Buscar
Coluna

Um ano depois, o Vale do Javari é uma ferida aberta

No retorno à região, a Pública encontra mudanças pontuais, mas ainda sérios desafios para o futuro do local

Coluna
12 de julho de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.

Retornar ao Vale do Javari, no Amazonas, um ano e um mês depois do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips é como revirar uma ferida aberta. Mudanças pontuais são perceptíveis, mas os múltiplos problemas econômicos e sociais permanecem sem solução, como a dificuldade na implantação de projetos que possam aliviar as pressões sobre a Terra Indígena Vale do Javari e a insegurança alimentar dos indígenas que vêm para os centros urbanos em busca de educação escolar ou para sacar benefícios dos programas sociais.

Na época do seu assassinato, em 5 de junho do ano passado, Bruno Pereira trabalhava justamente com o objetivo de reativar, junto a uma comunidade de ribeirinhos, um projeto de manejo de pirarucus fora da terra indígena. Ele compreendia que a proteção da terra indígena passava também pela criação de opções econômicas para os não indígenas.

Agora os indígenas Kanamari, com apoio do Ibama, da prefeitura de Atalaia do Norte (AM) e de empresários de turismo da região, querem turbinar um projeto de manejo de pirarucus – cuja pesca na natureza está proibida desde 1996 –, que foi iniciado em 2018 com consultoria da organização não governamental Centro de Trabalho Indigenista (CTI), mas não encontrou apoio ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). O plano é que os Kanamari possam abastecer o comércio da região, mas também a merenda escolar e outros programas sociais.

Há pequenos sinais que dão certa esperança sobre o futuro da região. Nos portos de Atalaia do Norte e de Tabatinga (AM), apareceram novas embarcações da Funai, duas ou três lanchas pintadas e equipadas com proteção para os dias de chuva. A Funai colocou em marcha mais ações, como uma expedição que partiu de Atalaia nesta sexta-feira (7) a fim de apurar notícias de aparecimento de indígenas isolados em uma aldeia perto do rio Ituí. Deslocamentos desse tipo, que fortalecem a imagem e a presença do Estado na região, haviam se tornado raros durante os anos de Bolsonaro.

A internet na região melhorou com a chegada dos equipamentos da marca Starlink, produzidos pela empresa de tecnologia SpaceX. Obter a antena se tornou o sonho de consumo dos moradores de Atalaia, Benjamin Constant (AM) e Tabatinga. Nos últimos meses, o preço de uma antena oscilou entre R$ 3 mil e R$ 1.600, uma promoção. Como é preciso pagar a taxa de manutenção mensal do serviço, que passa de R$ 250, as antenas se tornaram também fonte de renda. Os donos, principalmente comerciantes, alugam aos moradores o uso do sinal por tempo determinado.

A ironia é que o equipamento que primeiramente se disseminou por garimpos e outras atividades ilegais na Amazônia agora também ajuda os próprios indígenas do Javari a organizar suas ações de monitoramento. Barcos nos locais mais distantes da terra indígena já conseguem se comunicar em tempo real com a sede da Univaja, a principal organização indígena da região, em Atalaia.

De um ano para cá, o monitoramento dos crimes ambientais pelos próprios indígenas com apoio da organização não governamental Nia Tero, nas chamadas Evus (Equipes de Vigilância da Univaja), segue fortalecido e não recuou apesar de ameaças que continuam e dos assassinatos de Bruno e Dom, em 2022, e do indigenista Maxciel Pereira, em 2019. Na prática, os indígenas, muitos deles jovens, na casa dos 20 anos, se veem na contingência de substituir o papel do Estado. Junto com indigenistas engajados no projeto, como Orlando Possuelo e Carlos Travassos, eles se arriscam na proteção do território.

Autoridades do governo Lula procuram demonstrar que estão atentos aos acontecimentos no Javari – o que, em si, já representa um avanço, considerando os quatro anos de Bolsonaro, que disseminava um discurso pró-garimpo e antidemarcação de terras indígenas. No último sábado (8), quando ocorreu na Universidade Nacional da Colômbia, em Leticia, na fronteira com Tabatinga, um encontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o seu colega colombiano Gustavo Petro em torno de uma aliança dos países amazônicos, a Agência Pública perguntou à ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, sobre o plano do governo federal para o Javari. Ela ponderou que o crime ocorreu há um ano, mas o atual governo completou apenas seis meses.

“O plano nós estamos agora elaborando — e já, em algumas áreas, sendo efetuado – para combater a criminalidade na região de fronteira e também nos territórios indígenas. No Vale do Javari, já há um monitoramento, ali, permanente dentro do planejamento da Funai, com a presença já de contratados temporários e servidores da Funai. Foi realizada uma visita lá na região do Vale do Javari e a elaboração de um plano compartilhado com o Ministério do Meio Ambiente, com Ibama, Ministério da Justiça, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, Ministério da Defesa e com as organizações indígenas.”

Em resposta à pergunta de outra jornalista, também sobre a criminalidade na região de fronteira, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse que sem a efetiva cooperação entre países fronteiriços “é muito difícil competir com os criminosos”.

“Em relação aos crimes transnacionais, há um consenso de que precisamos enfrentá-los em dois trilhos. O trilho dos Estados nacionais, cada um se fortalecendo para fazer o seu próprio combate à criminalidade no âmbito de seus territórios, e [o trilho] da cooperação internacional. Nós sabemos que muitas vezes, quando fazemos operações dentro dos nossos territórios, há um transbordo para outros países vizinhos, e isso acontece em relação ao Brasil com a Colômbia e vice-versa.”

Ecos do Javari surgiram também no discurso de Lula no ato de encerramento do evento, na tarde do sábado (8). “Quem protege a Amazônia merece ser protegido. Se a floresta está de pé hoje é, em grande medida, graças aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e aos defensores e defensoras da causa ambiental. Nomes como Chico Mendes, irmã Dorothy Stang, Bruno Pereira e Dom Phillips são emblemáticos desse histórico de violência que aflige a Amazônia brasileira.”

Os povos indígenas e os indigenistas que atuam no Javari esperam que esse histórico tenha um ponto final a partir de uma miríade de iniciativas governamentais numa região em que a presença do Estado é fundamental.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo e também a cobertura única e urgente que estamos fazendo no especial Clima das Eleições. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes