Não existe tratamento precoce para a Covid-19, já afirmou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e diversos outros órgãos nacionais e internacionais. Entretanto, atas sigilosas obtidas pela Agência Pública mostram que o governo de Jair Bolsonaro (PL) tentou adotar o “atendimento precoce” como política pública, sugerindo que o TrateCov, aplicativo que prescrevia cloroquina até para bebês com febre e sintomas gripais, fosse “testado” na cidade de Manaus em plena crise sanitária.
Além disso, as atas mostram a articulação por trás da criação do Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce, previsto para acontecer em outubro de 2020 – o que não aconteceu. Também com informações dos documentos inéditos, a Pública já mostrou que existiam conflitos de interesse entre fabricantes de vermífugos sem eficácia para Covid-19.
Depois de cobrado pela opinião pública, o governo abandonou os dois planos.
Os documentos foram obtidos no final de janeiro via Lei de Acesso à Informação (LAI), depois de diversas negativas pelo governo Bolsonaro. As atas mostram, entre outros, as discussões internas de órgãos do governo enquanto eram formuladas iniciativas cuja intenção era defender e propagar um tratamento ineficaz. No total, a reportagem acessou 806 páginas que são o registro escrito de 233 reuniões organizadas pelo CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê da Crise da Covid-19) entre março de 2020 e setembro de 2021. O órgão era vinculado à Casa Civil, à época chefiada pelo General Braga Netto — ele próprio havia sido o autor de uma das negativas via LAI que impediu o acesso aos documentos durante a última gestão. As atas são inéditas e nunca foram analisadas pela CPI da Covid.
A estratégia não fundamentada no conhecimento científico foi defendida pelo governo, por exemplo, durante o colapso do sistema de saúde vivido no início de 2021 pela cidade de Manaus, no Amazonas.
No dia 4 daquele mês de janeiro de 2021, o Ministério da Saúde enviou uma comitiva ao estado para avaliar a situação sanitária. O retorno recebido e registrado em ata do dia 6 mostra que a prioridade do Subchefe Adjunto Executivo da Secretaria de Articulação e Monitoramento, o militar reformado Ronaldo Navarro – responsável por coordenar a reunião do CCOB naquele dia – era saber se o Amazonas estava aplicando o tratamento precoce. Essas informações foram reveladas em matéria de ontem (08) da Pública.
A comitiva federal que foi à Manaus no início de janeiro de 2021 tinha a coordenação da então secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, médica defensora de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid que ficou conhecida como “capitã cloroquina” durante a CPI da Covid.
De acordo com informações da CPI, em 11 de janeiro ela enviou à Secretaria Municipal de Saúde de Manaus um ofício “em que se recomenda difusão e adoção do tratamento precoce como forma de diminuir o número de internações e óbito”. Foi Mayra Pinheiro quem capitaneou, no Ministério da Saúde, a criação de um controverso aplicativo – TrateCov – para ampliar o acesso a esse tipo de “tratamento”.
Em 12 de janeiro de 2021, a Secretaria de Saúde do Amazonas anunciou a implantação do aplicativo, divulgado como um projeto-teste para diagnóstico rápido e tratamento da Covid-19 desenvolvido durante a gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello na pasta.
Atas das reuniões do CCOP consultadas pela Pública mostram como, internamente, o governo Bolsonaro apostava na eficácia do TrateCov – que rapidamente desmoronou perante a opinião pública.
Na 139ª Reunião Ordinária do CCOP, ocorrida em 18 de janeiro de 2021, o representante do ministério da Saúde anunciou o lançamento do aplicativo, definindo-o como uma “ferramenta baseada em estudo científico que fará diagnóstico rápido da Covid-19 por meio de um sistema de pontos que obedece rigorosos critérios médicos”. “Manaus será a primeira cidade do Brasil a testar o sistema”, afirmou.
O anúncio do TrateCov naquela reunião empolgou o representante da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), que “requereu ao MS [Saúde] que encaminhem (sic) um ofício para que possam ajudar com o lançamento do aplicativo”.
Mas o teste fracassou antes mesmo de começar: veículos de imprensa e pesquisadores descobriram que o aplicativo recomendava, como via de regra, o uso de medicamentos ineficazes no tratamento contra a doença – hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, substâncias defendidas pelo governo Bolsonaro como base do “tratamento precoce”.
Após pressão, o aplicativo foi abandonado e nunca mais foi citado nos encontros do CCOP, conforme mostram as atas analisadas. Mas o fracasso do TrateCov não é o único do tipo no material consultado pela reportagem.
Outro episódio em que a pressão de pesquisadores e da opinião pública surtiu efeito foi o do “Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce”, no fim de setembro de 2020. No dia 25 daquele mês, o ministério comandado por Pazuello planejou o lançamento de uma campanha representada pelo slogan #NãoEspere – uma referência para que a população então procurasse atendimento médico logo que surgissem os primeiros sintomas de Covid-19.
A iniciativa divergia do que era indicado por autoridades sanitárias internacionais, que recomendavam que pessoas sem comorbidades e com sintomas gripais esperassem a resposta imunológica antes de buscarem ajuda, para evitar a aglomeração em postos de saúde, o que poderia aumentar o contágio.
Porém, na noite de 25 de setembro de 2020, horas depois de uma das reuniões do CCOP, o governo lançou parte da nova campanha. Naquela ocasião, o representante do Ministério das Comunicações anunciou aos integrantes do comitê que “no dia 3 de outubro todas as pastas do SUS irão aderir oficialmente ao novo protocolo precoce, e que deverá haver pronunciamento do Presidente da República, na data do dia 02 de outubro”. “É necessário manter alinhamento entre as assessorias de comunicação, da PR e dos ministérios, para divulgação das informações”, afirmou ainda o representante do Ministério das Comunicações.
Dias depois, na reunião de 30 de setembro de 2020, os planos mudaram após duras críticas por parte de especialistas. O representante do ministério da Saúde então informava que “o Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce, inicialmente programado para o dia 3 de outubro, será prorrogado ainda sem data definida”. Como se sabe, a ideia acabou abandonada pelo governo Bolsonaro. Naquele momento, em setembro de 2020, o país registrava mais de 20 mil mortes por Covid-19.
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