Os povos indígenas são quem tem evitado de maneira mais efetiva o desmatamento das florestas da América Latina e Caribe nos últimos anos, principalmente quando seus territórios tradicionais são demarcados e protegidos. É o que constata o novo relatório “Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal”, da Organização das Nações Unidas (ONU), lançado nesta quinta-feira (25) e produzido a partir da revisão de mais de 300 estudos acadêmicos.
A Agência Pública conversou com a médica indígena Myrna Cunningham, presidente do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac), que elaborou o documento junto à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Cunningham, natural da Nicarágua e indígena do povo Miskito, explicou que as principais descobertas do relatório têm base na ciência. Pesquisas apontam que, entre 2000 e 2012, a taxa de desmatamento em florestas dentro de terras indígenas demarcadas foi 2,8 vezes menor do que fora dessas áreas na Amazônia boliviana, 2,5 vezes menor na parte brasileira e duas vezes menor na porção colombiana.
A médica reconhece que o Brasil enfrenta um período de ameaça aos direitos indígenas devido ao governo de Jair Bolsonaro, que em mais de dois anos não demarcou nenhuma terra indígena e travou pelo menos 70% dos processos em andamento. Ela diz, no entanto, que o relatório deve ser útil para colocar na mesa evidências que podem ajudar os povos indígenas brasileiros. “Acredito que o relatório ressalta e evidencia tudo o que é negado pelo presidente”, afirma.
Cunningham avalia também que a situação do Brasil é reflexo de movimentos de supremacia branca, que têm ressurgido em vários lugares do mundo nos últimos anos, com destaque para os Estados Unidos. “Vocês estão em um dos lugares onde isso se reflete de forma tão descarada e sem vergonha”, destaca. “Não é uma situação única, mas, pela dimensão do Brasil e pelo que representa para a Amazônia, é assustador.”
Por que demarcar e fortalecer a fiscalização das terras indígenas na América Latina e Caribe é uma forma eficiente e economicamente viável de proteger as florestas e mitigar as mudanças climáticas?
Primeiro porque, tal como documenta o relatório, as áreas controladas por povos indígenas têm uma taxa mais baixa de desmatamento e, portanto, ainda guardam muita biodiversidade. Isso, por sua vez, ajuda na redução da fome, porque as pessoas que vivem nesses territórios podem ter acesso a alimentos tradicionais que resolvem seus problemas de alimentação. No entanto, reconhecer esses territórios como indígenas não é caro. O relatório traz alguns dados que mostram que, neste processo, se ganha mais do que se investe [nesse reconhecimento].
Por que é imprescindível efetivamente demarcar as terras indígenas para que isso aconteça?
Estejam formalmente demarcados ou não, há jurisprudência afirmando que os territórios tradicionais são propriedade dos povos indígenas, e contar com um documento que comprove a propriedade sobre um território coletivo fortalece o controle sobre ele.
Quando o processo de demarcação é feito respeitando o mapeamento tradicional indígena, a apropriação daquela terra por seu povo é fortalecida – os limites vão sendo definidos conjuntamente, e com isso são desenvolvidos mecanismos de proteção dessa área. Há séculos, para os povos indígenas, não era essencial o papel escrito, mas agora é importante que contem com um documento respaldando sua posse sobre o território, para que possam negociar com o Estado e organizações privadas. O documento obriga que sejam feitos protocolos de consulta prévia, por exemplo. Ele dá às comunidades um poder que é válido no mundo ocidental, perante as normas ocidentais.
O relatório cita algumas formas de proteção aos territórios indígenas: investir nos direitos coletivos à terra, compensar as comunidades pelos serviços ambientais prestados, promover o manejo florestal comunitário e a governança territorial. Poderia explicar como funciona cada uma dessas estratégias?
A primeira recomendação se refere ao reconhecimento do direito à terra – que foi feito de distintas formas por diversos governos da região – e tem a ver com marcos legislativos, procedimentos para a demarcação e mecanismos para a governança dessas áreas. A segunda medida que o relatório propõe tem a ver com a compensação pelos serviços ambientais. Obviamente, esse é um enfoque bastante ocidental, porque, para os povos indígenas, a terra e os serviços ambientais não têm preço, é o que herdamos de nossos ancestrais. Mas o que o relatório fez foi documentar algumas experiências na região que demonstram que, à medida que os povos indígenas se articulam com a economia de mercado, necessitam de recursos financeiros para complementar sua alimentação, suas necessidades. Então, a compensação pelo serviço que prestam ao proteger as florestas ajuda a suprir as necessidades materiais que foram geradas nas comunidades como resultado de sua articulação com o resto da sociedade. Há evidências de que essa compensação ajuda a fortalecer os mecanismos de controle e a apropriação sobre a terra não somente pelos povos indígenas, mas pelo restante da população que se beneficia da água de um rio protegido, por exemplo. O terceiro mecanismo que o relatório recomenda tem a ver com as práticas de manejo tradicional que os povos indígenas desenvolveram para cuidar das florestas, e que devem ser utilizadas, apoiadas e financiadas para que ajudem a reduzir o desmatamento e a proteger a mata. Já o quarto ponto está relacionado ao fortalecimento das organizações locais, pois tudo isso que o relatório menciona não é possível se as redes comunitárias indígenas estiverem afrouxadas. É importante fortalecer os modos de governança próprios das comunidades, pois elas sustentam os conhecimentos tradicionais e permitem sua transmissão de uma geração a outra – como proteger a água, as florestas, quais cantos ensinar às crianças para proteger o rio, por exemplo. A ideia é que o fortalecimento organizativo de base e territorial contribui para que todas as outras medidas sejam bem-sucedidas.
O relatório cita que os fatores culturais, geográficos, econômicos e políticos que contribuíram para a preservação das florestas em terras indígenas até hoje estão “mudando rapidamente”. Que fatores são esses e por que estão se deteriorando? De que maneira esse contexto tem piorado nos últimos anos?
Temos na América Latina e no Caribe um modelo econômico que prioriza o extrativismo em um cenário de flutuações dos preços das matérias-primas. Essa aposta econômica afeta os territórios indígenas e os direitos coletivos, já que não raro as áreas onde há minério, por exemplo, coincidem com terras indígenas. O avanço desse modelo econômico coloca em risco os povos indígenas: não só partes de seus territórios foram sendo cedidas como muitas comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais e levadas a ambientes urbanos. Tudo isso mudou a cultura desses povos: o contato com sua língua, seus locais sagrados e a relação com o ambiente, o que afeta também sua noção de identidade e sua saúde mental. Esses fatores obviamente impactam as florestas, porque aqueles que as têm protegido ao longo dos séculos vão perdendo esses valores. Por isso, o trabalho com povos indígenas para proteger as florestas tem que ser integral, que é o que propõe o estudo. Neste momento, temos que encontrar uma fórmula para a recuperação pós-Covid que não mais admita este meio ambiente onde há justamente o desequilíbrio que causa novas doenças. É fundamental chegarmos a uma estratégia de proteção às florestas, e os povos indígenas têm muito o que contribuir para isso.
Embora tenha uma matriz energética considerada limpa, o Brasil ainda emite grande quantidade de gases de efeito estufa devido principalmente ao desmatamento. Como a falta de fiscalização e proteção aos territórios indígenas pode agravar ainda mais esse cenário?
O não reconhecimento da contribuição dos povos indígenas à proteção do meio ambiente e a violação de direitos indígenas já garantidos pela sua própria Constituição e pelo marco jurídico internacional afetam tudo o que se refere às mudanças climáticas. Isso tudo aumenta o desmatamento e os fatores que intensificam a emergência climática. O relatório propõe medidas cuja implantação não é tão complicada, mas é preciso ter vontade política, respeito à diversidade de conhecimentos, disposição de sentar junto e encontrar soluções em comum entre os indígenas, o Estado e as empresas.
O Brasil tem um presidente que se opõe publicamente à demarcação de novas terras indígenas e incentiva as invasões a esses territórios não apenas no discurso, mas com a máquina do Estado. Como é possível fortalecer os povos indígenas e seus territórios neste contexto em que estamos, já que “o momento de atuar é agora”, como destaca o relatório?
Definitivamente o Brasil é uma situação preocupante para todos os povos indígenas do mundo, não só da América Latina. Do ponto de vista da biodiversidade e do meio ambiente, o Brasil representa um enorme potencial pelo importante papel que tem sobre a Amazônia, mas também é onde há centenas de línguas indígenas em desaparecimento, por exemplo. O fato de o Brasil ter um governo e um presidente que negam esses direitos o coloca num nível muito alto na agenda global dos povos indígenas. Preocupa-nos enormemente que continuem a criminalização dos povos indígenas, os assassinatos e a ameaça de novas leis que revertam os avanços nos direitos indígenas. Acredito que o relatório ressalta e evidencia tudo o que é negado pelo presidente, colocando na mesa evidências que podem ajudar os povos indígenas brasileiros. Além disso, está sendo lançado num momento em que o mundo busca respostas sustentáveis diante das distintas crises – alimentar, ambiental – que estamos enfrentando, e coloca os povos indígenas na agenda global, o que é muito importante à medida que nos aproximamos da próxima COP [a Conferência da ONU sobre o Clima, em novembro deste ano], que vai avaliar o cenário após o Acordo de Paris. Há um contexto global favorável para se discutir a situação dos povos indígenas em todo o mundo, e nesse cenário as populações indígenas do Brasil têm uma relevância enorme devido à situação política e ambiental do país.
O presidente Jair Bolsonaro diz que é preciso abrir as terras indígenas à exploração econômica para que as próprias comunidades “garantam seu sustento” a partir de atividades como a agropecuária de grande escala, mineração e garimpo. Você avalia que o relatório fornece subsídios para que esse argumento seja contestado?
Estamos falando de comunidades que não estão em isolamento voluntário, a maioria das populações indígenas na América Latine e Caribe está em contato com o resto da sociedade e inserida no modelo econômico vigente, que impõe a necessidade de recursos para que supram suas necessidades. Quando o relatório fala de apoio às modalidades de manejo florestal comunitário, está se referindo a isso. As comunidades que fazem extração de borracha e artesanato com materiais da floresta, por exemplo, têm que vender sua produção; as que trabalham com turismo comunitário querem atrair pessoas sensíveis ao tema ambiental e aos direitos indígenas. Não é possível implementar medidas de proteção ambiental sem levar em conta as necessidades econômicas dos povos indígenas para que continuem realizando seu trabalho enquanto guardiões da floresta. O que o relatório pretende é encontrar uma maneira de se fazer isso que seja alternativa ao modelo extrativista, que priorize um modelo econômico culturalmente aceitável, que garanta o equilíbrio entre os seres humanos e os demais seres.
Cada vez mais os cientistas admitem e defendem que os conhecimentos tradicionais indígenas devem ser valorizados se a humanidade quiser preservar sua vida no planeta. Qual é a importância desses saberes para a proteção das florestas?
O conhecimento indígena é resultado do que as comunidades vêm acumulando e desenvolvendo ao longo de gerações para manter as florestas na situação em que estão atualmente. Esse conhecimento combina elementos tangíveis e intangíveis que devem ser levados em conta. Há elementos intangíveis que se relacionam, por exemplo, com as fases da lua, orações e presenças de espíritos, e são fundamentais. Se queremos dar uma resposta a muitos dos nossos grandes problemas, temos que reconhecer a importância desses conhecimentos que sempre utilizamos, mas não valorizamos. Na Rio-92 houve o reconhecimento desses conhecimentos, mas uma coisa é reconhecer, outra é valorizar, e outra ainda é usá-los de forma respeitosa, o que envolve também o respeito aos portadores desses saberes.
Qual o papel de lideranças indígenas mulheres e jovens para que o enfrentamento da crise climática?
Há alguns povos indígenas matriarcais em que as mulheres cumprem um papel fundamental de liderança, mas, independentemente disso, na maioria das comunidades as mulheres desempenham a função de portadoras e reprodutoras do idioma, dos conhecimentos sobre medicina e alimentos tradicionais. São elas que sabem como promover esses saberes, muitas vezes de baixo para cima, quando não lhes é permitido ocupar cargos de liderança em suas comunidades. Agora, quando se conversa com lideranças indígenas sobre suas formas de governança, fica claro que o maior desafio é a transmissão intergeracional. Houve um momento em que se pensou que a juventude indígena já não tinha interesse em seguir com as práticas tradicionais, mas acredito que nos últimos anos temos visto uma redução paulatina disso – não digo que o problema foi resolvido, mas sinto que há mais jovens regressando às suas comunidades e buscando formas de exercer sua identidade de distintos modos. Há jovens que protegem as florestas cantando rap, jovens que o fazem com sua poesia e arte. Tem um movimento de jovens indígenas na América Latina e Caribe preocupados, porque se deram conta de que, se não assumirem a liderança, correm riscos de perder muitos dos conhecimentos de seus avós. Diante da pandemia de Covid-19, com tantos falecidos, há maior nível de consciência da juventude.
De que modo a pandemia tem dificultado a proteção aos povos e territórios indígenas nas Américas?
As medidas de isolamento promovidas por grande parte dos governos da região foram medidas hipócritas. A maioria dos países seguiu aprovando concessões às empresas de mineração sobre os territórios indígenas, por exemplo, no meio da quarentena. Temos visto casos dramáticos como o da Colômbia, onde o fato de as comunidades terem realizado isolamento voluntário e protegido seus territórios para se defender do vírus representou uma ameaça aos narcotraficantes, que utilizavam essas áreas para transportar droga – e o que eles têm feito é assassinar as lideranças indígenas. As mortes dos anciãos indígenas também têm sido um desastre, porque com eles se vão diversos conhecimentos tradicionais, muitas vezes sem que tenham cumprido seu ciclo de transmissão aos mais novos. O caso do Brasil é muito mais dramático porque tem um governo contrário aos povos indígenas e que está tentando empurrar leis contra os seus direitos.
Na sua avaliação, o Brasil está caminhando no sentido oposto ao resto mundo no enfrentamento da crise climática e na garantia dos direitos indígenas?
Antes fosse só o Brasil. O que temos visto nos Estados Unidos nos últimos meses é o ressurgimento da supremacia branca, e o que se observa no Brasil é uma expressão desse sentimento. Gostaria de pensar que isso acontece apenas no Brasil, mas não é verdade: são milhões de pessoas no mundo que pensam ser superiores aos indígenas, negros e outros grupos e que querem impor sua visão de mundo, cultura e modelo econômico. Do ponto de vista dos povos indígenas e comunidades afrodescendentes, o que se vê é um contramovimento a isso, de maior equilíbrio em relação à natureza, mais tolerante e intercultural. Essa situação é muito complexa, e vocês estão em um dos lugares onde isso se reflete de forma tão descarada e sem-vergonha – é preciso dizer. Não é uma situação única, mas, pela dimensão do Brasil e pelo que representa para a Amazônia, é assustador.