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“Eu não consegui digerir o que o presidente falou, porque a dor foi minha, o choro foi meu”, diz Luciana Nogueira

Entrevista
7 de abril de 2021
04:00
Este artigo tem mais de 3 ano

Na noite de domingo, 4 de abril, Luciana Nogueira estava ansiosa perto do seu celular. Faltavam três dias para o segundo aniversário desde o assassinato que chocou o Brasil, quando seu esposo foi morto por 9 dos mais de 80 tiros de fuzil disparados por militares no Rio de Janeiro, e nenhum jornalista havia pedido uma entrevista sobre o caso. “Ninguém me procurou para falar nada”, escreveu pelo WhatsApp. “O esquecimento é minha preocupação”.   

Luciana também não esquece da declaração do presidente da República, Jair Bolsonaro, que se pronunciou uma semana depois do caso qualificando o assassinato de seu marido de “incidente” e afirmando taxativamente: “O Exército não matou ninguém”. “Eu não consegui digerir o que o presidente falou, porque a dor foi minha, o choro foi meu”, diz a viúva, que se preocupa com o julgamento na Justiça Militar. 

O processo se arrasta na Justiça desde 2019. A data do julgamento chegou a ser marcada para hoje, mas com a piora da situação da Covid-19 no Rio de Janeiro, a audiência foi suspensa e não tem previsão para ocorrer. “Será que eu vou ter Justiça se as coisas estão caindo no esquecimento?”, pergunta Luciana, que passou a ser “pai e mãe” do filho Davi desde a morte do músico Evaldo Rosa, “uma pessoa que faz falta todos os dias”. 

Técnica em enfermagem, Luciana se diz “esgotada, cansada” como toda a sua classe profissional, durante a pandemia. Ela teve que largar um dos dois empregos que tinha para cuidar do filho, hoje com 10 anos de idade. Juntos, recebem acompanhamento psicológico a cada 15 dias, e tomam antidepressivos desde a tragédia que mudou a suas vidas. Sua esperança agora é de um julgamento justo na Justiça Militar, responsável pelo processo contra os 12 militares acusados por alvejar o carro da família em Guadalupe, próximo à Vila Militar.

“Peço muito a Deus que ele envie pessoas humanas pra estar julgando tudo isso, que eles possam, pelo menos um pouquinho, sentir a minha dor”, diz Luciana. “Você ter seu marido assassinado no seu lado, criar o seu filho sem pai.” 

Luciana tem razão de se preocupar com a impunidade na Justiça Militar, uma vez que dentre 35 casos de mortes de civis com fortes indícios de envolvimento das Forças Armadas, nenhum militar foi punido.    

A morte de Evaldo Rosa aconteceu durante uma operação irregular do Exército que teve sua legalidade questionada pelo Ministério Público Militar. Com incursões na favela, a Operação Muquiço tinha todas as características de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem, o que só poderia acontecer com a autorização expressa do presidente da República. Na época, as promotoras militares chegaram a pedir a responsabilização criminal do general que ordenou a ação. A Procuradoria-Geral da Justiça Militar arquivou a queixa. A história foi revelada pela Agência Pública no ano passado. 

Luciana dos Santos Nogueira foi companheira de Evaldo Santos – fuzilado pelo Exército do Rio – por 27 anos

Leia a entrevista. 

Como está o seu filho, Davi? 

Está indo, uns dias melhores e outros piores. Aí veio essa pandemia, ele ficou meio desesperado, com medo de morrer, com medo de eu morrer. Tem dia que ele está pra baixo, que ele está mal. E agora fazem duas semanas que a mãe do Duda [Evaldo Rosa] faleceu, aos 68 anos de infarto, e pra ele foi um baque muito grande, ele acaba se questionando, fazendo um monte de perguntas sobre a vida, por que as coisas acontecem… Mas eu tenho feito de tudo para ele estar bem.  

Você e seu filho seguem fazendo acompanhamento psicológico? 

Sim. Eu vou de 15 em 15 dias porque eu trabalho em escala de plantão, são 12 horas por 36. Eu gosto de eu mesma acompanhar ele, e estar presente. Infelizmente não tenho condições de a gente ir uma vez por semana. 

Você falou que a mãe do Evaldo faleceu?

Faleceu, infelizmente. Ela estava tão esperançosa, esperando pelo dia 7 de abril [data em que ocorreria o julgamento], mas infelizmente ela não conseguiu chegar a tempo de o que vai acontecer com tudo isso. 

Como está o processo? 

Ao mesmo tempo que a gente tem esperança que aconteça alguma coisa – a gente precisa ter fé –, vivendo no país em que a gente vive, na desigualdade em que a gente vive, onde o que é errado acaba sendo tido como certo, fica difícil [acreditar]. 

Agora, no dia 7, a gente ia para o julgamento – meu filho faz questão de ir também – e infelizmente, devido à pandemia, ele foi adiado e ainda não tem previsão de quando será. Mas desde o momento que eu recebi dos advogados a notícia de que [o julgamento] estava marcado, têm sido momentos de tensão, de ansiedade, porque, querendo ou não, a nossa vida, a minha, a dos irmãos do Evaldo, a do meu filho, está em suspenso. A gente fica muito ansioso para ver se eles realmente vão pagar pelo que fizeram. 

Você esperava que fosse demorar tanto?

Por causa da forma que tudo aconteceu, da dimensão que tomou a situação, que o Brasil todo viu, achei que as coisas poderiam ter um retorno mais rápido. Infelizmente já vai para dois anos e até agora eu não tenho certeza de nada. Quando perguntam como está o processo, como estão andando as coisas, eu ouço de algumas pessoas: “você sabe que não vai dar em nada, porque foi o Exército brasileiro, principalmente que o nosso presidente é militar também”, “o que eles vão tentar é te dar um ‘cala a boca”, “você sabe que isso não vai dar em nada porque vai ser julgado por eles mesmos [militares]”. 

Isso é muito angustiante. 

O filho do músico Evaldo Rosa estava dentro do carro quando o pai foi assassinado

Seu filho é muito maduro, né? Como você tem falado com ele sobre a perspectiva do julgamento?

Eu falei com o Davi, que ele quer ir junto no julgamento. Ele sempre foi muito adulto, e ainda mais depois que o pai morreu. Eu não tenho como esconder coisas dele. Eu até já tinha falado pra psicóloga, que se for da vontade dele ir, ele tem que ir, sim. Mas trabalhei muito a mente dele pra ele saber que no julgamento a gente pode ter uma resposta positiva, ou podemos ter uma resposta negativa. 

Eu perdi o meu marido, ele perdeu o pai. Então, eu gostaria que as pessoas que vão estar nesse julgamento do caso, que se colocassem no meu lugar, ou sentissem pelo menos a minha dor, pra ver se eles vão decidir de uma maneira positiva. Se eu não acreditar, a gente acaba esmorecendo, e a gente precisa seguir, por mim e pelo Davi. E tenho certeza que se fosse o contrário, o Duda faria o mesmo por mim. 

Então, por mais que as circunstâncias digam que não vai dar em nada, eu tenho esperança realmente de  que algo possa acontecer – que eu sei que não vai trazer o Duda de volta, pelo menos vai amenizar a falta dele. E para que a Justiça seja feita. Para que não tenha outros familiares, outras mulheres, outras mães, que passem o que eu passei, que não sintam o que eu senti. 

O que você acha do processo na Justiça Militar?

Olha, é tudo muito lento, as coisas são muito obscuras, porque eles [os militares] são julgados por eles mesmos. E peço muito a Deus que envie pessoas humanas para estar julgando tudo isso, que eles possam, pelo menos um pouquinho, sentir a minha dor. Você ter seu marido assassinado ao seu lado, criar o seu filho sem pai… 

E você sabe que o caráter do seu filho está se formando, ele fica fazendo perguntas como “mamãe, por que mataram se meu pai não estava correndo?”, “por que eles fizeram isso com meu pai?”. São tantos questionamentos nessa criança.

“Eu não consegui digerir o que o presidente falou, porque a dor foi minha, o choro foi meu”, diz Luciana

Você acha, como algumas pessoas te disseram, que pode ter algum efeito o fato do presidente ser militar?

Foi o que eu falei pra você, quando aconteceu algumas pessoas [lembram] que ele [Bolsonaro] disse [sobre o fuzilamento de Evaldo] – “O Exército não matou ninguém”.  Mas ali era uma pessoa do bem, que não passava perigo nenhum pros militares, não tivemos atitude suspeita, nada que justificasse a atitude que tiveram com a minha família. 

Eu não consegui digerir o que o presidente falou, porque a dor foi minha, o choro foi meu. 

Como você vê a cobertura da imprensa? 

No começo as pessoas me procuravam muito. Isso ajuda. Hoje não me ligam mais. Isso é muito ruim porque você acaba se sentindo… poxa, o meu caso está caindo no esquecimento, meu Deus, será que eu vou ter Justiça se as coisas estão caindo no esquecimento, se ninguém me procurou? 

Bate um pouco de desespero imaginar que o caso do meu esposo vai ser esquecido. É um pouco desesperador. 

É muito importante que a mídia fique em cima, que fique sempre lembrando. 

Como você se sente ao saber que os militares estão soltos?

É uma injustiça! Eu me sinto impotente, caramba, eu não posso fazer nada. Não pode nem fazer manifestação para lembrar do meu caso! Mesmo não sabendo o que vai ser do julgamento, a espera é muito ruim. 

Aí eu penso, agora vem essa pandemia de novo, será que isso vai se estender por mais um ano, mais dois anos? Sabe quando você se sente presa? Eu não sei explicar. Eu me sinto muito presa.

Enquanto isso não se concluir, eu me sinto presa. As coisas precisam andar, eu preciso saber no que isso vai dar. 

Desde que foi marcado o julgamento eu tô com uma crise de ansiedade muito grande, meus cabelos caíram, eu engordei.  

Você tem medo que a sociedade se esqueça do caso?

Tenho medo que se apague na memória social. Porque na minha memória,  nunca vai ter esquecimento. Na minha memória, do meu filho, das pessoas que estavam presentes, isso vai com a gente até o último suspiro. 

Eu nunca vou esquecer, não tem como esquecer. É como diz o meu filho: “mamãe, eu lembro de tudo”. 

O que você gostaria de falar para as pessoas que acompanharam o caso, dois anos atrás? 

Eu queria dizer pras pessoas que acompanharam, que tentaram entrar em contato comigo, que eu sou grata a todos eles, pelo carinho. A palavra ajuda muito, sou muito grata, o país me abraçou. Tinha pessoas que choravam comigo, choravam por mim, sou eternamente grata por isso. 

Evaldo é uma pessoa que faz falta todos os dias, que deixou tanta saudade… Muitas vezes me bate um desespero, uma crise de ansiedade. Como ontem, que foi Páscoa. E aí você pensa na rotina de 27 anos de quando você tinha a pessoa do lado…  

Quando você conhece uma pessoa nova, e conta a sua história, qual a reação? Elas conhecem o caso? 

Sempre que eu conheço uma pessoa nova, que eu não conhecia, e falo sobre a minha história, as pessoas são muito solidárias. Sempre falam, “poxa, como eu chorei com você”, “meu Deus, aquilo foi uma coisa absurda”, “eu senti vontade de te abraçar, de estar com você, de dar um abraço no seu filho”. O Brasil foi muito solidário à minha dor. 

AF Rodrigues/Agência Pública
AF Rodrigues/Agência Pública
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