Em apenas três anos, a vida do jornalista Carlos Dada – e da maioria dos cidadãos de El Salvador – mudou drasticamente. Foi esse o tempo necessário para o presidente Nayib Bukele ampliar seu poder ao interferir na Câmara Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça – que equivale ao nosso STF – e o procurador-geral destituindo todos os seus membros e dando posse a novos nomes, alinhados ao governo. A partir daí, Bukele passou a perseguir jornalistas, suprimir as críticas e a prender milhares de pessoas indiscriminadamente.
Dada, um dos mais famosos jornalistas da América Latina, é fundador do site El Faro, especializado em cobertura de segurança pública, que venceu dezenas de prêmios internacionais pelo seu jornalismo de qualidade. Nesta entrevista à Agência Pública, ele conta como Bukele operou o desmonte da democracia em El Salvador. Não apenas sua equipe teve seus celulares invadidos pelo software espião Pegasus, mas ele mesmo, diretor da empresa, teve sua sala invadida por um drone espião enquanto trabalhava de janela aberta. Segundo ele, já há 12 jornalistas em exílio fora do país.
“Um dos principais problemas para os jornalistas salvadorenhos é que não conseguimos prever que o quadro institucional democrático era tão fraco, tão frágil, e que iria ceder tão rapidamente a um governo autoritário”, diz Dada.
Leia a seguir os principais trechos entrevista:
Bukele chamou a atenção do mundo quando decidiu mudar a Câmara Constitucional. No dia 2 de maio do ano de 2021, o Congresso controlado por ele destituiu todos os integrantes da Câmara Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça e o procurador-geral. Na época, o presidente afirmou que a comunidade internacional não tinha nada a ver com isso. Meses depois, anunciou que iria concorrer à reeleição, o que é proibido pela Constituição de El Salvador. Antes disso, havia sinais de que ele pretendia se transformar em um líder autoritário?
Já havia alguns sinais de seu autoritarismo, de sua corrupção. Mas quase ninguém queria ver, porque a erosão dos partidos políticos tradicionais era tão grande que as pessoas preferiam manter viva a esperança de que um novo grupo no poder pudesse trazer mudanças significativas para suas vidas. Ninguém imaginava que ele seria capaz de destruir tão rapidamente todas as instituições democráticas que o país tanto se esforçou para construir. Provavelmente nem ele mesmo imaginava que não encontraria resistência significativa.
Aqui no Brasil, o vice-presidente Hamilton Mourão, que foi eleito senador, já avisou que o governo pretende ampliar o número de juízes na Suprema Corte. Bolsonaro fez o mesmo. Você pode contar o que aconteceu depois da mudança na Suprema Corte em El Salvador? Que ações Bukele tomou que não teriam sido possíveis se existisse um STF moderando seus poderes?
Bukele percebeu, principalmente durante a pandemia do coronavírus, que a Suprema Corte poderia ser um obstáculo para alguns de seus objetivos ou poderia servir de contrapeso, que é o que toda democracia exige. Ele precisava de maioria no Supremo e precisava que a Câmara Constitucional do Tribunal fosse controlada por ele para fazer tudo o que fez depois. Explico rapidamente: Bukele se tornou presidente mediante uma eleição legítima que lhe deu maioria dos assentos no Congresso, uma maioria absoluta. E quando conseguiu, na primeira sessão daquela nova assembleia, que ele controlava, destituiu os juízes do Tribunal Constitucional e o Presidente do Supremo Tribunal, e instalou novos juízes nessa mesma sessão sem cumprir os procedimentos legais.
Isso já lhe garantiu o controle dos três poderes do Estado. A nova Câmara Constitucional, em sua primeira resolução, aprovou ou reinterpretou a Constituição, aprovando ou abrindo a possibilidade de reeleição do presidente Bukele, apesar de a Constituição proibir expressamente isso em cinco artigos. Mais tarde, ele expulsou 1/3 dos juízes do país e mudou a lei de tal forma que pode decidir para qual tribunal cada juiz é destacado. Em outras palavras, ele agora tem controle não apenas sobre a Suprema Corte, mas sobre todo o sistema de Justiça.
Houve prisões massivas de pessoas, inclusive muitos inocentes. Você pode explicar como isso aconteceu?
Desde o início, Bukele precisava passar a imagem de que era capaz de resolver o principal problema do país, que era a insegurança. El Salvador tem uma taxa de homicídios muito alta. Ele colocou o Exército nas ruas, enquanto secretamente negociava um pacto com as gangues, que são as principais responsáveis pela violência em El Salvador. Esse pacto permitiu que ele reduzisse drasticamente as taxas de homicídio e ele argumentou publicamente que isso se devia à eficácia de seu plano de segurança. Mas o pacto com as gangues foi quebrado seis meses atrás por motivos que ainda não são muito claros para nós. Soubemos que estava quebrado porque em um único fim de semana as gangues assassinaram 87 pessoas.
Uma vez que o pacto foi quebrado, Bukele decretou estado de emergência e dessa maneira, desde então, passou a prender pessoas sem a necessidade de ordem judicial ou acusação formal no regime de emergência. Já se passaram seis meses e não sabemos quanto tempo vai durar. Até agora, quase 60.000 pessoas foram presas e, segundo nossas próprias investigações, boa parte dessas milhares de pessoas estão encarceradas sem vínculo com gangues, sem antecedentes criminais e sem qualquer razão legal para serem detidas.
Elas estão presas sem que suas famílias possam visitá-las, e sem direito a defesa. Em outras palavras, já estamos em um estado autoritário onde os cidadãos não têm mais garantias constitucionais. Por outro lado, é verdade que entre essas milhares de pessoas há também milhares de membros de gangues que foram presos e, por isso, a população salvadorenha aplaude essa medida.
Quem é Bukele? Você vê semelhanças entre ele e Bolsonaro?
Eu vejo algumas semelhanças entre Bukele e Bolsonaro, mas vou começar com as diferenças. Bolsonaro é um homem que esteve nas Forças Armadas brasileiras. Bukele não tem experiência anterior ao seu trabalho como político. Antes de entrar na política, foi gerente e dono de uma boate e de uma agência de publicidade. Bukele era um jovem que vivia do dinheiro que seu pai tinha. Não era milionário, mas tinha dinheiro e vivia muito bem. Acho que Bolsonaro esteve nas Forças Armadas e que a carreira dele nesse sentido é muito diferente. O que vejo que eles têm em comum? Pois bem, ambos fizeram do Exército uma peça estratégica em seu caminho de acumulação de poder e legitimação de seu autoritarismo. Ambos são autoritários. Ambos são intolerantes com as críticas. Ambos acreditam que estão acima da lei. E acho que os dois também administram um grande esquema de corrupção.
Você passou de ser um dos jornalistas mais premiados no continente para alguém que tem um drone invadindo a sala de casa. Como aconteceu essa mudança tão drástica?
O presidente Nayib Bukele e seu grupo, em sua ânsia de concentrar o poder, mostraram que estão dispostos a fazer qualquer coisa para silenciar vozes críticas, enviando drones para nossas casas, usando software como Pegasus, uso de instituições do Estado, para nos intimidar por meio de auditorias do Ministério da Fazenda, denúncias de lavagem de dinheiro e campanhas de linchamento e descrédito [do site El Faro]. Tudo visa a nos silenciar de uma forma ou de outra e nos pressionar de tal forma para que a gente pare de publicar, ou nos silenciar à força se mostrarmos que não estamos dispostos a nos calar. Isso é o que mudou em El Salvador em três anos. Bukele e o seu grupo desmantelaram todas as nossas instituições democráticas. Neste momento, os cidadãos não têm direitos constitucionais e, portanto, não há possibilidades de legítima defesa.
Muitos jornalistas tiveram que sair de El Salvador por estarem sendo perseguidos. O próprio El Faro está sendo perseguido. Você pode contar como Bukele tem perseguido a imprensa?
Segundo a Associação de Jornalistas de El Salvador, há pelo menos 12 jornalistas exilados com exílio forçado. E há uma grande perseguição de Bukele contra a imprensa, através do assédio fiscal, através de ameaças, através de campanhas de deslegitimação lideradas pelo próprio presidente, através do uso de espionagem como [o software espião] Pegasus, por meio de ameaças e vigilância física e intimidação. Devo dizer que as mulheres jornalistas sofrem intenso assédio sexual ou insultos que têm a ver com sua condição de mulheres que os homens não estão recebendo, o que contribui para o agravamento da situação das mulheres jornalistas em El Salvador.
Há algo que você acha que foi um erro dos jornalistas de El Salvador e que pode ainda ser evitado no Brasil?
Acredito que um dos principais problemas para os jornalistas salvadorenhos é que não conseguimos prever que o quadro institucional democrático era tão fraco, tão frágil, e que iria ceder tão rapidamente a um governo autoritário. Ninguém esperava que perdêssemos nossas garantias constitucionais tão rapidamente e, portanto, não nos preparamos para isso. Acho que no Brasil, nesse sentido, eles estão mais preparados. Eles estão sob ataque, sob assédio, sob ameaças há vários anos. Eu sei que tem vários jornalistas brasileiros que tiveram que ir para o exílio. O que começamos a perceber tarde em El Salvador e na América Central em geral é que todos enfrentamos o mesmo assédio, mas não respondemos a ele em conjunto. Hoje começamos a buscar formas de nos articularmos e nos organizarmos para que juntos possamos enfrentar a deterioração da situação do exercício do jornalismo em El Salvador e na América Central.
Finalmente, você está acompanhando as eleições no Brasil? Como vê a possibilidade de Bolsonaro ser reeleito?
Vejo com apreensão. Não sei se essa é a palavra certa, mas estou muito interessado em entender por que um número tão grande de pessoas apoia projetos que são antidemocráticos e corruptos. Interessa-me como jornalista e estou intelectualmente interessado em entender por que isso acontece.
É evidente que a primeira resposta que surge é que os cidadãos, em grande parte da América Latina já não acreditam necessariamente que a democracia seja a solução para melhorar suas vidas. Porque décadas de democracia, em alguns países mais do que em outros, não conseguiram melhorar significativamente suas vidas. E, portanto, pessoas desesperadas estão procurando qualquer solução que lhes seja oferecida. Mas acho que é mais complexo do que isso, e estou muito interessado em entender, por exemplo, por que no primeiro turno Bolsonaro conseguiu um percentual tão grande, principalmente depois de uma crise de saúde tão grande quanto a que o Brasil viveu durante a pandemia de Coronavírus, com tantas e tantas mortes. Que as pessoas continuem apoiando um projeto declarado antidemocrático e autoritário e populista, com um presidente que usou expressões racistas, classistas, excludentes – isso me intriga.