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Docentes da rede educacional que controla universidades como FMU e Anhembi Morumbi denunciam uso de inteligência artificial para correção de textos; documento obtido pela Pública confirma situação

Reportagem
30 de abril de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 4 ano

Se você faz disciplinas de educação a distância (EAD) em alguma das instituições ligadas à rede educacional Laureate, um aviso: a avaliação das suas atividades dissertativas (textos) na plataforma digital — conhecida como blackboard — não é mais feita só por professores, e sim por um software de inteligência artificial, o LTI.

A informação foi confirmada por cinco fontes que falaram com a Agência Pública sob a condição de anonimato.

Silvana*, professora, explica: “Os alunos não sabem, e assim somos orientados: não podemos informá-los e devemos responder a todas as demandas como se fossemos nós, professores, os corretores”.

Um documento interno obtido pela reportagem que trata do uso do corretor automático também confirma a situação: “Atenção: esta informação não deve ser compartilhada com os estudantes!”, registra o texto grifado em amarelo, que é parte do manual do LTI enviado aos docentes.

O manual diz que “as notas sobem [no sistema] após às 14h diariamente em dias úteis (de segunda a sexta)”

“A nossa função aqui é corrigir atividade, então o que a gente vai fazer agora?”, questiona Lorena*, outra professora da rede, que possui mais de 200 mil alunos em 11 instituições no país, entre elas FMU | FIAM-FAAM, Anhembi Morumbi, UNIFACS, UniRitter, FADERGS, UnP, UniFG, IBMR e FPB.

O LTI funciona com palavras-chave, explica Jonas*, outro professor. “Ele compara com a resposta do aluno, atribuindo uma nota de acordo com a identificação que considera correta a partir dessas palavras.” Segundo eles, a correção não é imediata para que o aluno não perceba a utilização do robô, e a nota só é disponibilizada nos dias seguintes no sistema.

“O estudante está sendo extremamente enganado”, diz Lorena, que afirma sentir-se mal ao ter de participar do que chamou de “mentira”. “A impressão que dá é que a gente está lá só para inglês ver. Só pra eles usarem os nossos títulos e poderem validar os cursos no MEC, pra gente ter que falar para eles [MEC] que ‘temos liberdade e autonomia sobre a disciplina’, quando a gente não tem”, desabafa a docente.

Lorena faz referência a outra denúncia revelada pela Pública em maio do ano passado, quando professores demitidos denunciaram irregularidades nos cursos EAD da Laureate, que iam de atas forjadas para o reconhecimento de cursos no Ministério da Educação à atuação de docentes em cursos fora de sua área de formação.

A denúncia atual chegou ao conhecimento da reportagem por meio da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, espaço de articulação e mobilização política dos educadores e educadoras das instituições de ensino superior (IES) privadas. 

A rede divulgou uma nota pública assinada por algumas entidades, entre elas o Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro-SP).

200 mil alunos potencialmente afetados pelo uso de inteligência artificial em atividades das disciplinas EAD

Estudantes: “Em nenhum momento falaram pra gente”

Estudante do quinto semestre de turismo na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, Mitie Nagano, 20 anos, afirma não ter sido informada sobre o uso de inteligência artificial no EAD para correção de atividades dissertativas.

Aluna do curso presencial, Mitie tem 20% das suas atividades da graduação realizadas no EAD. Mas, segundo a portaria nº 2.117, assinada pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, em dezembro de 2019 as IES podem aumentar de 20% para 40% a fatia da grade curricular oferecida a distância, mesmo nos cursos presenciais.

A portaria indica que os cursos precisam ter critérios técnicos adequados para as aulas a distância, além de projeto pedagógico aprovado. A portaria estabelece ainda que mudanças no curso presencial precisam ser “amplamente informadas” aos alunos, devendo ser identificados “os conteúdos, as disciplinas, as metodologias e as formas de avaliação” do curso. A necessidade de transparência vale para os alunos já matriculados e para os processos seletivos de ingresso nos cursos.

Representante de sala, Mitie relata que desde o início do curso a universidade não deixou claro como eram feitas as correções: “Sabíamos que passavam por um filtro de professores que corrigiam, pelo que falavam antes. E não chegou até mim a informação de que isso mudaria e que passariam a usar inteligência artificial”, diz a estudante.

Assim como Mitie, outros dez estudantes confirmaram à Pública que nada sabiam sobre o uso do LTI em suas atividades de EAD. “Caramba, fiquei surpresa agora”, disse Gisele*, que cursa marketing na FMU. “Acredito que é extremamente prejudicial não ter um profissional capacitado avaliando minhas produções acadêmicas”, reclamou Maurício*, que faz direito na Anhembi Morumbi.

No dia 24 de abril, através do atendimento online da Anhembi Morumbi — como mostram as imagens a seguir —, a estudante de jornalismo Joana* perguntou sobre como são feitas as correções e foi informada de que as atividades são corrigidas por professores. “Então esse professor corrige todas as atividades dissertativas do EAD?”, indagou. “Isso mesmo”, foi a resposta do atendimento.

João*, outro aluno da FMU, diz que se sente inseguro com a situação: “Cria a dúvida qual base ele [LTI] está utilizando pra saber se é correto ou não? Nem sempre a produção de mais e mais correções vence a maior assertividade manual”.

Erick Quirino, 20 anos, estudante de jornalismo no mesmo campus que Mitie, também acha que o uso não informado do LTI prejudica os alunos. “Primeiro, porque depende muito da inteligência artificial que eles estão usando. Se for alguma coisa que faça uma análise semântica básica, que caça palavras-chaves, o contexto da resposta se perde. E a proposta das questões dissertativas é justamente que cada aluno possa desenvolver a sua própria resposta e argumento. Talvez o uso de inteligência artificial tente passar uma régua única em todas as respostas e acabe prejudicando os critérios de avaliação. E, principalmente, é prejudicial porque não tem transparência entre os alunos e a universidade”, avalia.

A estudante de jornalismo da Anhembi Morumbi Jéssica* avalia que a tecnologia pode ser algo bem útil, mas não utilizado dessa forma. “Mesmo com margem baixa de erro, não anula o fato de que um robô não tem o estudo e a experiência de um professor, que dedicou a vida dele para isso. Me sinto muito ‘lesada’ por não termos acesso a essas informações”, critica.

“Iremos formar robôs”, diz um professor que teme demissões

Jonas acredita que, assim que o LTI estiver funcionando sem falhas, todos os professores do EAD Laureate estarão de aviso prévio. “Seremos demitidos e trocados por monitores que não necessitam de formação”, diz.

Segundo ele, a interação com os alunos já é pequena atualmente, só acontece quando a nota é 6 ou inferior — seguindo orientação do próprio manual do LTI.

Se questionados [por estudantes], a ordem é [dizer]: “Estamos efetuando a correção ainda e o sistema está demorando para subir a nota”. “O aluno não aprende, não é possível dar um feedback. Iremos formar robôs”, critica Jonas.

Os docentes afirmam ainda que problemas no uso do sistema já são percebidos. “Eu fui olhar atividade por atividade analisada pelo LTI. A maioria dos estudantes que tiraram dez é tudo plágio. E tem estudante que tirou nota ruim, mas que tentou escrever”, diz a professora Lorena.

“Um erro que eu vi acontecendo pelo LTI é de um aluno que enviou a mesma resposta em duas atividades totalmente diferentes e tirou nota 10 e 8. Uma loucura isso”, afirma Jonas. “Se antes, quando corrigíamos atividades, já era difícil manter a qualidade educacional, uma vez que havia casos de professores com mais de 7 mil alunos para dar feedback, agora sem que isso passe necessariamente por uma avaliação humana é ainda mais sofrível”, diz a docente Silvana.

Segundo o MEC, as IES têm autonomia didático-pedagógica para administrar as suas atividades acadêmicas, desde que “pautadas por normas, regimentos internos e estatutos avaliados pelo MEC para fins de credenciamento e recredenciamento”.

O manual de conduta ética da Laureate traz algumas considerações, entre elas, a transparência

Os cursos na modalidade 100% EAD são, em geral, mais baratos que os presenciais e vendem a ideia de flexibilidade aos alunos que precisam ganhar tempo para poder trabalhar. Além disso, oferecem um vestibular menos rígido.

O estudante Murilo*, por exemplo, ingressou na Laureate neste semestre para fazer o curso de EAD de ciência da computação. Ele conta que na inscrição para o vestibular pediram que fizesse uma redação online. O tema: “Levando em conta a leitura do texto e a sua vivência, escreva um texto de até 20 linhas respondendo à seguinte pergunta: a língua deve ser domada e correta ou funcionar como um espaço de expressão criativa?”.
“Foi um processo normal, redigi o texto e submeti”, recorda. “Mas eu achava que ia ter um processo de avaliação, com professor. Por curiosidade, fui olhar o código-fonte [a linguagem de programação por trás da página] e percebi que era feito pra enganar. Simplesmente eram mensagens pré-programadas já com a nota”, critica.

Segundo Murilo, a temática da redação chega a ser irônica pelo fato de ter sido corrigida por um robô. “Não me incomodou ser automatizada, mas ser mentirosa. Ninguém aprovou nada”, diz.

Segundo o MEC, “em caso de insatisfação com decisão administrativa tomada internamente pela instituição, o aluno deverá buscar as instâncias e recursos definidos pelo regimento interno da própria instituição”.

“O mais contraditório é que nos treinamentos obrigatórios da Laureate, realizados online, o discurso apresentado fala que a EAD não diminuiu o papel do professor, já que ele seria fundamental para a articulação e engajamento dos estudantes, mas a verdade é que os alunos estão abandonados por um sistema robótico que não preza pela mesma qualidade que o trabalho do docente”, diz a professora Silvana.

Projetos de lei de IA

Não há regulamentação específica para o uso de inteligência artificial no país. Atualmente, dois projetos de lei sobre inteligência artificial tramitam no Congresso Nacional. Um deles cria a Política Nacional de Inteligência Artificial (PL 5.691/2019) e outro estabelece os princípios para o uso dela no Brasil (PL 5.051/2019), ambos de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) — o relator dos projetos mencionados é o senador Rogério Carvalho (PT-SE).

Na justificativa, o senador Valentim pontua que não se trata de frear o avanço da tecnologia, mas de assegurar que esse desenvolvimento ocorra de modo harmônico com a valorização do trabalho humano, a fim de promover o bem-estar de todos.

Maurício Pimentel, especialista em tecnologia, avalia que o grande problema que a inteligência artificial vem enfrentando neste momento em relação à educação são as questões subjetivas. “Tudo que se trata de subjetividade a inteligência artificial vai ter restrições bem severas — eu não digo intransponíveis, porque nesses anos todos de carreira eu acabei descobrindo que o impossível é uma questão de tempo”.

“Eu sou da opinião de que IA é como glúten, açúcar e carboidrato, tem que estar na embalagem escrito. Se você ligar para um serviço de TV a cabo e você estiver falando com um robô de inteligência artificial, ele deveria avisar que ele é um robô. Eu transfiro isso para a questão da correção exatamente com o mesmo receio. O uso da inteligência artificial tem que ser declarado a priori”, avalia.

Para Marina Feferbaum, coordenadora da área de Metodologia de Ensino e do Centro de Pesquisa e Ensino em Inovação, ambos da FGV Direito, em São Paulo, a situação revelada pela reportagem traz um “problema ético gigantesco”. “Só o fato dos alunos não saberem que um robô está corrigindo as avaliações, tem mil implicações”, diz. “É uma questão para refletir sobre isso, o papel da sala de aula: no meio científico a validação ocorre muito por conta da troca dos pares. Você vai construindo junto, dando feedback. Agora, como seria esse modelo de algoritmo, né? Ele tem um padrão, o que é considerado como válido ou inválido nesse modelo de correção. É um referencial teórico de um único professor que foi imputado naquele modelo para validar o que é correto? Enfim, a complexidade dessa discussão é infinita.”

Questionado, o MEC afirmou que não funciona como instância recursal em matéria acadêmica. “Caso a proposta pedagógica (incumbências atribuídas às instituições de educação superior pelo art. 12 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) vier a prejudicar a qualidade do ensino ofertado, tais deficiências serão detectadas nos processos de regulação, e caberá ao Ministério da Educação adotar as medidas cabíveis, como ações cautelares de redução de vagas, suspensão de novos ingressos, dentre outras.”

O que diz a Laureate

Procurada, a Laureate respondeu em nota: “Em um mundo em constante evolução, a Laureate Brasil acompanha e analisa as tendências do segmento educacional para disponibilizar à sua comunidade acadêmica o que há de mais moderno e inovador no mercado, incluindo a adoção de diversas tecnologias da informação e da comunicação, que apoiem as atividades pedagógicas e potencializem ainda mais a qualidade do ensino, como o uso de inteligência artificial. Comprometida com o propósito de transformar vidas promovendo o saber e a empregabilidade, a organização reforça que faz parte da autonomia universitária de suas instituições encontrar recursos para melhorar a aprendizagem de seus alunos, tendo o professor como parte fundamental nesse processo. Todas as decisões estão pautadas nas diretrizes do Ministério da Educação (MEC), bem como seguem em conformidade com a legislação brasileira em vigor”.

* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.

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