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Em entrevista para o Pauta Pública, professora da UFRJ avalia votação que acontece em 1º de outubro

Entrevista
30 de setembro de 2023
04:00
Este artigo tem mais de 1 ano

As eleições para os conselhos tutelares — que ocorrem no dia 1º de outubro — ainda são um evento pouco conhecido por boa parte dos eleitores brasileiros. Os conselheiros são responsáveis por receber denúncias de violações contra crianças e adolescentes e têm o poder de encaminhá-las para os órgãos competentes.

Pela primeira vez, a Justiça Eleitoral irá unificar a votação, com o uso de urnas eletrônicas. Serão eleitos mais de 30 mil conselheiros, que terão a responsabilidade de assegurar efetivamente os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Na prática, a realidade é de violação desses direitos. Entre 2022 e 2023, houve o crescimento de 24% no número de denúncias de violência contra crianças e adolescentes, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Para refletir sobre alguns desses dados alarmantes e riscos que crianças LGBTI+, adolescentes grávidas e famílias ligadas a religiões de matriz africana podem sofrer, o episódio 91 do Pauta Pública convida Miriam Krenzinger, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ. 

Na conversa, a pesquisadora e coordenadora do Observatório do Conselhos reflete sobre a importância dos eleitores na votação para os conselheiros. “Essa eleição é fundamental que a gente pare para prestar atenção. Não só conhecer a importância dessa atitude cívica, de participação social, de presença nas urnas, prestar atenção nos conselhos, mas também da gente marcar uma posição que se contrapõe a uma onda neoconservadora”, reflete.

A pesquisadora aponta que líderes religiosos, organizações da sociedade civil e partidos políticos se apropriam das redes sociais para disseminar um fenômeno cada vez mais comum e desenvolvido entre a extrema-direita ao redor do mundo: o pânico moral ligado a crianças e adolescentes.

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.

EP 91 Disputa política e conselhos tutelares – com Miriam Krenzinger

29 de setembro de 2023 · Professora fala sobre atuação de conselheiros tutelares e seu papel decisivo no país

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[Andrea Dip] Eu fiz duas reportagens em que o papel da importância dos conselhos tutelares ficaram muito marcados para mim. Uma foi sobre a exploração sexual de crianças em Fortaleza. Outra, no Marajó. Na primeira, não havia estrutura alguma. Já na segunda, os conselheiros precisavam pagar gasolina do próprio bolso para resgatar crianças em situação de vulnerabilidade. Queria te ouvir um pouco sobre essa estrutura, o que é dada ou não é dada aos conselhos tutelares?

É importante ter uma qualificação técnica, política, um olhar laico, que esteja alinhado com o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]. O que a gente vê é um problema também de desvalorização pelas prefeituras, porque quem financia e cria as condições materiais do trabalho dos conselheiros são as prefeituras. Tem uma lei municipal que regulamenta esses conselhos, existe uma verba que é destinada, se decide quanto que eles recebem, o tipo de formação que eles recebem. Quem destina o dinheiro para essa estrutura, para essa sala, para esse espaço, é a prefeitura, quase sempre via a Secretaria da Atenção Social.

Aí é uma tensão, porque eles não são subordinados à prefeitura, mas precisam do poder executivo para existir. Eles precisam, muitas vezes, denunciar o Poder Executivo, precisam pressionar para prestar políticas, serviços. Há um imbróglio institucional.

Muitas vezes, [os conselheiros] são cobrados pelo Poder Judiciário para fazer ações que não são de competência deles porque eles entram em lugares onde o Estado não consegue entrar. Muitas vezes, servem como oficiais de justiça para notificar uma família que está com denúncias de ameaça, situação de risco em função de grupos armados. Não é papel deles. Eles são muito solicitados para serem atendentes do Ministério Público e do Judiciário. 

Por isso, a importância da gente aprender a votar, aprender a olhar os perfis e escolher, porque não é uma função simples, somente de participação política e de representação social das nossas crianças. É uma função muito delicada, que pode destruir famílias numa lógica criminalizadora, numa lógica que retira as crianças, por exemplo, do seu lar, porque há uma ideia de família muito padronizada no modelo nuclear. 

Recentemente, acho que foi em Minas Gerais, que a conselheira, simplesmente pela mãe ter uma raiz religiosa de tradição matriz africana, retirou, afastou essa menina dos cuidados dessa mãe. Ela coloca essa menina numa situação que é extrema, de abrigo, de uma violência institucional. Por mais que ali tenha um abrigo bem estruturado, é uma situação de violência. E que era simplesmente projeção de uma intolerância religiosa. 

[Andréa Dip] Eu também me lembrei de uma outra reportagem que eu fiz, em que uma adolescente tinha sofrido um abuso. Tinha tentado buscar na Justiça autorização para fazer o aborto legal, e foi abordada, repetidas vezes, por conselheiras tutelares da cidade, tentando demovê-la da ideia do aborto. Bom, os conselhos são essas entidades autônomas, que não estão subjugadas à prefeitura, mas existe algum tipo de mecanismo de controle para a atuação desses conselhos?

Existe. O órgão que fiscaliza as ações em nível municipal é o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA). É um órgão que muitas vezes tem uma relação tensa com os conselheiros, porque eles recebem as denúncias de práticas violadoras de direitos perpetradas pelos conselheiros. Muitas vezes, eles têm que criar o devido processo e decidir o que fazer, e o Ministério Público também.

Quem é que compõe esse Conselho Municipal? Metade são representantes de organizações da sociedade civil, é um conselho paritário, e a outra metade são representantes da prefeitura.

Então, o prefeito, dependendo de qual filiação, vai lá e indica representantes da assistência social, da saúde, e cria a parte do poder público. E o outro lado são das organizações, quase sempre de caráter religioso, assistencial. 

Eu fui agora recentemente para uma cidade lá no Norte, não vou citar, porque eu estou fazendo um trabalho com eles, no Pará. E eu questionei, nesse caso [citado pela entrevistadora], o que é que se faz? Existe um serviço direto de encaminhamento na área da saúde para essa menina fazer o aborto legal? Não existe. E a resposta de profissionais, assistentes sociais da saúde é porque as famílias são muito religiosas, elas nem iriam solicitar. O Conselho Tutelar, então, tem um papel político de trazer dados [de informar].

É claro que o ideal é que essas meninas não fossem exploradas. É uma esfera [de atuação] da Justiça, da segurança [pública]. São áreas que têm circulação de turista, de extração de minério, vem pessoas de fora, há exploração sexual infantil. Quando já se tem isso, tem que haver políticas para coibir. Mas, acontecendo [o estupro ou a exploração sexual], é preciso ter políticas de garantia do aborto legal.

Esse debate não existe. E os conselhos tutelares são fundamentais para provocar. E quem fiscaliza são esses órgãos que eu citei, mas também a sociedade.

[Clarissa Levy] Sobre essa disputa ideológica e política que acontece dentro dos conselhos tutelares. Eu me lembro que tinha, por exemplo, uma campanha super forte em igrejas evangélicas para que se elegessem conselheiros cristãos. Então, se você puder falar um pouco mais sobre essa disputa ideológica e política que parece acontecer nesse ambiente.

Essa eleição é sem precedentes na nossa recente democracia, que foi abalada. Por quê? Porque ela está ali reproduzindo o que já vem acontecendo e que a gente se deu conta quando Bolsonaro foi eleito em 2018, e o que a gente viveu nessas últimas eleições [em 2022]. Nós não estamos num contexto, num cenário tão favorável. Nós precisamos ocupar esses espaços populares, escutar o que eles estão dizendo e entender o processo não só de desinformação, mas de uma formação política de base.

Os conselhos tutelares são um dos espaços de entrada no espaço da política. Porque não tem como dizer que esse espaço não é um lugar de política. É um espaço de poder. E todo espaço de poder é um espaço de política. 

A gente tem projetos de educação. As crianças estão na escola com “n” problemas, questões de violência na escola. Como é que a gente lê esses problemas? É um projeto de educação que está em disputa. A gente tem várias disputas de projetos de sociedade. E essa onda, ela ainda está perigosa.

Não olhar para essas eleições é não dar atenção para a agenda da criança e adolescente, que é uma questão central para o desenvolvimento humano, integral para esses cidadãos e cidadãs que precisam da nossa proteção. E está na Constituição, tem que ser a prioridade número um do país. Não olhar para essa eleição é uma questão ética, legal. Mas também tem a questão política, do cenário político.

A gente precisa ocupar esse espaço da forma mais democrática, qualificada, preocupada com o bem comum, preocupada com a política pública. E precisa ser ocupado por pessoas, por representações qualificadas.

Primeiro, é democratizar o debate, que é o que vocês estão fazendo. Então, quando a gente começa a dar foco e luz para esse campo de poder, que é muito poder, que eles têm, e exigir qualificação, exigir respeito, valorização. 

Eu tenho colegas que foram [conselheiros] e não quiseram participar do processo de eleição, porque eles ficaram muito cansados. São pessoas muito sérias, educadoras, mas não quiseram mais porque é muito desvalorizado: eles trabalham de domingo a domingo, são criticados de todos os lados. Tem ali na micropolítica, no micropoder, experiências muito bonitas acontecendo, que a gente precisa valorizar.

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