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Governo também tentou usar Manaus em plena crise sanitária para testar aplicativo TrateCov, que indicava o "Kit Covid"

Reportagem
9 de fevereiro de 2023
13:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Não existe tratamento precoce para a Covid-19, já afirmou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e diversos outros órgãos nacionais e internacionais. Entretanto, atas sigilosas obtidas pela Agência Pública mostram que o governo de Jair Bolsonaro (PL) tentou adotar o “atendimento precoce” como política pública, sugerindo que o TrateCov, aplicativo que prescrevia cloroquina até para bebês com febre e sintomas gripais, fosse “testado” na cidade de Manaus em plena crise sanitária. 

Além disso, as atas mostram a articulação por trás da criação do Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce, previsto para acontecer em outubro de 2020 – o que não aconteceu. Também com informações dos documentos inéditos, a Pública já mostrou que existiam conflitos de interesse entre fabricantes de vermífugos sem eficácia para Covid-19. 

Depois de cobrado pela opinião pública, o governo abandonou os dois planos.

Os documentos foram obtidos no final de janeiro via Lei de Acesso à Informação (LAI), depois de diversas negativas pelo governo Bolsonaro. As atas mostram, entre outros, as discussões internas de órgãos do governo enquanto eram formuladas iniciativas cuja intenção era defender e propagar um tratamento ineficaz. No total, a reportagem acessou 806 páginas que são o registro escrito de 233 reuniões organizadas pelo CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê da Crise da Covid-19) entre março de 2020 e setembro de 2021. O órgão era vinculado à Casa Civil, à época chefiada pelo General Braga Netto — ele próprio havia sido o autor de uma das negativas via LAI que impediu o acesso aos documentos durante a última gestão. As atas são inéditas e nunca foram analisadas pela CPI da Covid. 

A estratégia não fundamentada no conhecimento científico foi defendida pelo governo, por exemplo, durante o colapso do sistema de saúde vivido no início de 2021 pela cidade de Manaus, no Amazonas. 

Familiares entregam cilindros de oxigênio para hospital no Amazonas
Chegada do oxigênio no Amazonas durante o colapso do sistema de saúde

No dia 4 daquele mês de janeiro de 2021, o Ministério da Saúde enviou uma comitiva ao estado para avaliar a situação sanitária. O retorno recebido e registrado em ata do dia 6 mostra que a prioridade do Subchefe Adjunto Executivo da Secretaria de Articulação e Monitoramento, o militar reformado Ronaldo Navarro – responsável por coordenar a reunião do CCOB naquele dia – era saber se o Amazonas estava aplicando o tratamento precoce. Essas informações foram reveladas em matéria de ontem (08) da Pública

A comitiva federal que foi à Manaus no início de janeiro de 2021 tinha a coordenação da então secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, médica defensora de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid que ficou conhecida como “capitã cloroquina” durante a CPI da Covid.

De acordo com informações da CPI, em 11 de janeiro ela enviou à Secretaria Municipal de Saúde de Manaus um ofício “em que se recomenda difusão e adoção do tratamento precoce como forma de diminuir o número de internações e óbito”. Foi Mayra Pinheiro quem capitaneou, no Ministério da Saúde, a criação de um controverso aplicativo – TrateCov – para ampliar o acesso a esse tipo de “tratamento”. 

Mayra Pinheiro, conhecida como "capitã cloroquina" e defensora do TrateCov,
Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, capitaneou o aplicativo TrateCov

Em 12 de janeiro de 2021, a Secretaria de Saúde do Amazonas anunciou a implantação do aplicativo, divulgado como um projeto-teste para diagnóstico rápido e tratamento da Covid-19 desenvolvido durante a gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello na pasta.

Atas das reuniões do CCOP consultadas pela Pública mostram como, internamente, o governo Bolsonaro apostava na eficácia do TrateCov – que rapidamente desmoronou perante a opinião pública.

Na 139ª Reunião Ordinária do CCOP, ocorrida em 18 de janeiro de 2021, o representante do ministério da Saúde anunciou o lançamento do aplicativo, definindo-o como uma “ferramenta baseada em estudo científico que fará diagnóstico rápido da Covid-19 por meio de um sistema de pontos que obedece rigorosos critérios médicos”. “Manaus será a primeira cidade do Brasil a testar o sistema”, afirmou.

Trecho de ata do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 mostra Ministério da Saúde falando o lançamento do aplicativo TrateCov

O anúncio do TrateCov naquela reunião empolgou o representante da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), que “requereu ao MS [Saúde] que encaminhem (sic) um ofício para que possam ajudar com o lançamento do aplicativo”.

Mas o teste fracassou antes mesmo de começar: veículos de imprensa e pesquisadores descobriram que o aplicativo recomendava, como via de regra, o uso de medicamentos ineficazes no tratamento contra a doença – hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, substâncias defendidas pelo governo Bolsonaro como base do “tratamento precoce”. 

Após pressão, o aplicativo foi abandonado e nunca mais foi citado nos encontros do CCOP, conforme mostram as atas analisadas. Mas o fracasso do TrateCov não é o único do tipo no material consultado pela reportagem.

Outro episódio em que a pressão de pesquisadores e da opinião pública surtiu efeito foi o do “Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce”, no fim de setembro de 2020. No dia 25 daquele mês, o ministério comandado por Pazuello planejou o lançamento de uma campanha representada pelo slogan #NãoEspere – uma referência para que a população então procurasse atendimento médico logo que surgissem os primeiros sintomas de Covid-19.

Publicação do Ministério da Saúde nas redes sociais promovendo a campanha "Não Espere", para estimular o tratamento precoce, durante a pandemia de Covid-19

A iniciativa divergia do que era indicado por autoridades sanitárias internacionais, que recomendavam que pessoas sem comorbidades e com sintomas gripais esperassem a resposta imunológica antes de buscarem ajuda, para evitar a aglomeração em postos de saúde, o que poderia aumentar o contágio. 
Porém, na noite de 25 de setembro de 2020, horas depois de uma das reuniões do CCOP, o governo lançou parte da nova campanha.  Naquela ocasião, o representante do Ministério das Comunicações anunciou aos integrantes do comitê que “no dia 3 de outubro todas as pastas do SUS irão aderir oficialmente ao novo protocolo precoce, e que deverá haver pronunciamento do Presidente da República, na data do dia 02 de outubro”. “É necessário manter alinhamento entre as assessorias de comunicação, da PR e dos ministérios, para divulgação das informações”, afirmou ainda o representante do Ministério das Comunicações.

Trecho de ata do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 mostra Ministério das Comunicações falando sobre protocolo de tratamento precoce

Dias depois, na reunião de 30 de setembro de 2020, os planos mudaram após duras críticas por parte de especialistas. O representante do ministério da Saúde então informava que “o Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce, inicialmente programado para o dia 3 de outubro, será prorrogado ainda sem data definida”. Como se sabe, a ideia acabou abandonada pelo governo Bolsonaro. Naquele momento, em setembro de 2020, o país registrava mais de 20 mil mortes por Covid-19.

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Esta reportagem pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado graças ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por trás de sigilos, negativas e outras táticas de sonegação de informação. A cobertura completa está no site do projeto.

Liam Cavalcante/Amazônia Real
Júlio Nascimento/PR
Reprodução

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