Maria Helena Silva Barbosa, 39, a Lena, vive na comunidade de Goiana, município de Solânea, na região do Curimataú, a mais seca do Território da Borborema, na Paraíba, com o marido e dois filhos, de 11 e 5 anos. Ela conta que, sem terra para viver ou produzir, seu pai e sua mãe viviam como nômades, sempre correndo para o brejo quando a seca apertava.
Obter água para as necessidades mais básicas era difícil. Saíam na madrugada, a mãe e as filhas, cada uma com um baldinho, para pegar num barreiro, escondido do dono. Enquanto isso, o pai e os filhos mais velhos se concentravam na dura lida do agave para a produção da fibra do sisal, que, ao lado do algodão, teve importante significado econômico na Paraíba, e na degradação do bioma Caatinga.
Banho era um luxo reservado ao bebê da família porque a água mal dava para cozinhar e beber numa família de nove pessoas. As roupas eram emprestadas ou doadas. Quando a mãe conseguiu passar num concurso para trabalhar em serviços gerais numa escola, a família pode começar a comprar suas coisinhas. Mas o estudo também era limitado para as meninas, que precisavam se revezar para cuidar do mais novo. Um ano uma estudava, no outro ano, a outra. “Era uma pobreza extrema”, resume.
Um dia a mãe levou os filhos para pesar e vacinar e ficou sabendo que ia acontecer uma reunião sobre cisterna. “Quase caiu a casa. O pai disse que era cilada, que aquilo não existia. Mãe foi pra reunião e quando chegou já tava cadastrada”, relata. A resistência inicial transformou-se em euforia logo no período chuvoso seguinte, que encheu a cisterna e passou a garantir água para as necessidades básicas ali ao lado da casa.
A chegada das cisternas no sertão, no início dos anos 1990, mudou a vida das famílias de Lena e tantas outras mulheres do Território da Borborema, uma área de 3.340 km2 no agreste paraibano. Foi esse um dos frutos da união das comunidades com organizações da sociedade civil reunidas na Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de entidades fundada em 1993 que se contrapôs às políticas desenvolvidas pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), construídas fora da realidade das populações que viviam havia gerações no Semiárido. Hoje, a ASA reúne 3 mil organizações, entre elas a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.
“Até então se olhava para a região como a terra do atraso, da pobreza, da não produção, do chão rachado, e as políticas, de uma forma geral, trabalhavam na lógica da concentração, de água, de fazer grandes reservatórios; e dos recursos de produção, como a terra. O Semiárido tem, em média, três a quatro meses de chuva no ano, e o resto é seco. As populações construíram a estratégia de estocagem de água, semente, forragem, alimentos para atravessar o período de estiagem. O que a ASA fez foi olhar para esse conhecimento e sistematizar, trocar ideias com academia, construir adaptações e inovações. Além de mobilizar para ampliar e criar políticas públicas para apoiar essas experiências de forma a dar escala. Aconteciam nas comunidades, mas eram pouco visíveis e tinham pouco apoio das políticas públicas, mas essas experiências já vinham construindo um conceito de resiliência”, conta Marcelo Galassi, coordenador da AS-PTA.
E é novamente com base na união das comunidades e na troca de saberes que a AS-PTA e o Polo da Borborema, uma rede de sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais fundada em 1996 e que também integra a ASA, se preparam para vencer outro desafio: a desertificação progressiva do Semiárido, impulsionada pela degradação ambiental e pelo aquecimento global. Esse é o foco do programa Innova Agricultura Familiar, desenvolvido desde 2021, que pretende fortalecer a capacidade de adaptação da agricultura familiar do Semiárido brasileiro às mudanças climáticas por meio do uso de técnicas agroecológicas com base na gestão coletiva de recursos e na união das comunidades que compartilham origens e lutas.
“Alguns princípios marcam essa trajetória, como a construção a partir da valorização dos recursos naturais, de olhar para o ambiente, não a partir da seca, do que não tem, porque sempre tem. Mesmo no Semiárido, mesmo em anos de seca, as famílias estavam ali produzindo, construindo seu espaço, articulando mercado, mesmo sem política pública”, pontua Roselita Victor, diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras rurais de Remígio e coordenadora política do Polo da Borborema. “Qual foi o papel da ASP-TA e do Polo? Foi impulsionar, mobilizar e trocar conhecimento dentro do território, contribuir para esse processo”, explica. “Outro olhar foi sobre o papel das organizações sociais, daí a forte presença dos sindicatos e das organizações comunitárias e a valorização do conhecimento dos agricultores e agricultoras”, diz.
A ação começou com o processo de formação do Projeto Borborema Agroecológica, onde foi apresentado o Fundo Rotativo Solidário, um aprendizado coletivo na gestão de recursos, organizado por mulheres e jovens. Com o uso planejado do fundo, eles pretendem reforçar a segurança alimentar no arredor de casa, com reúso de águas, diversificação produtiva com distribuição de mudas, tela para criação de galinhas, kit para produção de hortaliças, kit para apicultura, incentivo à criação de ovelhas da raça nativa morada nova (que conseguem se alimentar da caatinga, mesmo na seca). Há também equipamentos de uso coletivo, como bomba para recarga de cisternas, máquina ensiladeira e unidade de beneficiamento de mandioca, e fogões ecológicos, que economizam lenha e não fazem fumaça dentro de casa.
Roselita explica que as organizações têm participado ativamente desse processo, que tem provocado debates sobre “a gestão comum da terra, semente, água” e tem levado a comunidade a refletir sobre avanços e desafios. “A gente percebe claramente que, quando vão convergindo ações comunitárias, a comunidade enfrenta a seca sem muita desigualdade. Se tem alimento e água estocados, não precisa vender os animais no tempo de estiagem para não morrer de fome. Isso é o que chamamos de comunidade resiliente.”
Desertificação e aquecimento global
O Curimataú, o Cariri e o Seridó são as áreas mais secas do estado, como explica o professor Bartolomeu Israel de Souza, do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A região também foi seriamente afetada pela seca de 2012 a 2017, que, segundo o professor, foi a maior do século. Além disso, apesar de a seca ter dado uma pausa, em algumas regiões, como no Cariri paraibano, ela voltou com força em 2021 e 2022.
“No Semiárido, as chuvas são heterogêneas no espaço e no tempo. Mas, de 2012 para cá, não teve um período bom de chuva. Uma seca quase sem interrupção. Precisamos de um plano de Estado, pensar o Nordeste, o Semiárido, pensar a região de forma diferenciada porque é diferenciada. Um dos grandes problemas dos planos de governo, que não são planos de Estado, além de não terem continuidade, é pensar o Nordeste como uma coisa só, e somos muitos. Essas diferenças dificilmente são levadas para as políticas públicas que têm o poder de mudar maciçamente”, explica.
Para ele, projetos como o Innova vão na direção certa, embora sejam “gotas d’água no oceano”: “O que eles fazem com sistemas agroflorestais, introduzindo espécies exóticas e nativas cujo potencial já é conhecido, é fundamental. O plantio de espécies nativas, inclusive cactáceas, como cardeiro e mandacaru, como cercas-vivas, é uma inovação criada por essas ONGs, baseada em algo muito pouco explorado ainda, mas que tem um potencial enorme para a região”, diz. São projetos pequenos, muito locais, mas estão “mostrando que existe solução”, afirma o professor.
Uma solução que aparece de forma bem concreta para as mulheres que participam do projeto, como Verônica de Macena Santos, 47 anos, presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Palma, que vive em uma comunidade que, como a de Lena, fica no município de Solânea, onde choveu aproximadamente 100 mm em todo o ano de 2021. Ela nos recebeu com a filha Larissa, e o caçula, que tem síndrome de Down, Luís Antônio, de quase 10 anos, a alegria da casa ao lado do touro Castelo, um ano mais novo que ele. O marido, José Luís; a filha mais velha, Letícia, 18; e o outro filho, Lismar, estavam no roçado com um cunhado de Verônica.
Nascida e criada ali, ela conta que nunca saiu da região, nem para passear, e que nem tem vontade. Como moradora da comunidade vizinha, enfrentou algumas secas sem os recursos de hoje e lembra a dificuldade vencida. “A seca da década de 1980 mandou quase todo mundo pro brejo. Só ficou o meu pai e uma senhorinha e outra. A gente ia buscar água no açude pra tudo, só quatro barris de 20 litros, eu e meu irmão mais velho com dois burros para oito cabeças de gado. Mas acabamos as criações porque não existia a silagem”, lembra. “Antes, a gente plantava no pé, hoje tem a plantadeira, a matraca. O que fazia em dois dias, agora começa 7h e 10h já acabou”, comemora.
Maria Lúcia da Silva Andrade Pereira, 34 anos, da comunidade de Benefício, em Esperança, também está feliz da vida com as mudanças no “arredor de casa” para “investir mais na produção de alimentos e não depender tanto dos comprados na rua”. Atualmente ela se divide entre cuidar das três filhas, uma ainda bebê, e aproveitar as possibilidades deste novo momento. O marido trabalha como pedreiro para garantir a renda familiar. Enquanto isso, Lúcia, que já se desdobra no cuidado da casa, da família, na produção de sequeiro (quando chove) de feijão e milho e nas ovelhas, já sonha em plantar coentro, cebolinha, tomate, alface, repolho e morango no canteiro que está sendo implantado. Isso sem contar com os pés de acerola, mamão, goiaba e romã.
Ela conta com duas cisternas de primeira água (16 mil litros cada uma) e um tanque de pedra que divide com o sogro (fica no limite das duas propriedades). A motobomba comunitária ajuda a puxar água do tanque para as cisternas com muito mais eficiência que o antigo motor. O fogão ecológico já é seu xodó: “Quem diria que mulher ia querer cozinhar em fogão a lenha nos dias de hoje?”.
Não muito longe dali vive sua xará Ana Lúcia Teofilo da Silva, 52 anos. Lucinha é uma simpatia só. Sorrisos não lhe faltam, mesmo falando de dias difíceis. Onde mora não costuma faltar água porque tem lajedos e tanques de pedra. Já costuma fazer cerca-viva com cardeiro, um cacto típico da região, planta alguns produtos de sequeiro, como milho e feijão, e cria alguns animais, trabalho muito facilitado depois da técnica da silagem.
No momento, não esconde a ansiedade por receber a tela do fundo rotativo, para organizar a sua criação de galinhas, e o fogão ecológico, que não faz fumaça nem calor dentro de casa.
O sentido de morar em um lugar seco
“A resiliência não se constrói só com iniciativas isoladas, é construída com a integração dessas inovações, do acesso a sementes, forragem, terra, aumento de fertilidade e produção de alimentos nos quintais. Combinadas, reduzem o impacto da estiagem, sobretudo nesse período que atravessamos agora de chuvas irregulares”, reforça Marcelo, da AS-PTA.
Ele destaca que, tão importante quanto as inovações, são os processos organizativos das comunidades para a gestão coletiva dos recursos, como os bancos de sementes comunitários, que funcionam como reservas estratégicas, os mutirões para construir cisternas, casas, silos, limpar barreiros, os fundos rotativos solidários, uma forma coletiva de gerir os recursos e apoiar os processos com mais autonomia em relação à dependência do Estado.
“Na pandemia, produzimos vídeos (“Terreiros de Inovação”) para as comunidades, apresentando as possibilidades de tecnologias sociais. No fim, perguntamos com o que se identificavam. Mas a decisão passou por esse processo de reflexão. Quando elas compreendem o sentido de morar num lugar seco e constroem esse processo organizativo, têm condição de dizer ao poder público que tipo de investimento querem, precisam em suas comunidades”, finaliza.