Melissa Gabrielly tinha apenas um ano e meio. Ela foi internada no último 4 de abril, no Hospital de Pediatria Helena Moura, da rede municipal do Recife (PE), com uma crise de asma. Os sintomas levantaram a suspeita de contaminação pelo novo coronavírus, embora a menina, que nasceu com microcefalia pela síndrome congênita do Zika vírus, já tivesse sido internada outras vezes com quadro asmático.
A família diz que Melissa não foi colocada em isolamento, nem recebeu oxigênio. Ficou em uma enfermaria com possíveis casos de Covid-19 (doença causada pelo novo coronavírus) e pessoas com outros tipos de doenças respiratórias. “Não fizeram testes. Os médicos sequer queriam nos atender por medo de contaminação”, conta a mãe, Fabíola Gomes, 26 anos.
A internação na UTI aconteceu apenas no dia 6, quando a insuficiência respiratória se agravou. A essa altura, a família já tinha conseguido a transferência para um hospital da rede privada, na esperança de receber um atendimento melhor. Mas Melissa, muito debilitada, faleceu um dia depois de ser transferida. “Minha filha morreu à míngua”, denuncia a mãe, que acusa o hospital público de negligência.
A prefeitura do Recife garante que o teste para Covid-19 foi feito um dia depois da internação da menina, no hospital público, mas a mãe sustenta que a testagem só aconteceu no dia 6, dentro da ambulância que transferiu Melissa para a unidade privada. Como o Laboratório Central de Pernambuco (Lacen/PE) leva de três a cinco dias para processar, o resultado negativo só saiu depois do enterro, feito com caixão lacrado e sem velório pela suspeita de coronavírus.
“Não cheguei a me despedir da minha filha”, lamenta Fabíola. No Ceará, a família de um menino com microcefalia, que morreu com suspeita de Covid-19, também foi impedida de velar o corpo por causa da demora no resultado do teste. O resultado dele também deu negativo para o novo coronavírus.
Seja pela própria condição física ou pela negligência nos atendimentos de saúde, as crianças que nasceram com microcefalia por causa da epidemia de Zika vírus no Nordeste – que estourou cinco anos atrás, mas continua fazendo vítimas – estão entre os mais vulneráveis na pandemia do novo coronavírus.
No Brasil, desde 2015, 3.523 crianças nasceram com microcefalia pela síndrome congênita do Zika vírus. A predisposição a doenças respiratórias as coloca no grupo de risco para Covid-19. Ou seja, entre os portadores de comorbidades que podem agravar os sintomas.
“São pacientes com maiores chances de desenvolver pneumonia por apresentarem broncoaspiração (quando o alimento desce pela via respiratória), além de outras patologias”, alerta a médica paraibana Adriana Melo. Ela foi a primeira a descobrir a relação entre o Zika vírus e a microcefalia, ainda em 2015.
A possibilidade de contaminação pelo novo coronavírus apavora as famílias das crianças em razão da letalidade da Covid-19, que já matou mais de 1.500 pessoas no Brasil, de meados de março até agora. Apenas para comparação, no ano passado, a dengue – arbovirose transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, mesmo transmissor do Zika e da Chikungunya – provocou 782 mortes no país, de acordo com o ministério da Saúde.
Sem diagnóstico, nem acompanhamento
A recifense Inabela Souza Tavares, 35 anos, e sua filha Graziella Vitória, 4 anos, que tem microcefalia causada pelo Zika, cumpriram quarentena por suspeita de contaminação pelo novo coronavírus neste mês. No dia 14 de março, Inabela sentiu falta de ar e dor no peito. Foi atendida no Hospital da Restauração, um dos principais da rede pública do Recife, mas liberada com um diagnóstico de virose comum. Dias depois, a falta de ar piorou e surgiram outros sintomas, como diarreia e vômitos.
“Quando fui à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) já foi diferente. Me colocaram em uma sala isolada. Todos estavam com roupas de astronauta”, conta. Os médicos não fizeram a testagem para Covid-19, que no Brasil só é feita em casos graves, mas deram uma recomendação de isolamento domiciliar por 14 dias. Nesse período, Inabela deveria permanecer no quarto, afastada da filha pelo risco de contaminação.
“Como me afastar se sou eu que faço tudo dela? Ela só come comigo”, questiona Inabela. O marido dela não está trabalhando. Ele ajuda nos cuidados com a menina, mas é ela quem assume a maioria das tarefas. Mais de 90% das mães de crianças com microcefalia pelo Zika vírus deixaram de trabalhar para se dedicar totalmente aos filhos, segundo a União de Mãe de Anjos, entidade que apoia as famílias em Pernambuco.
Durante o isolamento, Inabela usou máscara e luvas. Mesmo assim, dias depois Graziella começou a ter febre, vômitos e catarro. A mãe precisou furar a quarentena para levá-la ao posto de saúde. “Fui de máscara, fiquei afastada das pessoas. Não tinha outra opção”, comenta. Durante o isolamento, a família não foi monitorada pelos médicos. “Não recebi sequer um telefonema. Informei a todos que tinha uma filha com a saúde frágil”, conta.
Tratamentos prejudicados
Em vários estados, terapias e consultas médicas de crianças com microcefalia estão suspensas por causa da pandemia do novo coronavírus. Isso acontece pelo risco de contaminação e também pela sobrecarga do sistema de saúde causada pelos doentes da Covid-19.
No Recife, um dos centros de referência para o acompanhamento dos casos síndrome congênita do Zika vírus é o setor de infectologia pediátrica do hospital Oswaldo Cruz. Por lá, os atendimentos a 80 famílias foram paralisados para dedicação aos casos da Covid-19.
“Suspendemos pensando em evitar a exposição das crianças ao coronavírus. Alguns terapeutas estão gravando vídeos para ajudar as famílias a continuarem tratamentos em casa”, esclarece Ângela Rocha, chefe do setor.
O fato é que a suspensão das fisioterapias e de algumas consultas de rotina já está prejudicando a saúde das crianças. “A capacidade de deglutição de Graziella começou a retroceder. Ela está se engasgando com frequência. Faço algumas manobras que a fonoaudióloga ensinou, mas não tenho todos os aparelhos”, conta a mãe da menina. “As pernas de Giovana [4 anos] estão mais rígidas porque ela parou de fazer a fisioterapia. Minha filha sente desconforto. Chora. Fica irritada”, conta a mãe, Gleyse Kelly Silva, 32 anos, que mora no Recife.
A desassistência vista nos centros urbanos é ainda pior nos municípios do interior do Nordeste. “Os atendimentos são em Fortaleza (capital do Ceará) e deslocamentos ficaram inviabilizados. Faltam remédios nos municípios do interior. Como fica a vida das crianças sem as medicações?”, questiona Luciana Martins Arraes, conselheira da Associação Filhos da Benção, que reúne 60 famílias de crianças com microcefalia no Ceará.
Ela mora em Apuiarés, a 120 Km de Fortaleza, com a filha Ana Lis, de 4 anos e meio, que tem microcefalia. Há casos suspeitos do novo coronavírus no município, mas nenhum ainda confirmado. Até a publicação desta reportagem, o governo do Ceará não tinha respondido aos questionamentos sobre a falta de assistência às crianças.
Em vários estados, medicamentos importantes também começaram a sumir das prateleiras de hospitais e farmácias da rede pública. Entidades que atendem as famílias acreditam que a distribuição dos remédios pode estar sendo prejudicada pela crise sanitária.
“O Keppra, que é um anticonvulsivante usado por mais de 60% das crianças, está faltando em várias unidades de Pernambuco”, denuncia Germana Soares, da ONG União de Mãe de Anjos. Sem esse remédio, muitos deles têm várias convulsões por dia. “Também estão faltando outras drogas para problemas neurológicos, como a Carbamazepina e o Frisium.”
Em nota, a secretaria da Saúde de Pernambuco informou que “o Levetiracetam (Keppra) é fornecido aos estados pelo ministério da Saúde e está com envio atrasado pelo órgão federal.” O ministério da Saúde foi procurado reportagem, mas não respondeu até a publicação.
O governo de Pernambuco negou que haja desabastecimento da Carbamazepina. Sobre o Clobazam (Frisium), a secretaria disse ter estoque da apresentação de 10 mg na farmácia do estado e “que aguarda finalização do processo de compra do fármaco na apresentação em 20 mg”, mas não deu data.
A secretaria de Saúde de Pernambuco informou ainda que, para tentar amenizar a suspensão dos tratamentos, no início deste mês, foi realizada a primeira experiência de teleconsulta com uma neuropediatra para crianças com microcefalia, outras deficiências e doenças raras. Mais profissionais da rede de atenção estão sendo capacitados para esses atendimentos.
Zika, coronavírus e vulnerabilidade social
Pesquisadora da Fiocruz, Ana Paula Melo acompanha a situação social das famílias vítimas da epidemia de Zika, em Pernambuco, há cinco anos. Ela lembra que o surto de microcefalia no Nordeste vitimou muitas famílias de baixa renda, que ficaram ainda mais empobrecidas porque a maioria das mães deixou o emprego para cuidar das crianças.
Grande parte dessas famílias está vivendo apenas com a pensão do governo, no valor de um salário mínimo, que se tornou lei este mês. A situação de vulnerabilidade social pode se agravar pelos impactos que a pandemia deve causar na economia do país.
A pesquisadora também alerta sobre o pico dos casos do novo coronavírus, que deve coincidir com o período de chuvas no Nordeste, justamente quando aumentam as contaminações por arboviroses, como Zika, dengue e Chikungunya. Historicamente essas doenças têm atingido mais duramente as áreas pobres, onde falta saneamento básico.
“É preocupante porque as medidas de combate às arboviroses foram afrouxadas no país. Agora, por causa da atenção ao coronavírus, elas estão ainda mais esquecidas”, observa. Segundo o último boletim epidemiológico do ministério da Saúde, somente entre 29/12/2019 e 4/4/2020 foram notificados 525.381 casos prováveis de dengue no país, 15.051 casos de Chikungunya e 2.054 casos de Zika.
Primeira médica a perceber a relação entre o Zika vírus e a microcefalia quer estudar impactos do coronavírus nas grávidas
Com as gestantes incluídas no grupo de risco para Covid-19, pelo ministério da Saúde, Adriana Melo, obstetra paraibana que primeiro identificou a relação entre o Zika vírus e a microcefalia, tenta financiamento para estudar os efeitos do novo coronavírus na gestação.
“Até agora, pesquisas identificaram apenas alguma chance de contaminação no parto. Mas, no Brasil, o alerta se acendeu depois que três grávidas morreram de Covid-19 na mesma semana, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e na Bahia”, diz. Ela já começou a monitorar dez grávidas com Covid-19, sem sintomas graves. Até agora, nenhuma apresentou alteração na formação dos bebês, mas é cedo para conclusões científicas.
Reconhecida como referência na pesquisa do Zika no Brasil, a médica, que também é presidente do Ipesq (Instituto Professor Joaquim Amorim Neto), casa de acolhimento a crianças com microcefalia, em Campina Grande (PB), diz que o Brasil não aprendeu nada com a epidemia do Zika. “Estamos cometendo os mesmos erros do passado. Um deles é negar a gravidade da situação”, considera.
“Hoje é fácil falar de Zika porque todo mundo aceita. Cinco anos atrás, as pessoas diziam que o aumento da microcefalia estava sendo causado por vacinas”, lembra. “Fui a reuniões com o ministério da Saúde onde especialistas disseram que os pesquisadores do Nordeste estavam inventando os casos.”Na opinião da médica, o negacionismo só atrapalha o enfrentamento à grave crise atual. “As pessoas estão nas ruas. Acham que o que aconteceu na Itália não vai se repetir aqui. Sou defensora do SUS (Sistema Único de Saúde), mas sabemos que nunca tivemos leitos suficientes”, alerta. Adriana lembra que quase 50% dos casos de microcefalia por Zika não foram testados no Brasil, porque não havia laboratórios suficientes. “Estamos com o mesmo problema de testes com o coronavírus. Isso sem falar da falta de leitos e de equipamentos de proteção para os profissionais. Faltam investimentos sérios em saúde.”