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O dia em que Israel criou um aplicativo para manipular o discurso online

Aplicativo dava “missões” para ativistas como forma de influenciar opinião pública internacional

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29 de outubro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

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Como já estamos cansados de saber, a guerra entre Israel e o Hamas depende não só do que acontece no terreno, mas da percepção da opinião pública mundial sobre quem está certo e quem está errado – e na era da internet plataformizada isso significa quem está ganhando no bate-boca em redes sociais. Também sabemos que a divisão de opiniões sobre a questão da Palestina não é coisa de agora e que há anos diferentes grupos tentam influenciar o debate online. 

Pois bem: hoje vou contar um dos capítulos bizarros desta história, sobre quando um Estado tentou construir um aplicativo “patriótico” para ganhar qualquer discussão que pipocasse online. Esse Estado foi Israel. 

O aplicativo Act.IL foi lançado em junho de 2017 para arregimentar e organizar ativistas pró-Israel no mundo todo. Projeto conjunto da Universidade IDC Herzliya e de o grupo Israeli-American Council, foi amplamente financiado pelo empresário de direita radical Sheldon Adelson, financiador de campanha de Trump que, antes de morrer, esteve no Brasil fazendo lobby junto ao governo bolsonarista para liberar os cassinos resorts, negócio com o qual fez sua fortuna. 

O aplicativo prometia a quem o baixasse que só levaria “60 segundos para se juntar ao esforço de defender Israel”. Todos os dias, o aplicativo publicava algumas “missões” para os inscritos, que chegaram a ser mais de 12 mil. Os usuários ganhavam “pontos” por missões concluídas e os mais bem colocados recebiam prêmios que iam de uma carta de felicitação de um ministro do governo ou um boneco de David Ben-Gurion, o primeiro-ministro que é considerado fundador de Israel.  

O aplicativo chegou a ter mais de 12 mil ativistas registrados, principalmente sediados nos EUA. Só que, embora se autodenominasse “uma iniciativa estudantil”, tinha diversos laços com o Estado israelense. Além de ser fundado por um ex-agente da inteligência israelense, Yarden Ben Yosef, mantinha relação próxima com o Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel. Na época do seu lançamento, o ministério postou anúncios sobre o aplicativo nos jornais The Jerusalem Post e The Times of Israel. Ben Yosef disse ao site Forward que muitos dos funcionários eram ex-membros dos serviços de inteligência israelense e que mantinha contatos regulares tanto com o Exército de Israel quanto com o Shin Bet, a Abin israelense. 

O ministro Gilad Erdan – hoje embaixador de Israel na ONU – chegou a propagandear o lançamento do aplicativo durante a Parada para Celebrar Israel em Nova York. “O Estado de Israel está sob constante ataque de deslegitimadores que trabalham para demonizar Israel online e minar a nossa legitimidade como Estado-nação do povo judeu”, disse, adicionando que estava criando um esforço internacional para “unir apoiadores de Israel em todo o mundo” e fornecer “uma plataforma que fortaleça as suas atividades, com ferramentas que nos ajudarão a todos a combater o ódio e espalhar a verdade”.

Ou seja: era uma mistura de operação de informação estatal com ativismo globalizado e uma pitada de “Exército de trolls” online voltado especificamente para a disputa em língua inglesa, ou seja, para a opinião pública internacional. 

A especificidade do Act.IL é que ele ativava pessoas reais, e não perfis falsos, uma vez que a polarização sobre o tema da Palestina já causa engajamento e polarização, como mencionei na semana passada nesta newsletter. “Queremos construir uma comunidade online forte e efetiva que vai agir para mudar a narrativa”, disse o criador ao Forward. 

O aplicativo foi pensado e lançado em um momento em que cresciam as pressões do movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que articulava boicote, suspensão de investimentos e sanções contra Israel pelo tratamento aos palestinos. Por isso, muitas das “missões” tinham a ver com o tema.

Em uma delas, o aplicativo pedia que os ativistas curtissem uma página no Facebook que expunha alunos e professores da Universidade de Washington que tinham votado em um plebiscito para apoiar os direitos dos palestinos e os princípios do movimento BDS. O site expunha nomes e retratos dos estudantes, chamados de “antissemitas”.   

Outra “missão” pedia que os membros enviassem emails a senadores americanos solicitando que apoiassem uma lei federal que determinava a suspensão de subsídios para universidades que aderissem ao boicote a Israel. 

Mas a maioria das tarefas era mais prosaica, embora se enquadrassem em estratégias de manipulação online, como flooding, ou seja, inundar um fio de comentários em redes sociais ou sites noticiosos para mudar o rumo da conversa. “Deixe um comentário para denunciar a cobertura enviesada do site EI”, dizia uma missão, referindo-se a uma reportagem do site Electronic Intifada e indicando o texto a ser postado nos comentários. Outros veículos que receberam esse tipo de “inundação” de comentários coordenados incluem o canal russo Russia Today, a rede americana ABC News, o Kuwait Times e The Daily Telegraph, do Reino Unido – todos publicam em inglês.

O aplicativo pedia até mesmo boicote a estrelas pop do mundo de língua inglesa. Em novembro de 2017, uma das missões era que os membros enviassem email para uma igreja na região de Boston reclamando contra uma sessão de um filme crítico a Israel narrado pelo cantor Roger Waters, chamado de “um conhecido antissemita”. 

No final, o aplicativo não virou a maré do debate online a favor de Israel e foi encerrado nos últimos meses de 2022. 

Talvez porque seja difícil para Israel se contrapor ao fato de que até a ONU considera a ocupação na Palestina um estado de “apartheid”, ou seja, um crime contra a humanidade. 

O que não implica, caro leitor, que quem aponte isso como eu ache válido ou defensável o ataque do Hamas e o assassinato de seres humanos inocentes. Também não significa que outras iniciativas de esforço coordenado para apoiar a causa Palestina online não existam. 

A realidade não é binária; binários são os códigos de computadores. 

Mas a história serve para nos lembrar, mais uma vez, que fomentar a divisão e a polarização num ambiente online é lucrativo para as corporações que mais lucram na história da humanidade e fácil para diferentes grupos que querem impedir qualquer entendimento comum por interesses próprios – seja o Hamas, seja o governo de Benjamin Netanyahu, que se vale do ódio para se manter no poder. 

Estudar, entender, discutir uma solução que de fato encerre 56 anos de ocupação violenta é bem mais difícil. E não cabe na cacofonia das redes sociais. 

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