta de ar e dores excessivas.
O afeto, a atenção e a dignidade dos pacientes são primordiais para os paliativistas, que costumam garantir também a presença de familiares em situações de desfecho. Com os riscos de contágio na pandemia, alguns confortos não são possíveis, os pacientes ficam sozinhos nas UTIs, e os profissionais de saúde tiveram que se reinventar, sorrindo com o olhar e usando tom de voz e palavras certas para transmitir acolhimento.
A tecnologia também tem sido aliada para conectar os pacientes, por vídeo e voz, com seus familiares. Paliativistas da Universidade de São Paulo (USP) fizeram recomendações aos profissionais de saúde sobre como proceder para acolher os doentes nessas circunstâncias, promover as visitas virtuais de familiares nas UTIs (por meio de tablets e outros aparelhos) e dar notícias difíceis durante a pandemia.
Uma estratégia que logo se espalhou pelo mundo foi usar, por cima das roupas brancas dos profissionais, uma foto do rosto deles, no peito, para mostrar quem está por trás de todo aquele aparato de proteção, que faz com que se assemelhem a robôs nas alas de internação. Fotos com sorrisos largos são as preferidas porque transmitem o carinho que desejam, mesmo empacotados em EPIs.
Extubação
A extubação (a retirada do tubo) dos pacientes internados em UTIs é um procedimento igualmente envolvido em tabus. A recomendação da Amib é para que todos os doentes sejam incluídos no plano de triagem para as vagas de UTI, inclusive os que já estão ocupando vagas por outras enfermidades. Isso significaria, portanto, extubar o paciente que possa ter menos chance de sobrevida. O Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG), no entanto, foi na contramão dessas orientações e emitiu em março um parecer desfavorável à extubação. Entidades paliativistas publicaram nota ressaltando que “a extubação paliativa é uma opção, em casos muito específicos, permitindo a evolução natural da doença, e jamais visando causar a morte ou realizada de forma impositiva”.
“A medicina ainda não compreendeu a morte como um fato natural e que o papel do médico é cuidar do paciente enquanto sujeito biográfico”, afirma a advogada Luciana Dadalto.