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Fundação Cultural Palmares usou pandemia como justificativa para atropelar o processo de consulta prévia de uma obra que não beneficiará quilombolas atingidos

Reportagem
4 de junho de 2020
16:10
Este artigo tem mais de 4 ano

Imagine se o governo resolve instalar dezenas de torres de energia de 44 metros de altura na porta da sua casa, e não pergunta a sua opinião? É o que pode acontecer com diversas comunidades quilombolas e ribeirinhas do norte do Pará, onde está prevista a construção de uma linha de transmissão de energia ligando os municípios de Óbidos, Juruti e Parintins. Ao dar o aval para o Ibama conceder a licença prévia ao empreendimento — antes que os moradores fossem consultados — a Fundação Cultural Palmares (FCP) parece atender ao pedido do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de aproveitar a pandemia para “passar a boiada” na Amazônia.

Esta decisão, “em caráter excepcional”, “deve-se à impossibilidade de realização de reuniões nos territórios” por causa da pandemia, e visa “garantir os preceitos administravos e prazos legais” do licenciamento, afirma a FCP no parecer do dia 8 de maio. A entidade condiciona a emissão da próxima licença, de operação — que autoriza o início efetivo das obras — à realização das consultas aos quilombolas.

A decisão contraria não apenas a resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho, que determina a consulta prévia, livre e informada dos povos impactados por empreendimentos, como desrespeita também a Instrução Normativa da própria FCP e uma recomendação conjunta do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público Estadual do Pará (MPE-PA). Procurados, nem o Ibama nem a FCP quiseram se manifestar.

Os quilombolas foram pegos de surpresa, já que o governo sequer os comunicou da decisão. “Sentimos como se não existíssemos”, desabafa Redinaldo Alves, liderança da comunidade quilombola de Arapucu, que fica a 220 metros da área destinada à passagem do linhão. Outras três comunidades quilombolas do município de Óbidos serão cortadas pelas torres de transmissão, assim como 12 assentamentos onde vivem 7.872 ribeirinhos — a informação é do Estudo de Impacto Ambiental feito pelo Grupo Elecnor do Brasil, responsável pelo projeto.

A empresa — uma multinacional de engenharia de origem espanhola — assumiu a obra após um leilão realizado pela Aneel em dezembro de 2018, com um lance de R$ 120 milhões. O objetivo é levar a energia gerada pela Hidrelétrica de Tucuruí até os municípios de Juruti, no Pará, e Parintins, no Amazonas. A linha de transmissão terá 225 km de extensão, 451 torres e vai passar por uma das áreas mais preservadas da Amazônia — a Calha Norte — e que abriga uma das maiores populações quilombolas do país.

Quilombolas não serão contemplados pelo projeto de uso de energia

Seguindo o rito legal, a Elecnor concluiu o “Estudo de Componente Quilombola”, onde são analisados todos os impactos da obra sobre as comunidades. O documento, de 262 páginas, chegou a ser distribuído em março para os moradores, mas ainda faltavam os dois pontos mais importantes do processo de consulta: explicar o estudo para os quilombolas e ouvir a sua opinião. “Ter um papel de 300 páginas com estas informações técnicas não representa nada, é apenas uma etapa formal. Na que tange à compreensão das pessoas é muito desigual. Muitas lideranças são mais velhas, têm dificuldades de leitura, ainda mais com um tema espinhoso como esse”, esclarece Carolina Bellinger, assessora da coordenação da Comissão Pró-Índio de São Paulo, entidade que trabalha com os quilombolas da região desde o final dos anos 1980.

Sebastião Pinheiro Cordovil da Silva, gerente de meio ambiente da Elecnor, garante que a comunidade participou ativamente da construção do Estudo de Componente Quilombola, e que por isso a consulta não é necessária neste momento: “O entendimento da FCP é que esse estudo é validado pela comunidade porque a própria comunidade construiu ele. Então validá-lo agora, no momento da pandemia, […] ou fazê-lo em um segundo momento, não alteraria o resultado final do processo”, diz.

Quilombolas se sentem traídos

Criada para proteger os interesses do povo negro, a decisão da FCP no caso do linhão é mais um capítulo do desmonte da Fundação, avaliam os quilombolas entrevistados pela Agência Pública. “Nós mesmos temos que nos organizar para lutar pelas nossas causas, e deixar de lado a FCP, que tem um coordenador que não está nem aí para os quilombolas”, resume Redinaldo Alves.

O presidente da FCP, Sérgio Camargo, chegou ao cargo em novembro de 2019 sob protestos — o motivo era uma série de publicações, nas redes sociais, em que ele relativizava temas como a escravidão e o racismo no Brasil. A nomeação chegou a ser suspensa por uma decisão judicial, que depois foi revertida a pedido da Advocacia-Geral da União. Na última terça-feira (2), Camargo voltou às manchetes depois que o jornal O Estado de S. Paulo teve acesso a um áudio em que ele chama o movimento negro de “escória maldita”.

Comunidade quilombola de Muratubinha

No dia 26 de maio, mesmo dia em que comunicou o Ibama e a Elecnor sobre o aval para o licenciamento prévio do linhão, Camargo assinou outro ofício avisando órgãos de licenciamento ambiental que a FCP não seria mais o órgão responsável por estes processos em territórios quilombolas. A medida atende a um decreto de fevereiro deste ano do Presidente Jair Bolsonaro, que passou essa atribuição para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), subordinado ao Ministério da Agricultura. Ou seja, a decisão sobre o linhão no Pará acontece em meio a um limbo jurídico, já que os processos estão em fase de transferência para a autarquia — processo que segundo o Incra deve ser concluído até 12 de junho. O órgão ainda precisa publicar uma instrução normativa para definir como os pedidos de licenciamento irão tramitar internamente.

Quilombolas seguirão sem energia

Moradores de Muratubinha reunidos para discutir projeto do linhão

Para as famílias que moram em Muratubinha, luz elétrica é um luxo permitido apenas algumas horas por dia — o suficiente para ver o jornal e a novela. Sem acesso à rede de abastecimento, as casas usam geradores movidos a diesel ou gasolina. Com o linhão, cabos levando a tão sonhada energia vão passar por cima de suas cabeças. Mas a situação vai seguir a mesma. Para distribuir essa energia pelas comunidades ribeirinhas seria preciso uma subestação, que não está incluída no projeto encomendado pelo governo federal.

“As grandes empresas da região vão ser beneficiadas, em Juruti, Parintins… Mas o povo ribeirinho só vai ficar com o prejuízo. Só vai ver a energia passar e sem benefício nenhum”, prevê Raimundo Ramos da Silva, liderança da comunidade Muratubinha. O canteiro de obras — e posteriormente as torres — vão ficar no caminho entre as casas e o Rio Amazonas, de onde muitas famílias tiram o sustento. O trânsito de pessoas será liberado, mas as casas que ficam em uma faixa de até 40 metros de distância das torres terão de ser removidas. Segundo Bellinger, a empresa não fornece informações claras sobre o traçado final da obra, nem quantas moradias serão demolidas.

Mesmo nas comunidades que não serão diretamente atravessadas pelo linhão, existe uma grande preocupação com a presença de centenas de trabalhadores — serão 700, segundo a empresa — que vão circular pelos territórios por mais de um ano e meio. “Preocupa essa presença de uma mão de obra masculina perto da comunidade, o receio de que tenha um apelo para exploração de menores e todas essas coisas que vêm junto com as grandes obras”, conta Bellinger.

Localização do traçado do Linhão

No final de fevereiro, o MPF e o MPE do Pará recomendaram ao Ibama e à FCP que se abstivessem de emitir qualquer licença à empresa, “bem como de realizar atos de qualquer maneira tendentes a permitir o prosseguimento do empreendimento”, até que seja realizada a consulta prévia, livre e informada. Caso as recomendações não fossem atendidas, os órgãos prometiam ingressar com ações judiciais. Procurado pela reportagem, o MPF afirma que o caso está sob análise. Já o MPE-Pará esclarece que, por se tratar de um licenciamento federal, cabe ao MPF dar prosseguimento ao caso.

Uma área sob pressão

“O povo ribeirinho só vai ficar com o prejuízo. Só vai ver a energia passar e sem benefício nenhum”, afirma Raimundo Ramos da Silva, liderança da comunidade Muratubinha

O linhão é apenas uma das preocupações das comunidades tradicionais da Calha Norte do Pará, o maior bloco de florestas protegidas do mundo. Segundo dados do Inpe, nos últimos dez anos foram desmatados quase 1600 km² na região — área equivalente à cidade de São Paulo. A maior pressão vem da pecuária, que cresceu 87% desde 2000, segundo o IBGE.

O avanço dos pecuaristas não provoca apenas o desmatamento, mas também invasões e conflitos de terra. Uma realidade sentida na pele por Cleone de Souza Matos, liderança da Terra Quilombola Peruana. Ele teve que deixar o território em setembro de 2018, depois de ser ameaçado por fazendeiros que se negavam a sair do território tradicional. Matos teme que outras comunidades sofram com o avanço de grandes empreendimentos, especialmente durante a pandemia. “As nossas demandas, as lutas da nossa comunidade, estão todas paradas. Mas os licenciamentos que favorecem aos grandes empreendimentos estão andando”, afirma.

Outra preocupação é o projeto Barão de Rio Branco, anunciado no início do ano passado pelo governo Bolsonaro. O plano inclui a construção de uma ponte sobre o Rio Amazonas e a extensão da BR 163 por toda a Calha Norte, até o Suriname — cortando quatro Unidades de Conservação, seis terras quilombolas e duas terras indígenas. O projeto prevê ainda a construção de uma hidrelétrica no Rio Trombetas, inundando duas terras indígenas e um território quilombola.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Carolina Bellinger/Arquivo pessoal
Carolina Bellinger/Arquivo pessoal
Carolina Bellinger/Arquivo pessoal
Reprodução/EIA
Carolina Bellinger/Arquivo pessoal

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