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Professor demitido, vereadora ameaçada: a perseguição à esquerda no coração do agro em MT

Militantes de esquerda vivem sob tensão e são alvos do bolsonarismo em Sinop

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7 de novembro de 2022
15:12
Este artigo tem mais de 1 ano

Sinop (MT) – Um professor de história, evangélico e filiado ao PT, Anderson Cardoso Ribeiro, foi sumariamente demitido na quarta-feira, 2 de novembro, por uma escola particular após ter ironizado a ação golpista de bolsonaristas que bloquearam a principal rodovia do município de Sinop, no Mato Grosso. A única vereadora mulher e do PT no município, a professora Graciele Marques dos Santos, teve o carro riscado duas vezes e já precisou ir quatro vezes à Polícia Civil para registrar ocorrências em 22 meses de mandato, duas por ameaças de morte.

Em grupos de aplicativos de celular, bolsonaristas inconformados com o resultado das eleições ameaçam criar listas de petistas ou mesmo marcar residências de petistas com uma estrela para que não sejam contratados. No ano passado, dez outdoors com críticas a Bolsonaro tiveram que ser cobertos ou retirados e pelo menos um foi derrubado com uma motosserra. O filho do dono da empresa de outdoor disse na ocasião que os proprietários e os funcionários estavam sob ameaça. Uma garrafa foi atirada contra uma carreata pró-Lula. Um jovem apoiador de Lula declarou ter sido esfaqueado no primeiro turno após uma discussão política. A paranoia se instala entre militantes de esquerda, que evitam exibir em público adesivos e camisetas do PT e do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.

“Quem quiser estudar o bolsonarismo precisa vir a Sinop”, disse uma ativista do movimento feminista na cidade, que pediu para não ser identificada por medo de retaliações. Tudo o que de pior o país tem visto nos últimos quatro anos – o negacionismo científico, o ataque às instituições e a ação golpista nas estradas que tenta invalidar o resultado das eleições presidenciais – está concentrado e potencializado em parte da população estimada em 150 mil habitantes de Sinop, no norte de Mato Grosso. Dos moradores aptos a votar, quase 77% escolheram Jair Bolsonaro no segundo turno. Lula recebeu 23% dos votos válidos.

Na cidade, pelo menos quatro páginas em redes sociais, cujos proprietários são desconhecidos, disseminam fake news, exaltam bolsonaristas e humilham críticos do bolsonarismo. Duas delas se mascaram como páginas de humor. Há pouco mais de um ano entrou em operação a rádio “Jovem Pan Sinop”, que reproduz todos os discursos pró-Bolsonaro dos comentaristas da emissora de São Paulo. Listas de supostas empresas “petistas” ou “comunistas” circulam em aplicativos entre os moradores de Sinop, o que assusta os comerciantes, alguns dos quais nada têm a ver com política.

Há rumores de que condomínios organizaram listas informais de moradores “comunistas” ou “petistas”. Em contrapartida, muitos automóveis exibem propaganda eleitoral de Bolsonaro e casas de comércio ostentam na fachada a Bandeira Nacional.

Não há força pública contrária às ações dos bolsonaristas. Quando os golpistas fecharam no domingo, 30 de outubro, a rodovia BR-163, que liga a cidade ao Pará e ao sul do Estado, a PRF (Polícia Rodoviária Federal) não tomou nenhuma atitude ao longo de quatro dias e o próprio prefeito de Sinop, Roberto Dorner (Republicanos), fazendeiro, dono de afiliadas do SBT, que declarou em 2020 um patrimônio de R$ 16,7 milhões, compareceu pelo menos três vezes ao local dos protestos para conversar com os bolsonaristas, tirar fotos e declarar apoio à “reclamação”.

Em um vídeo que circulou bastante nas redes sociais, Dorner diz: “Tô com o pessoal aqui na rodovia, tô entregando a rodovia, motivo o protesto contra a roubalheira que fizeram na política, na eleição. Então tô aqui junto, com a população. Aonde a população for e reclamar, eu tô junto, porque a reclamação é uma só”.

Prefeito de Sinop demonstrou apoio aos atos golpistas

Os bolsonaristas encerraram o bloqueio na rodovia na tarde da quinta-feira por conta própria, antes de uma anunciada ação da PRF e da Polícia Militar que só foi articulada após pressões da DPU (Defensoria Pública da União) e do MPF (Ministério Público Federal) para que fosse cumprida a decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes de desinterdição das rodovias no país. Depois de passarem um dia à beira da estrada olhando o tráfego de veículos, os bolsonaristas, que no auge do bloqueio reuniram mais de 8 mil pessoas, segundo a PRF, resolveram se mudar para a frente do estádio municipal, onde instalaram tendas, barracas, cadeiras e carros de som. Desde sábado, 5 de novembro, o local se tornou uma espécie de feira agropecuária.

‘Eles querem silenciar a esquerda’, diz vereadora ameaçada de morte duas vezes

Ao longo dos últimos 20 anos, inclusive sob os governos Lula e Dilma (2003-2016), Sinop passou de pólo madeireiro para um lugar de destaque da agropecuária em Mato Grosso. Segundo dados divulgados pela prefeitura, o município exportou, apenas em 2022, o equivalente a US$1,4 bilhão, aproveitando inclusive o dólar alto da gestão Bolsonaro.

Moradores mais antigos dizem que Sinop sempre foi mais à direita desde o seu começo. Fundada em 1974 e emancipada em 1979, o nome é um acrônimo de uma das muitas empresas “colonizadoras” estimuladas pela ditadura militar a “ocupar” a Amazônia, a Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná. Seu aeroporto, a propósito, se chama João Figueiredo, o último general ditador do período militar.

A esquerda também sempre enfrentou dificuldade de se estabelecer a longo prazo no município, mas o que se vê atualmente não tem paralelo na história da região. O diálogo no mínimo respeitoso que antes havia, desapareceu. A vereadora e pedagoga Graciele (PT), 37 anos, nascida no Paraná e que vive com a família na cidade há 33 anos, diz que agora o plano da direita bolsonarista é realmente silenciar ou extirpar a esquerda.

Professora Graciele (PT) é vereadora de Sinop (MT), na imagem ela veste uma camiseta com a frase ''Que nunca nos esqueçamos de lutar pela educação pública, pela ciência e pelo SUS''
Vereadora de Sinop (MT) Professora Graciele (PT)

“O discurso muito presente, que é o que os leva a oprimir as pessoas de esquerda, é de que ‘não cabe’ pessoas de esquerda em Mato Grosso e em Sinop, principalmente, porque é uma ‘cidade bolsonarista’. É o mesmo discurso que usam comigo. Comentários nas redes sociais dizendo que ‘não sei o que uma pessoa de esquerda e uma vereadora de esquerda quer fazer em Sinop, não está vendo que é terra do agro’? O mesmo discurso usado contra todos os militantes. [Dizem] ‘Você não pode se beneficiar da economia do nosso município’. Eles falam isso muito também para maranhenses, nordestinos que moram aqui.”

“O que eles querem é expulsar a esquerda do município?”, indagou a Agência Pública. “Exatamente. Eles querem silenciar. Na medida em que podem tirar as condições de subsistência da pessoa [de esquerda], se eles realmente efetivam o que dizem querer, que é demitir todo mundo que é de esquerda, realmente a pessoa não consegue mais viver aqui, né. Já sabemos de casos pontuais, de amigos que dizem ‘vou para fora porque a cidade é muito difícil’.”

Professor foi demitido sumariamente por rede social

Um exemplo contundente desse processo ocorreu na semana passada. Morando e trabalhando em Sinop desde 2009, o professor Anderson Ribeiro, 41 anos, dava aulas de história – é formado pela Universidade Federal de MT e tem mestrado pela Universidade Estadual de MT – desde 2017 em um colégio particular que atende principalmente alunos de classe média, o Jean Piaget. Filiado ao PT, mas sem cargo no partido, Anderson ficou incomodado quando viu algumas lojas fechadas em locaute no centro de Sinop a fim de apoiar o ato golpista na rodovia BR-163.

Ele disse que sua conta no Instagram era fechada, com apenas cem seguidores, a maioria colegas de ensino e sindicalistas. Na manhã do último dia 2, resolveu gravar um vídeo de poucos segundos para seu stories, no qual ironizou os manifestantes: “Eu tô morando em Sinop, Mato Grosso, e tô vendo alguns comércios fechados aqui, CNPJ de gente fudida mesmo. Foram lá apoiar os patriotas. Haha, é pra rir desse povo, minha gente. Ou seja, o cara vai perder dinheiro para ir nos patriotas e depois vai culpar quem? É, imagina, como é que essa galera é super inteligente”. O professor disse que estava irritado com o bloqueio na rodovia também porque havia feito compras pela internet e possivelmente a entrega do material iria demorar mais do que o esperado.

Professor foi demitido 5 horas após a postagem desse vídeo em sua conta privada no Instagram

Um de seus supostos amigos, contudo, retirou o vídeo e repassou a uma página no Instagram que Anderson chama de integrante da “milícia digital” na cidade. A página alterou o vídeo com um filtro digital, apresentando o professor como um palhaço, e colocou no ar. A princípio não houve maior repercussão, mas uma segunda página compartilhou o vídeo original com o título “Professor de Sinop chamam [sic] patriotas de trouxas”. A postagem provocava as pessoas: “O professor petista Anderson Cardoso Ribeiro se manifestou em seu stories. O QUE ACHARAM?”

A postagem teve mais de 3,6 mil curtidas em quatro dias. Um internauta disse que “espero que os pais coloquem a mão na consciência e não deixem seus filhos ser ensinados por um tipo de pessoa dessa!”

A partir daí, começou um pesadelo para Anderson e sua família. “Alguns diziam ‘esse tem que perder seu trabalho’. Alguns ameaçando minha vida, dizendo que ‘se me visse de bicicleta’ – eu ando de bicicleta na cidade por minha opção –, dizendo ‘se eu achar esse cara no meio vou atropelar’. Eu printei tudo. Eu estava tranquilo, mas minha esposa ficou muito chateada quando lia tudo isso.”

No mesmo dia, várias mensagens chegaram à direção da escola. Tanto a proprietária quanto a diretora são consideradas na cidade como pessoas progressistas, mais tendentes à esquerda, mas não suportaram a pressão.

“Eles [bolsonaristas] foram fazendo pressão sobre a dona da escola, acho que com certeza deve ser um grupo de pais bolsonaristas, não todos. Diria até que seria um grupo pequeno naquela escola.” Primeiro a direção da escola pediu que o professor fizesse uma “retratação”, que Anderson achou a princípio incabível, pois divulgara o vídeo apenas para um grupo restrito de amigos. Mas enquanto pensava sobre isso, disse ter sido surpreendido por uma publicação, no perfil da escola no Instagram, com o anúncio de sua demissão. O vídeo de Anderson começou a circular na internet por volta das 9h00. Às 14h30 do mesmo dia, ele já estava demitido.

A escola publicou, na rede social, a notícia de que Anderson não daria mais aulas a partir do dia seguinte, 3 de novembro. O colégio disse que “nosso carinho e respeito por todos cidadãos sinopenses é o mais puro e verdadeiro”. “A postura divergente e contraditória de alguns profissionais do colégio não fala e tão pouco reflete o que o colégio pensa e defende. Não compactuamos com posturas de desrespeito à quaisquer cidadãos, seja de Sinop ou de que parte for. Deixamos claro nossa posição de respeito ao momento histórico que vivemos.”

Por outro lado, o professor recebeu uma onda de solidariedade, pessoas que ele nem conhecia o procuraram para oferecer ajuda, por exemplo, para uma vaquinha online a fim de custear um processo judicial. “Isso foi uma coisa maravilhosa. Pode ter gente ruim no mundo, mas tem pessoas que apareceram com esse senso de justiça, de falar ‘isso não pode acontecer’. Foi uma coisa que fiquei muito impressionado, com pessoas que você não conhece, querendo ajudar.”

O professor acredita que casos como o seu estão ocorrendo em todo o país, como já relatado pela imprensa, um movimento “inadmissível em 2022, no estado democrático de direito”. Como professor de história, Anderson já deu aulas sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, com o qual ele agora faz paralelos.

“Eu falava tanto no nazismo em história e agora estou presenciando como a extrema-direita é carrasca, como ela acaba com a reputação de uma pessoa. Na teoria eu pensava ‘como que Hitler chegou ao poder, como que essa galera manteve esse louco no poder?’ Mas teve um líder carismático que induziu a massa. É o que estamos vendo agora. Hitler era ridicularizado pela própria direita liberal e a esquerda achava que era ‘um maluco que não ia dar em nada’. Hoje em Sinop tem os fanatizados, e esse movimento é antidemocrático, não aceita o resultado das eleições.”

Anderson disse que a direita em Sinop vive um processo de radicalização desde a vitória de Bolsonaro em 2018. Ele parou de frequentar a igreja presbiteriana à qual comparecia toda semana porque começou a ouvir opiniões radicais não diretamente dos pastores, mas de alguns fiéis. “Parece que a atitude de Jesus não chegou ao coração deles. Aí eu preferi me afastar. É inadmissível quem prega o amor de Jesus apoiar um camarada como esse [Bolsonaro], o pior do pior da nossa nação.”

O Professor Anderson é um homem branco com cabelos pretos levemente grisalhos, na imagem ele usa óculos e camiseta estampada.
Professor Anderson sofreu ameaças após a publicação do vídeo

Segundo o professor, no episódio do bloqueio antidemocrático da rodovia BR-163 setores “responsáveis” do comércio de Sinop, como a CDL (Câmara dos Diretores Lojistas) e a Associação Comercial, não concordaram com o fechamento do comércio, mas estão sendo pressionados por bolsonaristas. “Comerciantes ficaram irritados. Começou a sair listas de empresários ‘comunistas’, para você ver o nível dessa galera das milícias digitais. Ao tentar parar o comércio da cidade, eles fracassaram. Todo capitalista quer ganhar dinheiro. O agronegócio mesmo já está irritado, tem que escoar a produção de soja.”

A vereadora Graciele acredita que a esquerda tem pela frente, no governo Lula que começa em janeiro, o desafio de enfrentar a extrema-direita num cenário vivido em Sinop mas que se repete em várias cidades, principalmente do Centro-Oeste. Para a professora, uma das primeiras medidas seria iniciar investigações para identificar e punir as “milícias digitais” que ameaçam e ofendem quem não concorda com o bolsonarismo.

“O que eu percebi aqui? Quando nós tivemos o primeiro episódio de ameaça, a gente foi à delegacia, fizemos o registro, e isso [ameaça] diminui. Então a Justiça precisa funcionar, precisa responsabilizar as pessoas que cometem esse tipo de crime.”

Em uma segunda etapa, diz a vereadora, a esquerda precisa “promover a formação crítica das pessoas”. “Não para alinhar elas para um lado [político] só, mas para elas conseguirem avaliar aquilo que é ilegal no processo democrático. Essa formação é necessária.”

Além disso, diz a vereadora, a esquerda precisa preencher “todos os espaços de mídia, das redes sociais, como eles fizeram”. “A gente percebeu que essa ocupação foi utilizada com muito sucesso para aquilo que consideramos o mal, que é ferir a democracia, que é hostilizar as pessoas. Agora precisamos fazer o movimento inverso, a esquerda precisa promover a utilização desses espaços para proteger os seus e difundir as verdades, as políticas públicas, aquilo que de fato importa para a população.”

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