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No último fim de semana, quando o país batia recordes de temperatura e aparecia em mapas meteorológicos como um dos locais mais quentes do planeta, vi num grupo de WhatsApp de ambientalistas um deles compartilhando uma matéria que tinha saído uns dias antes: “Pode faltar cerveja com as mudanças climáticas, diz CEO de cervejaria”.
Junto com o print da reportagem, ele comentou: “Agora vai”. Como quem diz: se o risco de faltar cerveja não mobilizar as pessoas a lutarem contra as mudanças climáticas, não sei o que vai. Outro participante do grupo emendou: “A humanidade nunca esteve tão perto da extinção”. Não é? Imagina ter de passar pelo aquecimento global sem ao menos uma cerveja gelada para aliviar?
Era uma brincadeira, claro. Mas que evoca uma discussão importante neste campo: o que mobiliza as pessoas? Uma das estratégias é aproximar o problema do dia a dia, da saúde, da alimentação, do transporte. Mostrar como a rotina pode ser afetada. Em geral, quando pensamos em aquecimento global, a imagem mais rápida que se forma na cabeça é das ondas de calor, dos eventos extremos, do derretimento de gelo, do aumento do nível do mar. Mas, além do desastre, o que mais ele significa?
E se há uma coisa diretamente na linha de frente da mudança do clima é a agricultura. Pode faltar cerveja porque a produção de cevada e de lúpulo, ingredientes principais da bebida, será afetada com as altas temperaturas. A análise feita pela cervejaria japonesa Asahi considerou cenários futuros, mas produtores de lúpulo na Alemanha já estão constatando esses efeitos agora.
“Depois de uma temporada de cultivo marcada por temperaturas escaldantes, secas prolongadas e tempestades violentas, a safra de lúpulo da Alemanha no ano passado sofreu uma queda mais acentuada do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra Mundial”, apontou uma reportagem do The New York Times do início do mês, reproduzida pela Folha.
Não liga para cerveja? Escolha sua bebida favorita. Já saíram relatos semelhantes sobre vinho (aqui e aqui, só para citar alguns dos mais recentes), sobre uísque (link em inglês), até sobre a margarita! Ok, a gente vive sem álcool (será?). E um mundo sem chocolate, batata e peixe, como sugerido nesta reportagem da BBC? Café e laranja podem virar artigos de luxo, indica esta outra, da RFI.
No Brasil, os agricultores sabem o que está acontecendo. Têm evidências no seu dia a dia dos impactos do clima. O Rio Grande do Sul, estado fortemente atingido por eventos extremos, teve quebras de safra nos últimos anos com uma seca severa. Agora, é castigado pelas fortes chuvas. O ciclone extratropical do início de setembro coincidiu com a floração do trigo.
Conversei brevemente com o pesquisador Francisco Aquino, do Centro Polar e Climático da UFRGS, nesta semana para entender o que está acontecendo no estado. Por que tantos eventos trágicos em sequência. Ele lembrou que lá eles sempre tiveram ciclones extratropicais, granizo, ondas de calor, ondas de frio.
Mas, nas últimas décadas, as ondas de calor estão mais intensas e mais longas. A ocorrência de chuvas com granizo aumentou, o que é um indicativo de que as chuvas severas também aumentaram. Quando um ciclone, acompanhado de uma frente fria, se choca com ar muito quente e umidade vindos da Amazônia, tem-se o estrago. Um cenário piorado pelo El Niño e pelas mudanças climáticas. Está tudo mais quente.
Não lidar com o que deixa tudo mais quente é permitir que mais e mais eventos desses aconteçam. E aí eu tento chegar na provocação que fiz no título desta coluna: o que o marco temporal tem a ver com essa história.
Bem. Nesta quarta-feira (27), em votação a jato, o Senado resolveu bater de frente com o Supremo Tribunal Federal (STF) e aprovou um projeto de lei que institui o marco temporal – conceito que estabelece que terras indígenas só podem ser demarcadas se estivessem ocupadas na data da promulgação da Constituição. A aprovação ocorreu menos de uma semana depois que o STF decidiu, por 9 x 2, que o marco é inconstitucional.
A votação no legislativo foi capitaneada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que elegeu o tema como uma de suas prioridades. Há no Brasil diversos casos em que agricultores tomaram para si áreas tradicionalmente ocupadas por populações indígenas, instalaram suas produções e não querem, agora, correr o risco de perdê-las.
Até existem casos em que esse processo se deu dentro de algum verniz de legalidade, ou na boa-fé, como dizem os juristas. O Supremo decidiu que, nesses casos, até cabe indenização da terra nua. Estima-se que não seja o caso na maioria das zonas de conflito. A bancada ruralista, no entanto, dobrou a aposta. Quer o marco de todo jeito.
Por semanas, a FPA postou vídeos em suas redes sociais apelando para a emoção, com pequenos agricultores lamentando que perderiam suas terrinhas. Fiquei pensando por que nunca vemos uma campanha similar com agricultores que perderam tudo porque as mudanças climáticas devastaram sua plantação.
Vou fazer um exercício bem simplório, aqui, de ligar os pontos para terminar. O aquecimento do planeta e os eventos extremos associados se dão porque há muitos gases de efeito estufa na atmosfera. A maior parte disso vem da queima de combustíveis fósseis, mas cerca de um quarto é proveniente da mudança do uso da terra. Ou seja: por desmatamento e agropecuária. No Brasil, a maior parte das emissões vem dessas fontes.
Por outro lado, sabe-se que as terras indígenas, em especial no país, são os locais em que a floresta é mais preservada. Ou seja, os que mais contribuem, justamente, para absorver gás carbônico da atmosfera, ajudando a proteger o clima do planeta. De modo que, em resumo, haver terra indígena no país deveria ser prioridade para o agronegócio. É bom para a produção de café, de vinho, de cerveja…