Após intensa disputa nos bastidores, a Anvisa decidiu manter a proibição do agrotóxico paraquate a partir de 22 de setembro. A decisão foi tomada hoje em reunião da diretoria colegiada com um placar apertado: 3 votos por manter a proibição, 2 votos por adiar em um ano. O adiamento abria a possibilidade de liberação do produto, já que o prazo seria justamente para a indústria de agrotóxicos apresentar novos argumentos em defesa do paraquate.
Os dois votos a favor do adiamento, portanto favorável aos fabricantes de agrotóxicos, vieram de diretores indicados pelo presidente Jair Bolsonaro: o presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres e a diretora Meiruze Sousa Freitas. Entre os três diretores que votaram contra o adiamento, também há dois indicados por Bolsonaro.
Este assunto era objeto de intenso lobby dentro da agência, como revelou a série de matérias da Repórter Brasil e Agência Pública. Empresas fabricantes e produtores rurais chegaram a fazer mais de 20 reuniões na Anvisa desde que a proibição foi publicada, em 2017. Neste ano os esforços do lobby se concentraram em torno do argumento de que haveria novas pesquisas que, em tese, poderiam provar que o agrotóxico é seguro. O principal estudo que justificava o adiamento, porém, foi suspenso pelo Comitê de Ética da Unicamp após as revelações de conflito de interesse feitas pela reportagem.
A maior dúvida agora é sobre o que vai acontecer com os estoques de paraquate. Com a promessa de que o lobby conseguiria adiar a data, muitos produtores rurais compraram o produto para a próxima safra. Além disso as empresas fabricantes, entre as quais a Syngenta é líder de mercado, continuaram fabricando e importando o produto. Apenas em 2019, foram mais de 8 mil toneladas de paraquate importadas da Inglaterra para o Brasil pela Syngenta.
Novas vendas ficam proibidas a partir de 22 de setembro, mesma data em que pode ser definido um novo prazo para a utilização dos estoques pelos produtores rurais que já compraram o paraquate. A defesa do uso dos estoques na próxima safra apareceu em junho em manifestação da Anvisa por meio da Advocacia Geral da União e foi reforçado na reunião de hoje por alguns diretores da agência e por representantes da indústria que se manifestaram em vídeos gravados. O principal argumento é o risco de perda econômica dos produtores rurais.
O procurador federal Marco Antônio Delfino de Almeida considera essa uma “emergência pré-fabricada”. “O paraquate não é um medicamento que eu tenho em casa e posso usar a qualquer tempo, ele tem um prazo específico de utilização e o agronegócio tinha pleno conhecimento do prazo para a proibição”. As empresas tiveram três anos para planejar essa retirada.
“Ainda não acabou”
Mas o problema não são apenas os estoques, alerta o procurador federal. Responsável pelas ações judiciais que chegaram a impedir que a Anvisa votasse pela prorrogação, ele acha que ainda é cedo para respirar aliviado sobre a proibição do paraquate como um todo. “Infelizmente, ainda não acabou. Em seus votos, dois diretores voltaram a citar a pesquisa que já foi suspensa”.
Paga pela Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja), a peça central do lobby em defesa do paraquate era uma pesquisa que analisava amostras de urina de parte dos trabalhadores da soja para verificar a presença do agrotóxico. Feito na Unicamp, o estudo foi suspenso após revelações da reportagem da Repórter Brasil e da Agência Pública.
Além do conflito de interesse, a pesquisa apresenta erros na metodologia para garantir a segurança das amostras, segundo com João Ernesto de Carvalho, professor e ex-diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp. Segundo ele, a coleta de urina foi realizado por terceiros, o que não pode acontecer em um estudo desta importância. “Quando você vê o nível de interesse que existe num produto deste, o poder econômico que está por trás, é muito simples sabotarem as amostras, e os pesquisadores não tiveram o mínimo de cuidado com isso”. Carvalho acredita que essa falha será decisiva para o cancelamento final da pesquisa.
Quer receber reportagens sobre os impactos dos agrotóxicos no seu e-mail? Inscreva-se na nossa newsletter!
Embora ela já tenha sido suspensa pelo comitê de ética, ainda será preciso passar por um processo oficial de cancelamento que ainda não foi finalizado devido à pandemia. Procurada pela reportagem, a Unicamp enviou nota afirmando que “o projeto está suspenso no âmbito da Unicamp conforme decidido pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade. O trabalho do Comitê é independente e soberano em relação a outras instâncias da universidade. Todas as informações pertinentes sobre as deliberações do CEP/Unicamp foram devidamente encaminhadas aos pesquisadores”.
Enquanto os trâmites de cancelamento não forem completados dentro da universidade, o procurador teme que a indústria possa continuar usando-a como argumento pela liberação do paraquate. Possivelmente por meio de ações na justiça.
Campeão de vendas e de mortes
Na semana passada, a Repórter Brasil e a Agência Pública revelaram que o paraquate foi o produto proibido na Europa e fabricado no continente que mais teve autorizações para exportação para todo o mundo. Foram 32 mil toneladas, ou 40% do total das exportações da União Europeia de agrotóxicos proibidos em 2018. De acordo com os dados obtidos pela reportagem, mais da metade (77%) saiu da fábrica da Syngenta na Inglaterra.
O paraquate também foi, de longe, o mais exportado para o Brasil: 9 mil toneladas autorizadas em 2018. De acordo com o Ibama, foram vendidos no Brasil 13 mil toneladas nesse ano, ou seja, a produção da Syngenta correspondeu a 68% das compras deste químico no país.
Este mesmo produto foi o agrotóxico autorizado no Brasil que mais tirou a vida de brasileiros na última década. Foram 530 intoxicações registradas pelo Ministério da Saúde, sendo que 138 acabaram em morte. Dessas, 93% foram caracterizadas como suicídio.
Lançado em 1962, o paraquate foi proibido em 2007 na União Europeia e começou a ser reavaliado no Brasil em 2008. Pesquisas indicam que a exposição crônica, que atinge normalmente trabalhadores rurais, está associada ao desenvolvimento de mutações genéticas e a doença de Parkinson nos trabalhadores rurais que o aplicam.
A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida mobilizou diversos pesquisadores e instituições para pedir que a Anvisa mantivesse a proibição ao agrotóxico. No último mês, a organização reuniu mais de 200 assinaturas de entidades, deputados e universidades em uma espécie de resistência à pressão do lobby da indústria. “Comemoramos a decisão, apesar de lamentarmos o esforço despendido em assunto que já deveria estar resolvido há anos”, afirma nota da organização.