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Durante a crise sanitária, o CNJ pediu a reavaliação de prisões provisórias e de encarcerados em grupo de risco

Reportagem
13 de fevereiro de 2023
14:00
Este artigo tem mais de 1 ano

A Covid-19 atingiu mais de 80% das prisões em 14 estados brasileiros, revelou reportagem da Agência Pública em maio de 2021. Entretanto, 233 atas do Comitê de Crise da Covid analisadas pela Pública indicam que o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) parecia estar mais preocupado com a Resolução nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que recomendou, entre outras medidas, a reavaliação de prisões provisórias, do que com a disseminação da doença entre pessoas privadas de liberdade.

A primeira citação ao sistema prisional — marcado pela superlotação, falta de estrutura e de atendimento médico, condições propícias para a disseminação da Covid-19 — foi feita na primeira reunião do CCOP, em 17 de março de 2020, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). O responsável pela pasta ainda era o ex-ministro e atual senador, Sergio Moro (União Brasil), que deixaria o governo no dia 24 do mês seguinte. Naquela reunião, o MJSP apenas comunicou que o CNJ havia publicado a Resolução nº 62/2020, informou que houve algumas fugas de pessoas em regime semiaberto, e solicitou equipamentos de proteção individual (EPIs). O pedido por EPIs se repetiria em outras reuniões, em especial visando os servidores do sistema. 

Em 6 de abril de 2020, o MJSP voltou a se pronunciar sobre o tema, dessa vez com críticas à Resolução. “Estão preocupados com o sistema carcerário devido a Recomendação no 62, de 17 de março de 2020, do Conselho nacional de Justiça (CNJ), que já colocou mais de 32.000 presidiários nas ruas, mesmo sem ter, até a presente data, relato de presos contaminados pela Covid-19, dado que se mantém isolados e sem visitas íntimas (sic)”, registrou a ata. 

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre decisão do CNJ que previa liberação de presos provisórios

Oito dias depois, em 14 de abril daquele ano, ainda com Moro de Ministro, o MJSP reconheceu que a disseminação da doença estava ocorrendo dentro das detenções, mas ressaltou que nenhum óbito pela doença havia sido registrado. De acordo com a ata, os integrantes do ministério se disseram “preocupados com o Sistema Prisional, onde testaram positivo para Covid-19, 26 presos, e ainda 145 suspeitos, porém, não houve óbito ainda no Sistema Carcerário”. 

Em 17 de abril, o Ministério da Justiça e Segurança Pública relatou ter feito uma reunião com os Secretários Estaduais de Segurança Pública. A ata registra ainda que: “externaram preocupação com relação à disponibilidade de EPIs e também no tocante aos efeitos da Resolução 62/CNJ e da possível decisão de juízes na liberação pouco cautelosa de presos”. No entanto, a ata não deixa claro se a preocupação com a “liberação pouco cautelosa de presos” era do ministério ou dos secretários de segurança pública.

Essa reunião gerou um dos poucos encaminhamentos quanto ao tema: o MJSP ficou responsável por monitorar “efeitos da Resolução 62/CNJ e da possível decisão de juízes na liberação pouco cautelosa de presos”.

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre decisão do CNJ que previa liberação de presos provisórios

Três dias depois, o MJSP relatava que houve “03 óbitos no Sudeste, sendo que 02 deles servidores e o outro detento”, ao que o Ministério da Saúde responde prometendo a disponibilização de testes aos agentes de segurança pública. O Subchefe de Articulação e Monitoramento, Heitor Abreu, “ofereceu auxílio na questão logística para resolver ou mitigar essa questão”, registra o documento.

Até março de 2022, última publicação do boletim do CNJ sobre contaminações e mortes no sistema prisional, já haviam sido registrados 661 óbitos por Covid-19 entre pessoas presas (320) e servidores (341) desde o início da pandemia. O boletim indicou ainda a existência de 108.358 casos, 75.337 entre os presidiários e 33.021 entre os agentes prisionais.

Essas foram as principais citações sobre a Covid-19 no sistema prisional nas atas do Comitê de Crise. Em nenhum dos casos de “preocupação” citados houve encaminhamentos voltados às pessoas privadas de liberdade. 

A reportagem buscou nos documentos todos os registros ligados às palavras “prisional”, “carcerário” e “preso”, e obteve 10 registros de discussões. Os três registros que não foram abordados nesta matéria se referem à campanha de vacinação de gripe, a um repasse de dados do Espírito Santo e uma preocupação do MJSP de que presos se cadastrariam para receber o auxílio emergencial indevidamente. Os outros que não foram citados diretamente repetem falas sobre a necessidade EPIs, que já foram contempladas. 

Ao menos 70 vezes o MJSP compareceu à reunião do CCOP e não fez nenhuma “consideração relevante”, de acordo com os registros das atas. O ministério registrou ainda no mínimo 32 ausências — o registro de presenças não é padronizado, o que impede a contagem exata.

A única ação concreta abordada nas atas para impedir a disseminação da Covid-19 no sistema carcerário é a distribuição de EPIs aos servidores. 

No dia 13 de abril, os documentos registram que a mineradora Vale doou equipamentos de proteção individual. O Ministério da Justiça e Segurança Pública então ressalta a importância de “uma ampla divulgação dessa doação aos servidores do sistema carcerário”, e a Secretaria de Articulação e Monitoramento pede para a “SECOM [Secretaria de Comunicação da Presidência da República] e ASCOM [Assessoria de Comunicação] serem avisadas sobre os locais de entrega e quanto a questão da publicidade”.

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre a doação de EPI's da empresa Vale para internos do sistema  carcerário

A Pública já mostrou que o governo utilizou a estratégia de divulgar informações positivas e omitir dados negativos para diminuir as críticas da sociedade civil e da imprensa em casos como a crise sanitária de Manaus e a disseminação da Covid-19 entre populações tradicionais.

Nesta série de reportagens, a Agência Pública analisou 806 páginas que são o registro escrito de 233 reuniões organizadas pelo CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19) entre março de 2020 e setembro de 2021. O órgão era vinculado à Casa Civil, à época chefiada pelo General Braga Netto. Os documentos foram disponibilizados via Lei de Acesso à Informação no fim de janeiro deste ano. As atas são inéditas e nunca foram analisadas pela CPI da Covid. 

Depois de iniciada a publicação desta série, senadores membros da CPI disseram que vão pedir a reabertura de inquéritos com base nas novas revelações. 

Realizadas na Sala 97 do Palácio do Planalto, às 233 reuniões envolveram representantes de 26 órgãos da Esplanada, incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O CCOP foi criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no início da pandemia, em 24 de março de 2020. 

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Esta reportagem pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado graças ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por trás de sigilos, negativas e outras táticas de sonegação de informação. A cobertura completa está no site do projeto.

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