O Telegram foi o aplicativo mais baixado do mundo em janeiro – mais que o WhatsApp – e ultrapassou a marca de 500 milhões de usuários. E boa parte desses downloads veio do Brasil. Foram mais de 25 milhões de novas contas entre os dias 9 e 12 de janeiro.
Foi nesse período que o presidente Jair Bolsonaro criou seu canal Telegram – unindo-se ao pequeno grupo de líderes mundiais que têm contas oficiais na rede. Em menos de uma semana, o presidente brasileiro já tinha mais de 350 mil seguidores lá. Na data de publicação desta matéria, são quase 437 mil. Os seguidores são ativos: em média, os posts do presidente chegam a 183 mil visualizações cada um, de acordo com a ferramenta de métricas Tgstat.
Pelo menos 12 parlamentares da base governista, além de órgãos do Executivo federal, criaram contas na plataforma em janeiro.
Um deles foi Daniel Silveira (PSL-RJ), preso em flagrante em 16 de fevereiro por “atacar” os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e propagar “a adoção de medidas antidemocráticas”, além de defender o AI-5 em vídeo nas redes sociais. O deputado é alvo de duas investigações no STF: uma delas apura a convocação de atos autoritários que defendiam o fechamento do STF e do Congresso no ano passado, e a outra investiga a divulgação de ataques e notícias falsas contra os ministros da corte nas redes sociais.
Por determinação do ministro Alexandre de Moraes, Silveira teve suas contas banidas no Twitter, Facebook e Instagram, mas seu canal no Telegram continua ativo, com mais de 9 mil seguidores. O vídeo que levou à sua prisão, em que ele ataca ministros do STF e defende o AI-5, foi excluído do YouTube e de outras plataformas, mas segue circulando no Telegram através de outras contas, segundo descobriu a reportagem da Pública.
Em resposta à Pública, a assessoria do deputado responsabilizou o Telegram pela manutenção do vídeo: “Se o vídeo ainda está em circulação no Telegram, quem tem que responder é o Telegram”. A rede não se manifestou diante das tentativas de contato pela reportagem.
Antes da prisão de Silveira e da exclusão do vídeo no Youtube, o conteúdo foi postado no canal de Telegram do blogueiro Allan dos Santos – também investigado pelo STF nos inquéritos das fake news e atos antidemocráticos –, com mais de 111 mil seguidores. Dali, foi encaminhado por outros canais e grupos no Telegram, como o do próprio Silveira no mesmo dia. No grupo de fãs do canal Terça Livre o vídeo continuou sendo compartilhado até 19 de fevereiro – dois dias depois da prisão de Silveira.
O Telegram é a maior rede social ainda ativa de Daniel Silveira – suas contas no Twitter, Facebook e Instagram foram bloqueadas por ordem do STF. Na plataforma, sua assessoria de imprensa continua enviando mensagens diárias de apoio ao deputado e elogios ao governo federal para seus mais de 9,5 mil seguidores. “Tem sido uma excelente plataforma, justamente por ela respeitar a liberdade de opinião”, avalia a assessoria do deputado preso, que informou que continua em contato com os eleitores também por WhatsApp, e-mail, telefone e pelas redes de extrema direita Parler e Patriabook.
Por meio do Telegram, a assessoria divulgou um abaixo-assinado pela liberdade de Silveira. “Precisamos de mais 285 assinaturas. Você pode assinar?”, perguntam ao compartilhar post de outro usuário. No canal de Silveira, o chamado para a assinatura alcançou mais de 13 mil visualizações.
Antes da prisão, circularam também posts desinformativos sobre a pandemia de coronavírus nos canais do deputado. Ele defendeu a utilização do tratamento precoce, sem eficácia contra o coronavírus. Encaminhou publicação do site Estudos Nacionais que tira de contexto fala da ativista Débora Diniz para fazer parecer que ela defendia a pedofilia.
Em resposta à Pública, a assessoria de Silveira indagou: “Desinformação sobre a pandemia? Sério?”. De acordo com eles, as informações que compartilham são embasadas por “médicos e cientistas que não prestam continência ao protocolo global”. Sobre as postagens a respeito da ativista Débora Diniz, afirmaram que “nada foi descontextualizado”.
Os administradores encaminham aos seguidores do deputado mensagens de outros canais bolsonaristas no Telegram, como do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), de Allan dos Santos ou do influenciador Leandro Ruschel – esse foi identificado pelo STF como parte de “mecanismo de criação e divulgação de fake news” – e conteúdos do site Pleno.News, considerado por especialistas ouvidos pela Pública como um dos que mais disseminam desinformação.
Parlamentares bolsonaristas usaram também seus canais no Telegram para sair em defesa de Silveira. Em mensagem replicada de seu Twitter, Carlos Jordy (PSL-RJ) xinga e chama ministros do STF de ditadores por causa da prisão do deputado. “Não iremos recuar!”
A Pública analisou os canais oficiais no Telegram de órgãos do Executivo, do presidente Jair Bolsonaro e seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), além de 14 parlamentares, entre senadores e deputados. A análise revelou que órgãos oficiais do atual governo e políticos da base bolsonarista têm buscado no Telegram uma nova forma de comunicação, por vezes para fugir dos mecanismos de moderação de conteúdo de outras redes.
Migração coordenada
Para David Nemer, pesquisador e professor de estudos das mídias na Universidade da Virgínia, Estados Unidos, a criação de canais de parlamentares bolsonaristas no Telegram foi organizada. “Todos abriram os canais mais ou menos na mesma época”, destaca.
A grande maioria desses parlamentares criou canais no Telegram entre os dias 9 e 15 de janeiro deste ano. Carlos Jordy e Alê Silva (PSL-MG) já tinham canais antes, mas a atividade deles aumentou no primeiro mês do ano junto com a adesão do próprio presidente à rede.
Para divulgarem seus recém-criados canais, os políticos utilizaram suas outras redes sociais. “Espero vocês lá [no Telegram]”, tuitou Carla Zambelli. “Posso contar com você?”, perguntou Flávio Bolsonaro no Facebook. Vários parlamentares publicaram mensagens semelhantes. Em outros casos, alguns pedem, no Telegram, que os próprios seguidores divulguem o canal: é o caso de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Major Vitor Hugo (PSL-GO).
Além dos parlamentares, órgãos oficiais do Executivo abriram canais no Telegram em janeiro: a Secretaria Especial de Comunicação Social do Governo (Secom) e os ministérios do Turismo, Infraestrutura, Cidadania e Saúde. Estes publicam apenas informações institucionais de suas pastas. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal também têm contas na plataforma, mas elas foram criadas ainda em 2020.
“O canal do Ministério da Cidadania no Telegram é mais uma ferramenta de transparência, de prestação de contas e de contato direto com o cidadão”, explicou a pasta. Já o Ministério da Infraestrutura informou à reportagem que a criação do canal de Telegram “se deu em razão da percepção do aumento do número de cadastros de usuários na plataforma”. A Pública indagou os outros ministérios sobre os recém-criados canais, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
O número de seguidores varia: a parlamentar mais seguida é Carla Zambelli, com 64.577 inscritos. Ela considera que “o público tem aderido”’, tornando o Telegram uma “ferramenta importante para divulgarmos o que temos feito”, afirmou à Pública. A menos popular na rede é a deputada Aline Sleutjes (PSL-PR) que mal chega a 400 seguidores.
Gabinete do ódio migra para o Telegram
As deputadas Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli e os três filhos de Bolsonaro, além dos assessores da Presidência da República Tércio Arnaud Tomaz e Filipe Martins – ambos associados ao chamado “gabinete do ódio” –, são alguns dos bolsonaristas que abriram contas no Telegram em janeiro. Lá, em meio a informações sobre a atividade parlamentar, eles publicam desinformação sobre a pandemia de Covid-19 e ataques ao Supremo Tribunal Federal, segundo apurou a reportagem.
Um dos conteúdos que mais circularam nas últimas semanas entre canais e grupos bolsonaristas no Telegram se refere a uma frase da ativista dos direitos humanos Débora Diniz tirada de contexto para fazer parecer que ela defendia a pedofilia. O presidente Jair Bolsonaro foi um dos que publicaram o conteúdo incorreto no Telegram; o post chegou a mais de 186 mil visualizações. Flávio Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, Filipe Barros (PSL-PR), Carlos Jordy, Daniel Silveira e Chris Tonietto (PSL-RJ) também compartilharam posts sobre o tema no Telegram.
Desinformação sobre a pandemia também foi gerada por outros políticos. Carlos Bolsonaro desestimulou as medidas de combate à pandemia ao mesmo tempo que criticou o governador de São Paulo, João Doria, opositor de Jair Bolsonaro. Em seu canal do Telegram, o vereador ironizou manchete que afirmava o alto número de casos em São Paulo: “Mas quarentena indiscriminada, lockdown geral e ciência não evitam mortes?”, perguntou, omitindo que o estado nunca decretou lockdown.
Nemer avalia que os parlamentares podem ser responsabilizados por suas postagens no Telegram, já que são canais próprios, diferentemente de grupos de WhatsApp dos quais eles façam parte, e “são compartilhados por eles como canais oficiais” em outras redes. “Ou seja, se alguma desinformação for compartilhada lá [no Telegram], onde só pessoas autorizadas podem compartilhar [em nome do parlamentar], a responsabilização é direta.”
Só no Telegram
Grande parte dos conteúdos divulgados nos canais de Telegram de parlamentares é uma réplica do que é publicado nas outras redes sociais. No entanto, alguns deles já começaram a investir mais na plataforma.
“Sempre vou postar aqui primeiro”, promete o assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Filipe Martins, a seus 35 mil seguidores no Telegram. Em seu canal, ele compartilha longos textos com reflexões sobre a conjuntura nacional da perspectiva conservadora e fotos de bastidores da agenda do presidente, que depois também são publicadas no seu Twitter e Instagram.
Já o presidente Jair Bolsonaro publicou uma série de postagens exclusivas para seus seguidores no Telegram. Trata-se de cinco banners que anunciam medidas tomadas pelo governo federal com o slogan “não verá na mídia” ou “a imprensa não divulga”.
“Ministério da Saúde destina verba para gestantes e puérperas em Manaus”, diz uma das imagens que não foi publicada em nenhuma das outras redes sociais de Jair Bolsonaro ou de órgãos do governo federal.
O vereador Carlos Bolsonaro publicou alguns banners com o mesmo slogan. Em 2019, ele admitiu ter acesso à conta de Twitter do presidente e publicar em nome dele, apesar de não ocupar cargo no governo federal.
Alguns áudios trazem posicionamentos políticos, mesmo sobre temas científicos como a pandemia de coronavírus. “Não entendo como alguém pode escolher tomar a CoronaVac”, questionou Carla Zambelli em áudio no Telegram, mesmo depois da aprovação da vacina pela Anvisa. Na mensagem, considera que tomar a vacina é ir contra a ciência. O áudio pede que os seguidores votem em uma enquete que ela criou no Twitter, levando o público para outra rede.
Questionada, a deputada negou que as informações compartilhadas sejam falsas. “Talvez possam ser consideradas desinformativas para quem não concorda e decide tachar como ‘falso’, desconsiderando as fontes nas quais sempre nos baseamos.”
Carla Zambelli ainda explicou que abriu canal no Telegram “por precaução”, “devido a diversas exclusões de perfis e páginas de políticos e movimentos ativistas”.
A Pública entrou em contato com todas as personalidades citadas na matéria, mas somente Carla Zambelli e a assessoria de Daniel Silveira responderam no prazo estipulado.
Fugindo da “censura”
No dia 10 de janeiro, a deputada Bia Kicis anunciou a criação de seu canal do Telegram. “Precisamos encontrar novos caminhos para nos comunicarmos”, postou em seu Twitter, convidando seus seguidores a migrar para a outra plataforma.
A publicação foi acompanhada de um vídeo no qual a parlamentar fala sobre uma suposta “perseguição que está sendo feita aos conservadores nas redes sociais, tudo sobre o aplauso da mídia”. Ela cita como exemplos o banimento das contas de Donald Trump do Twitter, Facebook e Instagram e as limitações feitas pela Amazon à plataforma Parler – uma rede com pouca moderação de conteúdo.
Outros parlamentares criaram contas no Telegram sob esse mesmo argumento de perseguição das redes tradicionais aos conservadores. A primeira publicação da deputada Caroline de Toni (PSL-SC) no seu canal de Telegram, criado em 13 de janeiro, é um áudio no qual a parlamentar fala que “a liberdade de expressão está sendo violada pelos progressistas e donos das plataformas [de redes sociais]” e defende o PL 291/2021, proposto por Daniel Silveira antes de ser preso.
O projeto busca “vedar a retirada de mensagens de usuários por provedor de aplicação” e foi divulgado nos canais de Telegram dos deputados. Além de Silveira, mais 13 parlamentares da base governista assinam a proposta, como Bia Kicis, Chris Tonietto, Filipe Barros e Carla Zambelli.
Para a pesquisadora Aleksandra Urman, que pesquisa comunicação política e ciência social computacional na Universidade de Berna, na Suíça, a acusação de que as redes sociais perseguem e censuram conservadores é “definitivamente mentirosa”. “As plataformas moderam conteúdos que são explicitamente violentos ou danosos, e isso acaba se sobrepondo às narrativas desses atores [conservadores].”
Telegram é rede mais “radicalizadora”, dizem especialistas
A afeição da extrema direita ao Telegram é explicada por algumas funcionalidades e premissas da rede, como o foco na privacidade com forte criptografia, a possibilidade de se chegar a muitas pessoas rapidamente – os grupos podem ter até 200 mil usuários, e os canais têm número ilimitado de inscritos – e a promessa de que a rede “não vai censurar ninguém baseado em suas visões”, segundo a pesquisadora. “Mesmo que alguém esteja expressando visões que são consideradas ilegais em alguns países, eles não vão censurar enquanto tudo seja pacífico”, conclui.
David Nemer acrescenta mais um motivo para a migração: a possibilidade de maior alcance e engajamento orgânico, possível no Telegram e no WhatsApp.
Além disso, na visão dos especialistas, redes de mensagens como WhatsApp e Telegram são mais “radicalizadoras”, já que lá “só se compartilha aquilo que satisfaz”, como afirmou Nemer.
Aleksandra destaca que no Facebook ou no Twitter os usuários têm algum teor de “interação com o mundo exterior”. “Porém, no Telegram, assim que o núcleo extremo migra, eles formam sua própria câmara de eco e são radicalizados.” De acordo com ela, desde que a extrema direita passou a se reunir por lá, a rede começou a “dar mais destaque” à necessidade de os conteúdos serem pacíficos. Caso não sejam, os canais podem ser retirados do ar ao serem reportados por usuários ou identificados pela moderação.
Entretanto, na avaliação da pesquisadora, a moderação “ainda não é suficiente”, já que novos canais surgem para substituir os deletados.
Já Nemer considera que o Telegram é muito mais próximo do WhatsApp, que continua sendo “antro da desinformação e do discurso de ódio” no Brasil. Mas, para Aleksandra, a adesão de Bolsonaro e de outros políticos ao Telegram “pode tornar a plataforma mais mainstream” no país.
Um empecilho para a extrema direita no Telegram seria a atual impossibilidade de monetização do conteúdo, importante para o financiamento dos atores. Para resolverem essa questão, os canais compartilham muitos links de redes como o YouTube, que paga aos produtores de conteúdo por anúncios exibidos antes e durante os vídeos.
A reportagem questionou o Telegram sobre a adesão da extrema direita à plataforma e suas políticas de combate ao extremismo e desinformação, mas não obteve resposta.