Há 30 anos na política, na qual ingressou por ser filho de um deputado estadual que se tornou um influente senador em Alagoas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), coleciona pelo menos três grandes escândalos na carreira. Em comum, todos envolveram assessores diretos do parlamentar.
Os três trabalhavam muito próximos de Lira, um deles chegou a ter a senha do cartão de crédito pessoal do parlamentar. Numa demonstração de resiliência, de uma defesa jurídica bem montada e de muito bom trânsito no Judiciário, contudo, Lira saiu praticamente incólume das investigações, pelo menos até aqui, enquanto seus assessores suportaram o ônus das acusações.
É possível resumir a três as pessoas que trabalharam estreitamente com Lira e depois caíram em descrédito, mas que têm resistido sem emitir nenhuma palavra contrária contra o deputado ao longo de todas as investigações: Djair Marcelino da Silva, hoje com 67 anos; Jaymerson José Gomes de Amorim, 47; e, mais recentemente, Luciano Ferreira Cavalcante, 44.
Em 2023, a Operação Hefesto
O mais novo escândalo ainda está em andamento. Em 1o de junho, a Polícia Federal (PF) desencadeou a Operação Hefesto, que levou o nome de Cavalcante ao noticiário. Lotado formalmente na liderança do PP na Câmara, o assessor parlamentar é reconhecido como alguém muito próximo de Lira e que o acompanha em diversas agendas e viagens. Sua mulher, Gláucia Maria de Vasconcelos Cavalcante, também já foi assessora do deputado, e sua filha, Maria Luiza Cavalcante, é sócia do primogênito do político, Arthur Lira Filho, na empresa de publicidade Omnia 360 Comunicação e Mídia. Morador de um condomínio de alto padrão em Marechal Deodoro (AL), Cavalcante preside o partido de direita União Brasil em Alagoas.
O nome de Cavalcante apareceu na investigação, aberta em 2022, no momento em que os policiais passaram a averiguar as movimentações financeiras da Megalic, empresa que vendeu “kits de robótica” para escolas no Nordeste. A empresa pertence a Edmundo Leite Catunda Júnior, pai do vereador de Maceió João Pedro Loureiro Pessoa Catunda (PP), conforme foi revelado pela Agência Pública em abril do ano passado. Ambos são aliados políticos de Lira no estado. Recentemente, João Catunda declarou ao podcast Política sem Off que Lira é seu padrinho político. “Não escondo isso de ninguém. Nós temos uma relação de muitos anos. É uma pessoa que sempre me ajudou, me deu a mão na política. Costumo dizer que, sim, é meu padrinho político.”
No caso Megalic, a PF suspeita de superfaturamento e pagamento de propina nas aquisições feitas pelo Ministério da Educação a partir de emendas parlamentares dentro do chamado “orçamento secreto”.
São muitos os pontos de interrogação sobre Cavalcante, que foi exonerado do gabinete da liderança do PP no início do mês, após seu nome ter ganhado manchetes como alvo da Hefesto. A PF apurou que a Megalic fez pagamentos a empresas pertencentes a um casal de moradores de Águas Claras, na região metropolitana de Brasília, Pedro Magno Salomão Dias e Juliana Cristina Batista. A polícia logo descobriu que o casal fazia saques em agências bancárias no Distrito Federal e, na sequência, supostamente entregava esses valores em espécie em diferentes locais da capital federal. A PF passou a acompanhar Magno e Juliana, fotografando e filmando tanto os provisionamentos de saque, dentro das agências bancárias, quanto a movimentação do casal nas quadras de Brasília.
Um desses endereços, posteriormente alvo de busca e apreensão da PF, foi um quarto de hotel no Complexo Brasil 21, local “em que Luciano se hospeda quando está em Brasília”, diz um relatório da PF. O apartamento 217 “foi visitado pelo motorista de Luciano, Wanderson Ribeiro Josino de Jesus”, após um encontro com Pedro Magno. No dia do encontro, diz a PF, houve uma “intensa troca de mensagens” e “inúmeras chamadas de áudio” entre Cavalcante e Magno.
A PF detectou que Cavalcante e Magno trocaram 83 mensagens de 9 a 21 de maio passado. Além disso, eles se falaram “51 vezes por chamada de áudio” no aplicativo WhatsApp.
A PF descobriu ainda que existia um grupo no WhatsApp denominado “Robótica Gerenciamento”, do qual faziam parte seis pessoas, incluindo Cavalcante e Roberta Lins, a segunda sócia da Megalic, ao lado de Edmundo Catunda.
A polícia apurou que um carro utilizado pelo casal Magno e Juliana em Alagoas, uma camionete Toyota Hilux, está registrado em nome de um policial civil aposentado e empresário, Murilo Sérgio Jucá Nogueira Júnior, porém os “seus reais utilizadores/proprietários” seriam Luciano Cavalcante e sua mulher, Gláucia. Por fim, a PF levantou dúvidas sobre a casa utilizada por Cavalcante e Gláucia. Ela foi “recentemente construída pela construtora EMG”, empresa que recebeu “mais de meio milhão de reais da Megalic”. No mesmo período, Edmundo Catunda, sócio da Megalic, “teria transferido R$ 550 mil” para o policial dono da Hilux.
Na decisão que autorizou buscas e apreensões em diversos endereços, o juiz federal substituto da 2ª Vara Federal de Maceió (AL), Sérgio Silva Feitosa, escreveu que “a PF enaltece que o casal Gláucia e Luciano Cavalcante figura como ‘prováveis’ [sic] beneficiários finais do fluxo de dinheiro originado na empresa Megalic, transferido para as empresas de fachada do casal de operadores financeiros e usufruídos por meio da utilização do veículo Hilux e da magnífica casa construída no luxuoso Condomínio Laguna”.
Nas poucas vezes em que falou em público sobre a operação da PF, Lira nada explicou sobre essas atividades do seu assessor. À GloboNews, ele disse que cada um é responsável pelo seu CPF. “Eu não vou comer essa corda, vou me ater a receber informações mais precisas, e cada um é responsável pelo seu CPF nesta terra e neste país.”
Apesar das ligações entre os investigados e seu assessor Luciano Cavalcante, e deste com o parlamentar, Arthur Lira não é alvo da Operação Hefesto, inclusive por uma razão legal: parlamentares detentores de foro especial por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”, só podem ser processados pela Procuradoria Geral da República (PGR) no Supremo Tribunal Federal (STF). Em algum momento, se a PF considerar ter encontrado indícios suficientes sobre uma eventual participação de Lira, o caso relativo ao deputado poderá ser transferido para o STF por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal em Alagoas, após um eventual relatório da PF informar os achados.
Em 2007, a Operação Taturana
Arthur Lira já esteve na mira da PF em outras ocasiões. Em 2007, quando ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa de Alagoas, foi deflagrada a Operação Taturana, que levantou indícios de que o parlamentar liderava um suposto esquema de “rachadinhas”, de acordo com denúncia do MPF. Assim como na Operação Hefesto, na época as investigações também chegaram a um assessor muito próximo do político, Djair Marcelino da Silva, apontado como o operador do esquema.
Treze anos depois do escândalo, ele voltou a trabalhar no gabinete de Arthur Lira, desta vez na Câmara dos Deputados, onde está lotado até hoje.
A PF identificou que parte dos recursos que teriam sido desviados do Legislativo de Alagoas de 2001 a 2007 saía do salário de funcionários fantasmas, e seria Djair, então chefe de gabinete de Lira, supostamente o responsável por retirar o dinheiro na boca do caixa — uma espécie de “entreposto financeiro” da organização, segundo a denúncia do MPF.
A ação, que começou com o MPF, foi parar nas mãos do Ministério Público Estadual em 2018, após decisão do STF que limitou o foro privilegiado a crimes durante e em função do cargo.
Conforme depoimento prestado por um gerente do banco Bradesco em 2007, Djair teria descontado “aproximadamente dez cheques nominais” de servidores comissionados contratados por Lira. “Eu fui envolvido nessa questão lá atrás, mas não ficou nada comprovado. Se tivesse, eu teria dito”, afirmou o assessor em entrevista concedida à Pública em 2021. Ao ser questionado se existe a prática da “rachadinha” no gabinete do presidente da Câmara, ele respondeu: “Pelo que eu conheço do Arthur, há muito tempo, ele não permitiria esse tipo de coisa, tá certo? Nem eu permitiria”.
Lira e Djair se conheceram em 1989, quando o político promovia vaquejadas no Parque Arthur Filho, no município de Pilar (AL) e Djair trabalhava na TV Gazeta de Alagoas. O parlamentar contratou Djair para cuidar dos eventos no parque. Ao longo do tempo, Djair se transformou em “faz-tudo” de Lira.
“O Djair toma conta do escritório de Arthur Lira em Maceió. Pensão alimentícia de Arthur Lira, quem paga é Djair, ele pagava o colégio do filho do Arthur Lira quando o menino vivia em Maceió; cartão de saúde, quem renovava era ele, tudo! Até quando o pai tinha que comparecer no colégio, quem ia era o Djair”, revelou à Pública uma pessoa próxima aos dois, que prefere não se identificar.
A PF revelou ainda que parte do dinheiro que teria sido desviado da Assembleia de Alagoas foi depositada na conta da ex-mulher de Arthur Lira, Jullyene Lins. Ela confessou, no processo, ter sido funcionária fantasma do ex-marido e de ser proprietária da conta que recebia o dinheiro. Além dela, as investigações apontaram que Lira também teria usado dois funcionários de seu gabinete à época como laranjas “para depositar em suas contas-correntes os valores indevidamente desviados”. Segundo os procuradores, os supostos laranjas “cediam suas contas para que, por meio delas, transitassem recursos destinados ao deputado”.
As provas levantadas durante a operação renderam a Lira duas condenações na esfera cível por improbidade administrativa — em primeira instância, em 2012; em segunda instância, em 2016 –, mas elas foram anuladas em abril deste ano por decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Humberto Martins. Na esfera criminal, ele foi absolvido depois que a investigação foi anulada sob a justificativa de que deveria ter sido realizada pela Justiça Estadual, e não pela Federal. O Ministério Público de Alagoas tenta até hoje reverter a sentença.
Lira aparentemente não se intimidou com as denúncias. Ao longo de seu mandato na Câmara dos Deputados, ele nomeou ao menos sete parentes de Djair em seu gabinete, sendo que um deles tem indícios de ser funcionário fantasma, conforme revelou reportagem da Pública em março de 2022. Posteriormente, o próprio Djair voltou ao posto de chefe de gabinete do parlamentar. De 2011 a 2021, Lira empregou dois filhos, três sobrinhos, a ex-mulher e uma prima de seu assessor. “Todo político tem que ter as pessoas [em] que ele possa confiar”, justificou Djair à Pública.
O caso se assemelha ao de Luciano Cavalcante, que teve a mulher empregada no gabinete de Lira e depois indicada por ele para um cargo na Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), assim como seu irmão, Carlos Jorge Ferreira Cavalcante. A empresa pública é vinculada ao Ministério de Desenvolvimento Regional e teria influência política de Arthur Lira. Um dos filhos de Djair, André Marcelino Loureiro Viana Silva, depois de ter passado pela Câmara, também foi indicado na CBTU.
O único parente de Djair que continua lotado no gabinete de Lira até hoje é seu sobrinho Luciano José Lessa de Oliveira, mas há indícios de que ele dá expediente em outro local. Lessa, que é dono de uma gráfica em Maceió (AL), a Sete Comunicação Visual, foi flagrado por nossa reportagem em 2021 cinco vezes no local em horário comercial.
O horário de atendimento divulgado nas redes sociais da Sete Comunicação é das 9 horas às 22h30. Lessa coloca na calçada uma placa com seus contatos e a divulgação do seu trabalho: “banners, adesivos, placas e faixas”. Segundo vizinhos ouvidos pela Pública, “ele costuma passar o dia na gráfica”.
Ele foi nomeado por Lira no início do primeiro mandato do deputado na Câmara, em 7 de fevereiro de 2011. Nessa época, José Lessa já tocava a Sete Comunicação havia um ano, conforme registro na Receita Federal. Abordado por nossa reportagem, ele contou que trabalhou na campanha de Lira nas eleições de 2010, a convite do tio Djair, e que posteriormente foi convidado a integrar o quadro de funcionários do gabinete. Luciano disse, no entanto, que não vai a Brasília. “Eu lido aqui direto, com o pessoal daqui de Maceió”, afirmou.
Em 2012, o dinheiro no aeroporto
Haviam se passado apenas cinco anos do escândalo da Operação Taturana quando o nome de Arthur Lira voltou aos jornais de forma não exatamente honrosa. Em fevereiro de 2012, o brasiliense Jaymerson Amorim foi parado pelos agentes de fiscalização do aeroporto de Congonhas (SP) ao tentar embarcar para Brasília com cédulas em dinheiro presas ao corpo ou escondidas nos bolsos do paletó. Foram apreendidos R$ 106,4 mil.
A princípio, nos primeiros depoimentos aos agentes do aeroporto e à PF, Jaymerson desconversou e evitou a todo custo fazer qualquer ligação de seu nome com Lira, mas logo a PF descobriu que ele era um assessor do deputado, aliás, um dos mais próximos, e as passagens aéreas haviam sido bancadas com o cartão de crédito pessoal de Lira.
Num espaço de três anos, Jaymerson apresentou duas versões contraditórias sobre a origem do dinheiro. A PF e a PGR também apontaram contradições nas manifestações de Lira, conforme a Pública relatou em reportagem na semana passada.
Em 2018, a PGR denunciou Lira por supostas corrupção e lavagem de dinheiro. Um ano depois, o STF aceitou apenas a primeira imputação, mas Lira recorreu. Quatro anos depois, a PGR voltou atrás e “desdenunciou” o presidente da Câmara. Com isso, os ministros do STF na Primeira Turma rejeitaram a denúncia no último dia 6 de junho. Tanto Lira quanto Jaymerson agora se encontram isentos de qualquer investigação ou acusação pelo transporte do dinheiro. Agora Jaymerson, que voltou a trabalhar na Câmara, já avisou que pretende receber de volta o valor apreendido — corrigido pelo índice IPCA, são R$ 207 mil.
No depoimento e na defesa que apresentou ao STF, Arthur Lira confirmou que Jaymerson era seu assessor na época da apreensão do dinheiro, mas negou qualquer participação. A exemplo do que Luciano Cavalcante fez na semana passada, Jaymerson também se desligou, na época, da Câmara dos Deputados. Lira disse ao STF que a presença do seu então assessor em São Paulo estava relacionada a um “assunto pessoal” de Jaymerson.