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Derrubada da floresta saltou de 216 km2 em 2020 para 480 km2 em 2022 depois de Bolsonaro decidir pavimentar rodovia

Reportagem
28 de fevereiro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

A expectativa de asfaltamento da BR-319, rodovia que corta o Amazonas ligando Porto Velho (RO) a Manaus, fez o desmatamento em seu entorno mais que dobrar entre 2020 e 2022. 

Após o anúncio do governo Bolsonaro, no fim de 2020, de que um trecho da via seria pavimentado, a derrubada da floresta, que vinha acelerando desde 2017, cresceu 110% em apenas um ano. Saltou de 216 km2 em 2020 para 453 km2 em 2021. No ano seguinte subiu ainda mais um pouco, chegando a 480 km2. São os maiores valores registrados naquela região desde 2001.

Infográfico mostra desmatamento entorno da BR-319 ao longo dos últimos 20 anos

É o que mostra um levantamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) a pedido do Observatório do Clima e compartilhado com a Agência Pública. A análise, que considerou os desmatamentos em uma faixa de 50 km de cada lado da estrada, entre 2001 e 2022, ajuda a entender a dinâmica da região. 

No início dos anos 2000, assim como estava ocorrendo em toda a Amazônia, o desmatamento naquela região também estava elevado. Começou a cair em 2005, quando teve início o PPCDAm, programa criado no primeiro governo Lula de combate ao desmatamento. Chegou ao menor valor em 2009 e se manteve relativamente baixo até 2016. Em 2017 voltou a subir e explodiu a partir de 2020.

Para especialistas em desmatamento, o avanço tem relação direta com a promessa de pavimentação. Em setembro de 2020, o então ministro de Infraestrutura, Tarcísio Freitas, hoje governador de São Paulo, afirmou em reunião com governadores da Amazônia que iniciaria a obra em um trecho de 52 km da rodovia. Disse também que o plano era ter até 2022 “toda a extensão da rodovia 319 contratada e em serviços”.

Imagem aérea mostra derrubada de floresta na BR-319
Derrubada da floresta saltou de 216 km2 em 2020 para 480 km2 em 2022

No encontro, chegou a dizer que a via seria um “modelo no que diz respeito à preservação do meio ambiente” e que “o desenvolvimento pode coexistir com a sustentabilidade”.

A BR-319, construída no início dos anos 1970 pela ditadura militar, foi pavimentada no início das suas operações, mas acabou sendo abandonada no fim dos anos 1980 por ter ficado intransitável. A repavimentação já tinha sido discutida em outros governos, mas na gestão Bolsonaro foi alçada ao nível de prioridade. 

É a única saída por terra de Manaus para o resto do país e, por isso, uma reivindicação antiga de governantes locais principalmente para o tráfego de pessoas. Mas os riscos potenciais de desmatamento acenderam vários alertas. Diversos estudos mostram que, ao longo do processo de ocupação da Amazônia, as rodovias funcionaram como os maiores indutores de devastação da floresta. No caso da BR-319, há um agravante. Ela corta o maior bloco de florestas ainda preservadas da Amazônia.

Os pesquisadores Lucas Ferrante e Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), estimaram que a rodovia e o desmatamento associado afetariam 63 terras indígenas, onde vivem 18 mil pessoas.

O avanço da devastação ao longo da BR-319 fez com que o Estado do Amazonas, nos últimos dois anos, assumisse a segunda posição entre os mais desmatados na região, o que nunca tinha ocorrido. No ano passado, foi o único Estado que teve alta de desmatamento na Amazônia.

Hoje, as duas pontas da rodovia, mais perto das capitais, têm asfalto, mas no meio não. Além dos 52 km anunciados por Tarcísio em 2020, há um trecho maior, conhecido como “trecho do meio”, com 405 quilômetros de extensão, que também precisa de pavimentação. Em julho do ano passado, faltando menos de três meses para as eleições, o então presidente do Ibama, Eduardo Bim, concedeu a licença-prévia para a obra, contrariando recomendações feitas há 14 anos pelos próprios técnicos do órgão.

Em 2008, no segundo mandato de Lula, o então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, criou um grupo de trabalho para acompanhar o processo de licenciamento da rodovia, com a presença de técnicos do Ibama, do ICMBio e do órgão ambiental do Amazonas. 

O grupo estabeleceu pré-condicionantes que deveriam ser adotadas antes mesmo da licença prévia, sendo a principal a criação de 16 unidades de conservação dos dois lados da estrada antes do início das obras. Isso nunca aconteceu. Bolsonaro, por sua vez, não criou nenhuma unidade de conservação no seu governo.

Logo que Tarcísio anunciou as obras, ainda em 2020, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais publicou uma nota técnica estimando o que poderia acontecer na região da BR-319 com o asfaltamento e os decorrentes fluxos migratórios, expansão agrícola e ocupação de terras. Eles calcularam que a devastação poderia quadruplicar na zona de influência da rodovia até 2050.

O líder do trabalho, o pesquisador Britaldo Soares-Filho, afirmou à Pública que esse aumento já observado nos últimos dois anos corresponde ao pior cenário imaginado pelo grupo, composto também por Juliana Leroy Davis e Raoni Rajão.

“A especulação fundiária se antecipa aos eventos. Quando tem um anúncio de asfaltamento de uma estrada, só isso já dispara o desmatamento, o posicionamento de grileiros para conseguir terras a um custo praticamente zero, que depois vão tentar uma regularização fundiária para vender para outras pessoas”, comentou.

Troncos de árvores derrubadas na BR-319
Para especialistas em desmatamento, avanço tem relação com a pavimentação

Para ele e outros pesquisadores, apesar de existir a pressão local, a rodovia não faz muito sentido. “Praticamente serviria somente para o trânsito local. Ela não vai ser uma rodovia de carga. Não se paga para isso. Os grãos vão continuar sendo transportados pela hidrovia do rio Madeira, que corre quase paralela à estrada”, diz Soares-Filho.

Ele e colegas fizeram análises econômicas que mostraram que economicamente não teria retorno. “Mas corta uma parte muito íntegra da floresta, com grandes blocos de florestas ainda não destinadas. Ou seja, é invasão de terra pública. Todo esse desmatamento é para especulação relacionada à possibilidade do asfalto”, complementa.

O tema parece ter opiniões divergentes no novo governo. Lula, apesar de ter colocado o combate ao desmatamento e às mudanças climáticas como prioridade de governo, se mostrou favorável à rodovia desde que houvesse compromisso com a preservação. 

“Eu era favorável que se apresentasse um projeto, primeiro, de preservação ambiental, porque a estrada já tinha existido um tempo, já tinha funcionado. Se você levar em conta a preservação ambiental, você pode construir. Não tem nada que a gente não possa fazer, se fizer com responsabilidade, se tomar os cuidados necessários, e aí você tem que ter o compromisso de ter fiscalização”, disse em entrevista em junho do ano passado.

Para Lula, não é possível impedir o desenvolvimento de determinadas regiões. “Se for para construir a estrada para abandonar as terras indígenas ao deus dará, para abandonar o cuidado com a floresta, é melhor não construir. Mas se você tiver responsabilidade envolvendo os estados, envolvendo o governo federal, a gente pode construir essa estrada, ajudar o desenvolvimento e continuar ajudando as terras indígenas e preservando a floresta amazônica”, continuou.

No fim de agosto do ano passado, em entrevista a uma rádio de Manaus, ele voltou a sinalizar a favor da pavimentação, acenando para políticos locais. Disse que não quer “transformar o estado do Amazonas num santuário da humanidade”. Afirmou ainda: “Nós temos que dar a essa gente o direito de civilidade, o direito de viver bem, o direito de ir e vir. É plenamente possível você trabalhar corretamente a questão climática, trabalhar corretamente a questão ambiental e você dar a segurança necessária para que possa fazer boas estradas que possam interligar o estado do Amazonas com o restante do país.” 

Na semana passada, em entrevista à Pública, o novo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, afirmou que a situação no entorno da rodovia está no foco das atenções do órgão. Mesmo sem ter esses dados específicos de desmatamento em mãos, mas já sabendo do quadro mais amplo do Amazonas, ele disse que a rodovia é um “ponto de alerta” e que avaliaria “com muita atenção e carinho” o licenciamento. Não deu nenhuma sinalização, porém, de que isso poderia ser revisto. 

“Não existe nenhuma decisão tomada em relação a 319 ou qualquer outro projeto de infraestrutura. O que a gente tem é análise técnica dos nossos servidores do Ibama. Eu confio muito na capacidade técnica deles. Agora obviamente tem que ter um outro olhar. E esse eu acho que é um olhar de governo. Nós vamos ter que ter muita cautela no licenciamento de qualquer obra de infraestrutura porque pode colocar a perder todo trabalho que começa a ser feito agora de controle de desmatamento. Eu não estou fazendo nenhum juízo de valor, mas obviamente que a gente vai dar muita atenção a tudo isso, a cada uma dessas obras de infraestrutura. Tem medidas mitigadoras importantes que podem ser tomadas para evitar o desmatamento, mas nem sempre elas conseguem um sucesso na sua implementação”, disse.

Agostinho não citou exemplos, mas o caso mais conhecido de medidas mitigadoras tomadas para evitar o desmatamento que não tiveram muito sucesso é o caso da BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA). Quando a pavimentação começou a ser discutida, a mera expectativa já levou a um aumento de 500% no desmatamento do entorno. 

Era o primeiro governo Lula e o Ministério do Meio Ambiente era comandado pela mesma Marina Silva que lidera a pasta agora. Para frear a devastação, foi criado um mosaico de unidades de conservação no entorno da rodovia. Apesar de terem inibido o processo, a região continua sendo uma fronteira de desmatamento.

Bruno Fonseca/Agência Pública
Nilmar Lage/Greenpeace
Nilmar Lage/Greenpeace

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