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Psicólogos e grupos religiosos promovem terapias de reconversão sexual

Reportagem
17 de dezembro de 2020
12:28
Este artigo tem mais de 3 ano

“Você pode mudar de sexo ou tomar qualquer decisão possível, mas a mensagem é que Deus te fez homem ou fêmea em seu amor, como filho de Deus. As coisas que te perseguem na sua cabeça não têm tanta importância, são vozes que te contam mentiras”, disse Walter Fawcett, brasileiro originário de São Paulo e conferencista durante o II Congresso Integral Sexual “Bajo sus alas” [Debaixo de suas asas], organizado em Lima em 21 e 22 de fevereiro de 2020 pela organização internacional Exodus América Latina.

A Exodus, uma organização declarada extinta em 2013, quando usava o nome Exodus International, e atualmente chamada Exodus Global Alliance, chegou ao Peru pelas mãos do Centro de Recuperação Sexual Homossexual (CREHO), um coletivo local que promove palestras e conferências internacionais para difundir uma proposta: prometer mudanças de orientação sexual para pessoas LGBTQI+ através de agressivas terapias de reconversão sexual.

O centro peruano, que funciona como suporte do movimento no país, é liderado por María Elena Mattos Copari, uma mulher que faz palestras públicas nas quais fala de uma suposta reconversão sexual e cuja história é citada como um caso emblemático no site e nas campanhas de divulgação da Exodus América Latina.

María Elena se apresenta como pastora evangélica e docente, mesmo não tendo títulos acadêmicos certificados pela Superintendência Nacional de Educação Superior Universitária do Peru. Durante a pandemia, ela continuou fazendo palestras e oferecendo terapias de reconversão através de aconselhamento, livros que não reconhecem a identidade de gênero e leitura intensiva da Bíblia. Ela faz também palestras virtuais.

Segundo declarações de María Elena, sua instituição é regida pelos preceitos de “compartilhar experiências, conselhos, orações e, principalmente, descobrir a raiz do problema que aflige cada pessoa, para entender o porquê de seu sofrimento e de suas preferências sexuais”. No entanto, a organização já foi denunciada publicamente pelo Movimento Homossexual de Lima (MHOL) por mentir e promover tratamentos como se a homossexualidade fosse uma doença.

OjoPúblico tentou falar com os diretores desses centros ou algum porta-voz, mas não obteve respostas até o fechamento da reportagem.

CREHO e o grupo ExLGTB Peru oferecem um aconselhamento espiritual que inclui palestras que estimulam a culpa e promovem terapias de reconversão sexual consideradas como atos de tortura pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nos últimos anos, o grupo contou com o apoio de políticos, como o ex-congressista e pastor evangélico Julio Rosas – na época, ele era congressista pelo partido Fuerza Popular, do ex-ditador Fujimori, e vinculado ao “Con mis hijos no te metas” (Não se meta com meus filhos). Em junho de 2013, o movimento convidou representantes do CREHO ao Congresso para realizar a conferência “Identidade e Reorientação Sexual”.

Discurso contra a ciência

Há 30 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade de sua lista de doenças mentais e enfatizou seu repúdio a terapias de mudança de orientação sexual, por falta de justificativa médica e científica, além de representar uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar das pessoas que são submetidas a essas práticas. Já a edição de 2020 da revista oficial da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA, na sigla em inglês) destaca que “um dos maiores erros da história da psiquiatria foi a identificação da homossexualidade como um transtorno”.

No Peru, no entanto, não existem leis que tipifiquem essas práticas como formas de tortura ou que as proíbam de maneira expressa. Como aponta o congressista Alberto de Belaunde (Partido Morado), que defende um projeto de lei para proibir esses métodos, a invisibilização dessas pseudoterapias levou à sua naturalização em alguns consultórios. “Mesmo que seja um assunto presente na comunidade, muitas pessoas se sentem envergonhadas de ter passado por esse tipo de experiência e não querem falar sobre. É urgente termos uma lei que as proíba explicitamente, porque sabemos que são abordagens cruéis, desumanas e degradantes, que vão contra os direitos das pessoas LGBT”, explica. 

Atualmente, o CREHO oferece, em seu site e nas redes sociais, “aconselhamento, acompanhamento e treinamento sobre temas como a Atração pelo Mesmo Sexo (ASM)” e afirma ser um grupo “confiável e responsável”. A líder, María Copari, afirma ter criado o centro após o que chama de “sua experiência homossexual”. Em suas palestras, ela afirma que o “homossexual é uma pessoa infeliz, não só pelos problemas que afetam todos os seres humanos, mas também pela repressão e pelo repúdio que recebem de parte da sociedade”.

O site da instituição peruana informa que ela tem duas sedes. Uma corresponde ao local principal, no distrito de Surquillo, em Lima; e outro, em Pucallpa, na região amazônica de Pucallpa, sob a direção de Fidel Rengifo. Consultada sobre o endereço em Surquillo, a secretaria de Desenvolvimento Empresarial da Municipalidade de Surquillo informou ao OjoPúblico que, no domicílio declarado, está registrada apenas uma casa. Não há nenhum comércio, escritório ou centro com autorização ou licença de funcionamento para qualquer uso que não seja a habitação. Durante a pandemia, o CREHO tem oferecido seus serviços de orientação e apoio através de ligações telefônicas ou conversas virtuais. São frequentes também as conferências públicas.

No entanto, eles não são os únicos que promovem atividades contra a identidade sexual e de gênero. Em junho de 2019, por exemplo, a Paróquia San Pío X, localizada em Lima, realizou um ciclo de conferências sob a organização de Lola Sheen Vergara, uma psicóloga que trabalha como professora principal do Seminário Maior da Diocese de Chosica e afirma ter uma certificação internacional pela Universidade de Utah para a aplicação de terapias restauradoras e outras técnicas para o tratamento da homossexualidade.

Lola tem sua afiliação suspensa, de acordo com informação pública no site do Conselho de Psicólogos do Peru, na sede das regiões de Cuzco e Madre de Dios. Indagado sobre a razão dessa suspensão, o Conselho apenas respondeu que poderia se tratar de falta de pagamento da mensalidade de sua afiliação. Disseram que depois dariam a informação exata, mas não responderam à tentativa seguinte de contato.

Em agosto deste ano, ela participou do Congresso Mariano, desenvolvido pela Diocese de Catamarca (Argentina), para dar uma palestra, via Zoom, chamada “Alienação Parental”, em que compartilhou conteúdos que qualificavam a homossexualidade como um transtorno. 

O aconselhamento espiritual promovido pela Exodus, CREHO e outros grupos religiosos e civis associados não é nada além de uma terapia de reconversão sexual.

Histórias que persistem 

As terapias de reconversão ou restauração da identidade sexual são práticas em que se tenta mudar a orientação sexual de pessoas gays, lésbicas e bissexuais (para heterossexuais), pessoas transgênero ou de gêneros diversos (para cisgênero).

O especialista independente das Nações Unidas Victor Madrigal-Borloz detalha, no relatório “Prática das chamadas terapias de conversão”, as intervenções a que são submetidas pessoas LGBTQI+ no mundo todo. Entre elas, ele identifica as terapias religiosas, consultas pseudomédicas e de saúde mental. Alguns curandeiros e líderes de organizações confessionais fazem até rituais e exorcismos para expulsar “o mal”. Outro tipo de método popular no Peru, explica Madrigal-Borloz, é a recomendação de se masturbar fantasiando com pessoas do gênero oposto. Esse tipo de prática, que pode incluir episódios de violência física e psicológica, ferem a identidade de gênero das pessoas LGBTQI+, segundo reportou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2015.

As terapias de reconversão, contudo, não são exclusivas de grupos religiosos, de acordo com o relato anônimo de uma jovem de 28 anos, a quem chamaremos de Mariela. Ela conta que, quando tinha 15 anos, seus pais a levaram ao consultório de um conhecido psicólogo de Lima, para supostamente tratar sua orientação sexual. “Era um psicólogo caro. Cada sessão custava em torno de US$ 100. Eu me sentia muito mal de não me curar e de meus pais terem que gastar esse dinheiro com as minhas terapias. Me lembro que, quando fui, ele me disse que eu não tinha comportamentos de menina e me deu uma medicação que supostamente iria ajudar para que meus pensamentos não fossem orientados ao lesbianismo”, conta Mariela.

Ela lembra também que o psicólogo disse que a atração que ela sentia por pessoas do mesmo sexo podia ser um transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Para isso, ele prescreveu medicamentos como o Haloperidol, que, segundo ela lembra, só lhe causava muito sono.

Em novembro de 2019, o coletivo Mais Igualdade Peru apresentou o estudo “Saúde mental e população LGTB”, que identifica e denuncia esse tipo de terapia de reconversão sexual no Peru. A partir da pergunta “alguma vez você já frequentou um serviço de saúde mental que tenha tentado mudar sua orientação sexual ou identidade de gênero?”, o estudo identificou que quase 40% das pessoas responderam positivamente.

Desse grupo, 5% afirmaram ter sido internados e cerca de 62% das vítimas que responderam ter sido submetidas a esse método disseram ter passado por esses episódios sendo menores de idade. Outro dado revela que 90% das pessoas submetidas a essas terapias tinham menos de 25 anos.

Em uma entrevista ao OjoPúblico, a diretora executiva do Mais Igualdade, Alexandra Hernández, questionou que sejam precisamente os profissionais de saúde que estejam desenvolvendo esses falsos tratamentos. “Com esse estudo, pudemos identificar que são psicólogos ou psiquiatras, formados em uma prática que deveria ser científica, mas que colocam sua fé na frente e aplicam esses métodos, que são considerados negligentes e, em alguns casos, [incluem] violência ou tortura.”

O psicólogo Carlos Tacuri, membro da Empatia LGTB, uma equipe especializada que oferece atendimento psicológico de desenvolvimento emocional para pessoas LGBTQI+, afirma que diferentes pacientes – principalmente adolescentes e jovens – relataram incidentes de más experiências com psicólogos que têm algum tipo de crença religiosa. “O atendimento psicológico deve buscar reafirmar a identidade da pessoa, ajudar a descobri-la sem nenhum tipo de pressão, com espaço e liberdade para que essa pessoa vá se conhecendo”, explica o especialista.

Responsabilidades 

Em 2019, a Defensoria do Povo solicitou que o Conselho de Psicólogos do Peru investigasse a prática de terapias de conversão sexual no país, além de estabelecer uma posição institucional a respeito desses métodos.

A resposta da organização foi ambígua: “Nós nos comprometemos a realizar, dentro do possível, a identificação daqueles casos em que os membros de nossa ordem possam ter estado envolvidos [nas terapias de conversão] e, pelo procedimento prévio correspondente, adotar as medidas corretivas, conforme nosso código de ética e deontologia”, indica o documento assinado pelo decano Luis Pérez Flores. Desde então, o conselho profissional não se manifestou sobre o assunto.

Em conversa com o OjoPúblico, Flores disse ignorar que existam denúncias desse tipo contra algum dos 38 mil psicólogos afiliados. “Desconheço que essas coisas aconteçam. Dentro da comunidade psicoterapêutica, com certeza não acontece”, afirmou. O também presidente da associação peruana de psicoterapia acrescentou que não é função do Conselho de Psicólogos investigar essas práticas, visto que o trabalho do conselho profissional é garantir o cumprimento da ética e deontologia pelos profissionais.

“Se uma pessoa LGBT tiver passado por isso, ela tem que indicar especificamente de que profissional se trata”, afirma. A Defensoria do Povo quis saber também se o Conselho Médico Peruano havia recebido denúncias sobre essas terapias e se elas teriam sido atendidas. A decana da instituição, Liliana Cavani Ravello, respondeu que eles não têm ingerência sobre o assunto, já que é uma competência do Conselho de Psicólogos do Peru.

O OjoPúblico conversou com o membro do Comitê de Ética do Conselho Médico Peruano Alfredo Celi, que afirmou: “Este ponto [a prática de terapias de conversão sexual] não tem sido objeto de discussão ou debate. Também não recebemos nenhuma queixa ou denúncia sobre algum médico”, explicou.

Vácuos legais

A Defensoria do Povo defende que são necessárias duas ações concretas: uma reforma legal que proíba explicitamente esse tipo de prática com uma norma de caráter administrativo ou penal – se for o caso – e que os conselhos profissionais em questão o reconheçam como uma infração da ética profissional. “Se não tivermos um marco claro que proíba alguns tipos de práticas, será difícil obter uma punição, ainda mais se elas são acobertadas de alguma maneira”, explica o defensor adjunto para os Direitos Humanos e Pessoas com Deficiências, Percy Castillo.

A atual Lei de Saúde Mental, que tem como objetivo proporcionar o marco legal para a garantia do acesso aos serviços de saúde mental para todos os peruanos, destaca brevemente a questão da diversidade sexual. No entanto, ela não especifica nenhum tipo de sanção para os profissionais que não cumpram a lei.

Atualmente, a Diretoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde trabalha em uma norma técnica que destaca a orientação sexual dos adolescentes LGBTQI+. Esse enfoque responde a um detalhe crucial: é nessa etapa que a pessoa começa a identificar sua orientação sexual e, em alguns casos, pode ter dificuldades de falar sobre o assunto com sua família ou pessoas do seu entorno.

O diretor executivo da Diretoria de Saúde Mental, Yuri Cutipé Cárdenas, disse que em 2019 encaminhou à Superintendência Nacional de Saúde (Susalud), instituição encarregada de proteger os direitos no âmbito da saúde de cada peruano, a consulta sobre os centros que oferecem essas falsas terapias. “A Susalud nos respondeu que, como essas intervenções são reconhecidas como pseudopráticas, estão fora da fiscalização, e compete ao Ministério Público investigar”, afirmou Cárdenas.

O OjoPúblico, por meio dos canais de transparência da Susalud, solicitou informações sobre denúncias que impliquem psicólogos no uso de terapias de conversão sexual, mas nos responderam que “não existem relatórios de investigações e punições a clínicas ou centros que ofereçam essas terapias”. Informaram também que a Susalud “não sanciona médicos ou psicólogos, apenas instituições, quando os direitos dos cidadãos são infringidos dentro do estabelecimento de saúde e a pessoa lesada realiza a respectiva denúncia”. No entanto, destacaram que não haviam recebido nenhuma denúncia até a data.

Para o porta-voz da Empatia LGTB, Carlos Tacuri, com a ausência de leis que as proíbam, essas práticas seguirão incentivando a humilhação, a discriminação e os sentimentos de vergonha e culpa em suas vítimas. “Ainda mais diante da inação das organizações responsáveis por velar pela saúde de todos”, afirmou. Isso é um assunto pendente, afirma Tacuri, porque, de acordo com seu trabalho, a pior coisa que uma pessoa LGBTQI+ pode enfrentar depois de passar por essas experiências é o repúdio à sua própria essência e à sua vida. “Isso pode levar a transtornos graves como depressão, ataques de pânico, abuso de substâncias e, inclusive, levar ao suicídio”, explica o especialista.

O especial Nega-te a ti mesmo é uma série de reportagens investigativas coordenada pela Agência Pública e realizada em parceria com Ojo Público do Peru, El Surtidor do Paraguai, Mexicanos contra la corrupción y la impunidad e a repórter Desirée Yépez, para La Barra Espaciadora.

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