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Em 25 de maio passado, a Agência Pública revelou a existência, a divulgação pelo atual governo e o conteúdo de documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) endereçados à Casa Civil do governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19. A primeira reportagem tratou do fichamento de líderes caminhoneiros durante a pandemia.
A reportagem informou que o relatório fora “enviado em 2020 à Casa Civil, pasta então comandada pelo general do Exército Walter Braga Netto”, na qual “funcionava um grupo interministerial criado para coordenar o combate à pandemia da Covid-19”. A reportagem explicou que “o documento integra um conjunto de 170 arquivos produzidos pela Abin, de março a junho de 2020, ao qual a Pública teve acesso”. O número de relatórios liberados após esse mesmo pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI ) foi aumentando dia a dia.
Uma segunda reportagem, publicada em 29 de maio, revelou que a Abin alertou o governo Bolsonaro sobre o aumento do garimpo ilegal em terras indígenas durante a pandemia. O texto avisou também que o documento “integra um conjunto de 170 arquivos produzidos pela Abin de março a junho de 2020 ao qual a Agência Pública teve acesso via Lei de Acesso à Informação, após dois anos e meio de negativas do governo de Jair Bolsonaro (PL)”.
O acesso aos papéis, portanto, foi resultado de um esforço da Pública em prol da transparência pública para conhecer as medidas tomadas ou não tomadas pelo governo Bolsonaro durante a pandemia. As duas reportagens anunciaram que o governo Lula, acionado pelos jornalistas em janeiro passado, agora estava adotando a política de liberar tais documentos produzidos pela Abin e que estavam em poder da Casa Civil. Abriu-se uma caixa de Pandora, anunciada em primeira mão pela Pública.
Em 29 de julho, o jornal Folha de S.Paulo divulgou uma reportagem – sem crédito às reportagens anteriores da Pública – sobre o mesmo tema, isto é, os documentos enviados pela Abin à Casa Civil do governo Bolsonaro. A reportagem disse que o Planalto, sob Bolsonaro, “escondeu projeções de casos e mortes na pandemia”.
O trabalho da Pública a fim de trazer esses e outros papéis ao conhecimento dos leitores foi amplamente anunciado em todas as mídias e redes sociais com o objetivo geral de “abrir a caixa-preta do governo Bolsonaro”. Até mesmo uma campanha de arrecadação foi organizada especificamente para essa série de reportagens. Em fevereiro, a Pública já havia tido acesso a atas até então secretas que estavam arquivadas no mesmo setor do governo Bolsonaro, na Casa Civil, que recebeu os documentos da Abin, o Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), formado por representantes de vários ministérios e órgãos públicos. O acesso a esses papéis, que fora igualmente impedido durante todo o governo Bolsonaro, gerou uma série de reportagens na Pública.
Até o último dia 31, essa questão se resumiria a uma conversa sobre crédito e transparência jornalísticos, não tivesse o procurador-geral da República, Augusto Aras, repentinamente acordado para o assunto e solicitado os papéis da Abin. Repentinamente porque, lembre-se, desde 25 de maio, a partir das revelações da Pública, já se sabia que a Abin havia encaminhado relatórios sigilosos à Casa Civil sobre a Covid-19. Pode-se argumentar que a reportagem da Folha de S.Paulo tratou de projeções de casos e óbitos, mas o argumento também é controverso porque desde 24 de março de 2020, a partir de uma reportagem do site jornalístico The Intercept Brasil, o país já sabia que a Abin realizava projeções sobre casos e mortes na pandemia do novo coronavírus.
Mas Augusto Aras – no cargo de procurador-geral da República desde setembro de 2019, convém lembrar – não solicitou os documentos produzidos pela Abin em março de 2020 ou em 25 de maio de 2023, data da reportagem da Pública. Ele resolveu solicitá-los agora, no final de julho, somente depois da reportagem da Folha, exatamente quando a discussão sobre a sua suposta candidatura à recondução ao cargo de procurador-geral ganhou espaço em setores políticos e em parte da imprensa. O novo Aras se mostra diligente, atento à produção jornalística crítica sobre o governo Bolsonaro, muito embora tenha pulado a leitura das reportagens da Pública. A escolha do novo procurador-geral da República deve ocorrer até o mês que vem.
Ao “mostrar serviço”, o novo Aras poderia alegar que desconhecia o papel da Abin durante a pandemia até ler a Folha de 31 de julho. Nesse caso, ele não conta com um detalhe. Pelo menos desde 2021, a Procuradoria-Geral da República (PGR) sabia da existência desses documentos da Abin enviados à Casa Civil e também tinha pleno conhecimento das várias negativas do governo Bolsonaro em divulgá-los.
Como eu posso afirmar isso? É simples: em junho de 2021, eu mesmo impetrei um mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que o então ministro da Casa Civil, Braga Netto, fosse instado a fornecer imediatamente tanto as atas secretas do CCOP quanto todos os relatórios e outros documentos confeccionados pela Abin e entregues à Casa Civil durante a crise da Covid-19. Eu tive que ir ao Judiciário porque todas as minhas tentativas pela LAI, na via administrativa, foram recusadas pelo governo Bolsonaro. Busquei o Judiciário, mas pouco adiantou.
No segundo semestre de 2021, a PGR foi cientificada pelo STJ sobre o processo que abri. Ela sugeriu de forma, digamos, inventiva que os dados não fossem entregues diretamente a mim, mas antes ao ministro relator do caso no STJ, Sérgio Kukina. “O controle jurisdicional só pode ser exercido por meio da análise dos documentos e demais meios de prova em poder da autoridade impetrada ou de seus subordinados. Daí que a solução para o impasse processual consiste em requisitar aquelas provas da autoridade impetrada, para que o STJ as examine e, afinal, decida se seu conteúdo pode ser entregue aos impetrantes e merecer a ampla divulgação ínsita à atividade jornalística sem comprometer os valores constitucionais autorizadores da exceção do sigilo dos dados estatais”, escreveu a PGR.
Uma observação: a PGR falou em “impasse”. Mas não havia “impasse” nenhum. Era simplesmente um cidadão querendo saber como o governo agiu na resposta à pandemia.
Apesar da manifestação da PGR, absolutamente nada de concreto aconteceu no processo que atendesse a minhas expectativas. Só com a troca do governo, em janeiro, nós, da Pública, começamos a ter acesso aos documentos da Abin, não por uma decisão do STJ, mas pelo cumprimento da LAI na atual gestão do ministro Rui Costa, da Casa Civil. Se o ministério tivesse continuado, em 2023, sob o controle civil-militar dos bolsonaristas, muito provavelmente nada teria sido divulgado até agora, o que inclui a reportagem da Folha que só veio a público, é bom repetir, depois das primeiras revelações da Pública.
Desde junho de 2021, portanto há dois longos anos, o processo está sob a relatoria do ministro Sérgio Kukina, sem nenhum desfecho. Em 8 de maio passado, portanto depois da primeira reportagem da Pública sobre as atas secretas da Covid-19 na Casa Civil, Kukina determinou ao governo federal – isto é, não ao governo Bolsonaro, mas ao governo Lula – que encaminhasse os documentos ao STJ para uma análise prévia. Agora vejam a ironia: os documentos que o STJ poderia ter obtido há mais de dois anos já estão em poder de jornalistas.
O recente interesse de Augusto Aras por esses papéis inexistiu ao longo de toda a tramitação do mandado de segurança por mim impetrado em 2021. Como vimos, a PGR limitou-se a sugerir que os dados fossem enviados ao STJ, o que é muito diferente de trabalhar pela sua divulgação para a leitura e análise da PGR, de jornalistas e dos leitores em geral. Era o que eu desejava desde o começo do processo.
O novo Aras é combativo, diligente e curioso. Mas isso também quer dizer pouca coisa: a PGR apenas disse à imprensa que vai “analisar” os documentos para saber o que fazer, se é que vai fazer. Em Brasília, muitas vezes o melhor jeito de um órgão público não fazer nada é anunciar a abertura de algum procedimento preliminar. A abertura rende algumas manchetes de jornal, mas depois tudo é arquivado sem alarido, desaparece sem nunca ter existido. Resta o factoide, cujo objetivo se encerra nele próprio.