Em 2018, o pecuarista Jair Roberto Simonato, 63 anos, apareceu sorridente em foto do Instagram de uma empresa que cria, recria e engorda bovinos no Mato Grosso. A legenda da imagem congratula o “parceiro” como um produtor que busca “a pecuária de ciclo curto, com tempo de engorda até 4x mais rápida”.
Mas a legenda não diz que Simonato, com propriedades no Mato Grosso e Rondônia, acumula mais de R$ 20 milhões em multas ambientais desde os anos 2000 por desmatar a Amazônia – e não pagou nenhuma delas, segundo o Ibama.
Em maio, em meio à pandemia de coronavírus, uma multa de R$ 500 mil pesou sobre ele. Segundo o Ibama, por “apresentar informação enganosa nos sistemas oficiais de controle sanitário animal referente ao gado presente na propriedade Fazenda Santa Laura do Xibanti”, em Apiacás, norte do Mato Grosso.
A fazenda em questão ocupa ilegalmente parte do território indígena Kayabi, onde Simonato mantém ainda outra fazenda, a Olho d’Água – ambas embargadas pelo Ibama entre 2016 e 2017 por crimes ambientais como destruir e danificar floresta nativa, fazer funcionar atividade agropecuária sem licença do órgão ambiental, descumprir embargo mantendo pecuária em atividade, impedir a regeneração natural da vegetação nativa da floresta no interior da Terra Indígena Kayabi, entre outras infrações. Há duas semanas, a Agência Pública antecipou que um parecer do procurador-geral da República, Augusto Aras, pode favorecer Simonato e outros desmatadores num pedido de revisão da demarcação do território indígena, conquistada em 2013.
A mais recente multa de Simonato aplicada pelo Ibama não relaciona a infração à prática da “lavagem de gado”, ou seja, quando o boi de desmatamento é transferido de fazendas com embargos do Ibama ou outras ilegalidades para ser comercializado por meio de outras áreas, sem impedimento legal, esquentando o boi de desmatamento que chega à mesa do consumidor.
No entanto, mais de uma centena de Guias de Trânsito Animal (GTA), obtidas pela Pública de uma fonte que prefere não se identificar, sugerem que, entre 2018 e 2019, Simonato transferiu mais de 3 mil bois criados na fazenda Santa Laura do Xibanti para uma área fora da terra indígena, identificada nas GTAs como sítio Nossa Senhora Aparecida – a 60 km da fazenda embargada.
As GTAs são exigidas por lei para cada movimentação e documentam origem e destino, nome, CNPJ, CPF do vendedor e comprador do lote bovino, controle de doenças, quantidade e faixa etária dos animais e se o transporte se destina a cria, engorda ou abate – é um documento sigiloso a que apenas os órgãos emissores e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) têm acesso.
Passando a boiada ilegal
A reportagem confirmou a autenticidade das GTAs e toda a movimentação do pecuarista, que, conforme os documentos, teria contado com a ajuda de seu filho, Talis Roberto Simonato, 35 anos. Em 12 de julho de 2018, por exemplo, Jair passou a Talis 500 bovinos com a mesma origem e destino, ou seja, da fazenda Xibanti para a fazenda Xibanti. Cinco dias depois, em 17 de julho, Talis transferiu 500 bois já em seu nome da fazenda Xibanti para o sítio Nossa Senhora Aparecida – também em seu nome nas guias. Mas, em vez de uma única GTA, os animais foram divididos em cinco, cada guia com cem bois. Entre os dias 18 e 25 de julho, pouco mais de 500 bois foram enviados por Talis do sítio Nossa Senhora Aparecida para confinamento na fazenda Guimarães, da JBS (dona da Friboi e da Seara), no município de Lucas do Rio Verde (MT).
No caso acima, apesar de as guias de trânsito animal indicarem o nome de Talis como responsável pelo sítio Nossa Senhora Aparecida, a reportagem não identificou registro de Cadastro Ambiental Rural (CAR) em nome de Talis no sistema on-line do governo do Mato Grosso.
O CAR é um dos mecanismos utilizados por frigoríficos para monitorar as fazendas fornecedoras de gado, os chamados fornecedores diretos, enquanto todas as outras fazendas onde os bovinos estiveram anteriormente são conhecidas como fornecedores indiretos.
A Unidade Local de Execução (ULE) de Apiacás, ligada ao Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso, responsável pelas GTAs, foi procurada pela reportagem e informou que o sítio Nossa Senhora Aparecida estaria em nome de Jair e do filho Talis e que parte da fazenda Xibanti fora arrendada por Jair ao filho.
Além disso, as coordenadas de geolocalização da fazenda Xibanti e do sítio Nossa Senhora informadas pela ULE são praticamente idênticas aos registros do CAR e das áreas embargadas pelo Ibama.
Procurados pela reportagem, tanto Jair quanto Talis não retornaram os contatos por e-mail e telefone.
Já a JBS confirmou que Talis é seu fornecedor. “O CAR da propriedade mencionada está vinculado ao seu proprietário e associado a um Contrato de Arrendamento de Propriedade junto ao fornecedor Talis Roberto Simonato. Em casos como este, tanto o arrendador quanto o arrendatário são analisados quanto a sua regularidade nas listas públicas (IBAMA e Trabalho Escravo)”, diz trecho da resposta da JBS, que afirmou também que não possui cadastro da propriedade fazenda Olho d’Água nem da fazenda Santa Laura do Xibanti.
É comum ao gado transitar por diferentes fornecedores do nascimento ao abate. Ao transferir, de acordo com os documentos, os animais de uma fazenda “ficha suja” a uma fazenda “ficha limpa”, passando a boiada do seu nome para o filho, Simonato pode ter tentado escapar do radar da fiscalização.
Da terra Kayabi aos frigoríficos da JBS
A JBS assumiu há mais de uma década o compromisso de erradicar de toda a sua cadeia de fornecimento fazendas que desmatam.
O acordo com o Ministério Público Federal (MPF) envolveu outros frigoríficos no chamado “TAC da Carne” (Termo de Ajustamento de Conduta), que prevê a proibição do abate de bois criados em terras indígenas, reservas ambientais e fazendas abertas sem licença ambiental ou flagradas com trabalho escravo. Ou seja, quando o boi é ilegal, a compra deve ser suspensa. As regras do TAC preveem ainda aplicação de multas nos casos de compra de gado de áreas irregulares.
Entre março de 2018 e julho de 2019, Talis Simonato enviou quase 2 mil bois para abate na unidade da JBS no município de Alta Floresta, também no Mato Grosso.
As GTAs indicam que a maior parte do gado do sítio Nossa Senhora Aparecida abatido na JBS tem origem na fazenda Xibanti – uma área embargada de mais de 6.600 hectares, território maior do que o município de Osasco, em São Paulo.
Mas a JBS diz que “não reconhece os documentos e informações apresentadas pela reportagem uma vez que GTAs não estão e nunca estiveram legalmente disponíveis para consulta pública e são consideradas informações privadas e sensíveis pelo Ministério da Agricultura do Brasil”. Afirmou ainda que “não compra gado de nenhuma fazenda envolvida em irregularidades, com embargos ambientais e em áreas protegidas”.
A JBS mantém em seu site a página chamada “Garantia de origem”. Segundo a empresa, o espaço de consulta serve para dar “transparência nas informações e respeito ao consumidor em saber a procedência dos produtos”. A reportagem confirmou, com base nas datas das GTAs, que o sítio Nossa Senhora Aparecida consta nos registros como uma das fornecedoras de gado da JBS.
Além disso, a reportagem questionou sobre ao menos 16 GTAs, com registro de abate no dia 27 de dezembro de 2018, em nome de Talis, que não constam nos registros da página “Garantia de origem” – a esse questionamento a empresa não respondeu.
A JBS confirmou, no entanto, que a planta de Alta Floresta realizou outros abates do Sítio Nossa Senhora Aparecida – exatamente como constam nos GTAs. “Vale destacar que essa propriedade encontra-se em conformidade com a Política de Compra Responsável da empresa e regular em todas as listas públicas consultadas, incluindo Ibama e a Lista Suja do Trabalho Escravo, além do geomonitoramento que verifica desmatamento ilegal e invasão as áreas protegidas”.
Rastreamento falho
A Anistia Internacional lançou neste ano o relatório “Da Floresta à Fazenda”, em que mostra como o gado bovino criado ilegalmente em áreas protegidas da floresta amazônica brasileira também entrou na cadeia de fornecimento da JBS, sobretudo em três áreas protegidas no estado de Rondônia, no norte do país: a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e as Reservas Extrativistas do Rio Jacy-Paraná e do Rio Ouro Preto.
Ao saber da denúncia da Pública, Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional Brasil, avalia que a JBS tem “falhado terrivelmente” no monitoramento de sua cadeia de produção e consumo, sobretudo nos fornecedores indiretos. “Se a JBS monitorasse toda a cadeia, de onde vem o gado desde o princípio, ela saberia sobre essa movimentação irregular e não compraria, o que é uma forma de inibir esse tipo de violação da lei”, diz Jurema.
Para ela, não é uma questão de acusar, mas de chamar a companhia para resolver um “problema grave”. “E a ação da JBS, resolvendo esse problema, pode fazer a diferença”, diz.
Em novembro do ano passado, o procurador Daniel Azeredo, do MPF, um dos principais responsáveis pela formulação do TAC da Carne, em 2009, afirmou que “nenhuma empresa hoje que compra da Amazônia pode dizer que não tem gado vindo de desmatamento em sua atividade produtiva […] Nenhuma empresa frigorífica e nenhum supermercado também”, afirmou.
O Brasil, o maior exportador mundial de carne bovina, tem pouco mais de uma centena de plantas frigoríficas responsáveis por 93% de todo o gado abatido por ano na Amazônia. A maior parte da produção é destinada ao consumo interno e 24% serve à exportação.
No acordo do TAC, os frigoríficos se comprometeram a criar mecanismos para rastrear fornecedores indiretos, mas essa fiscalização é “falha”, reforça Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon, que promove a conservação e o desenvolvimento sustentável na Amazônia e que realizou estudo que aponta falhas nos sistemas de monitoramento, sendo a lavagem de gado um dos problemas.
“A gente vê esse problema continuar porque não existe nem prevenção e nem punição. A lavagem de gado em terra indígena, unidades de conservação é algo gravíssimo”, avalia. Segundo ele, uma forma de prevenir é dando transparência aos dados de guias de trânsito animal. “As empresas não avançaram efetivamente para ter controle dos indiretos e desse tipo de situação de lavagem”, reforça o pesquisador, que cita a operação do Ibama Carne Fria, de 2017, que expôs as falhas desse monitoramento interditando frigoríficos da JBS à época.
Jurema explica que a reivindicação da Anistia é que a JBS verifique tudo, do começo ao fim. “E não é difícil, porque, se você pensar que nós, que somos um movimento social, conseguimos ver, imagina a maior fornecedora de proteína animal do mundo.”
A JBS informou que seu sistema de geomonitoramento “é um dos mais sofisticados do mundo e utiliza os melhores e mais recentes dados em linha com uma abordagem inequívoca de desmatamento zero da companhia. Qualquer fazenda não compatível com as políticas de fornecimento sustentável é bloqueada da cadeia de suprimentos da JBS”, diz trecho da resposta enviada à Pública.
Pressão internacional
Em 2019, o desmatamento na Amazônia alcançou o nível mais alto desde 2009. E em 2020 os números seguem preocupantes.
No início do mês passado, o vice-presidente Hamilton Mourão recebeu uma carta assinada por 40 empresários que pediram combate “inflexível” do desmatamento ilegal na região amazônica e demais biomas. Mourão é responsável pelo Conselho da Amazônia.
Intitulado “Comunicado do Setor Empresarial Brasileiro”, o documento é assinado também por quatro entidades setoriais do agronegócio, do mercado financeiro e da indústria.
As pressões sobre o governo brasileiro têm aumentado exponencialmente. Em julho, fundos de investimento estrangeiros demonstraram preocupação com o nível de queimadas e desmatamento.
A JBS, por exemplo, foi repreendida por “falta de compromisso com a sustentabilidade” e retirada, no mês passado, da carteira de investimentos do fundo finlandês Nordea Asset Management, que controla 230 bilhões de euros (R$ 1,4 trilhão). Em entrevista ao ((o))eco, o chefe de investimentos do Nordea afirmou que a “JBS é o mais problemático dos frigoríficos brasileiros”.
A JBS afirma que “trabalha em várias ações para combater a lavagem de gado (uso ilegal de terceiros para fornecer gado a unidades de processamento), aumentar a rastreabilidade direta do fornecedor e continuar a impulsionar positivamente mudanças estruturais na indústria de carne bovina da Amazônia”.
Afirma, ainda, que “foi uma das primeiras empresas do setor a investir em políticas e novas tecnologias para combater, desencorajar e eliminar o desmatamento na região da Amazônia. O mesmo se aplica a questão dos indiretos para os quais a empresa investe em diferentes projetos, entre eles o estudo de uma abordagem inovadora em blockchain, além do direcionamento de um novo procedimento para que possa ter acesso às GTAs (Guias de Permissão de Trânsito Animal) o que vai possibilitar à JBS e outras empresas processadoras de carne bovina solicitar e monitorar que seus fornecedores diretos comprem apenas animais de fazendas com status ‘GTA-Verde’ (livre de desmatamento)”.
A abordagem inovadora, no entanto, não foi ainda colocada em prática. “A abordagem em blockchain e o procedimento para acesso às GTAs (GTA-Verde) são projetos em desenvolvimento avançado e que, se implementados, servirão ao monitoramento de indiretos”, afirmou.
O desmatamento e a expansão da pecuária na Amazônia estão diretamente relacionados – estudos indicam que ao menos 20% da maior floresta tropical do planeta virou pasto depois de desmatada.