O tema da redação deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trouxe uma problemática muito presente na sociedade brasileira, porém pouco discutida: a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado por mulheres no Brasil. Essas, que por sua vez, representaram 60% dos participantes do exame, segundo balanço do Ministério da Educação (MEC) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
A discussão é complexa e passa por inúmeras questões, como regulamentação e remuneração da atividade doméstica, avalia Maria Bethânia Ávila, que é coordenadora da SOS Corpo (Instituto Feminista para Democracia, uma organização sem fins lucrativos do Recife voltada para emancipação de mulheres) e doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ela explica que a divisão sexual do trabalho condiciona socialmente mulheres a serem responsáveis pelo cuidado e tarefas domésticas, enquanto os homens se dedicam a trabalhos produtivos e remunerados. Ou seja, é um reforço das normas de gênero que naturalizam o papel das mulheres como cuidadoras e desconsideram o valor econômico e social do seu trabalho.
No episódio 98 do podcast “Pauta Pública”, Ávila critica a participação do capitalismo e do neoliberalismo na perpetuação das desigualdades de gênero ligadas ao trabalho. Ela destaca que, ideologicamente, há uma luta árdua no país para retirar do imaginário dos brasileiros a ideia que faz parte da natureza da mulher desenvolver o exercício do cuidado, seja da casa, do marido ou dos filhos, se houver. Para combater as intensas jornadas de trabalho realizadas majoritariamente pelas mulheres, a socióloga propõe a união de toda a sociedade com iniciativas populares ligadas à educação a partir de uma perspectiva feminista.
Confira os principais pontos da entrevista e ouça o podcast na íntegra abaixo.
EP 98 A jornada sem fim do trabalho das mulheres – com Maria Betânia Ávila
[Andrea Dip] O que é o trabalho invisível e não remunerado das mulheres, e de que maneira ele se conecta com o capitalismo e com o neoliberalismo?
Uma coisa absolutamente estrutural da sociedade que vivemos, dessa formação social capitalista, que é também patriarcal e racista, é a divisão do mundo do trabalho. Ela é estruturante das relações de classe, de raça e de gênero. Por isso, nós temos uma divisão de classe entre aqueles que possuem e dominam os meios de produção e aqueles e aquelas que vendem seus corpos com a força de trabalho.
Também temos uma divisão sexual do trabalho, que é o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. Do ponto de vista do que está organizado nesse sistema, os homens estão no trabalho produtivo e as mulheres no reprodutivo. Só que as mulheres, desde sempre, estão no trabalho produtivo e no reprodutivo.
Do ponto de vista da relação racial do trabalho é a mesma coisa. No Brasil, como fomos formados socialmente pela colonização e pela expansão capitalista, temos uma base de divisão do trabalho que começa com o trabalho escravo e que veio a partir de uma população negra da África que foi escravizada.
E essas divisões podem ser percebidas até hoje. Como a gente pode ver, foram definidos os atributos de quem é branco, de quem é negro, de quem é indígena.
É uma construção sócio-histórica orientada pelo capitalismo, porque é importante para a acumulação capitalista ter essa quantidade de trabalho gratuito ou, quando remunerado, a custos muito baixos, com muita desvalorização, um trabalho considerado hierarquicamente inferior. Por isso, é importantíssimo e funcional para o capitalismo e para o neoliberalismo não remunerar o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres.
[Andrea Dip] A filósofa Silvia Federici diz que o trabalho invisível e não remunerado das mulheres não só tem sido imposto ao longo de várias décadas, como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade feminina. De que maneira você acha que esse atributo foi sendo moldado e por que ele ainda é tão forte hoje?
Eu defendo que o patriarcado é anterior ao capitalismo. É possível perceber isso com a expansão capitalista realizada no século XVI que reestruturou o patriarcado e as relações de raça na Europa e nos países colonizados. Na visão do sistema, o trabalho doméstico é apenas um trabalho reprodutivo. Para ser lucrativo é preciso estar fora de casa.
Foi a partir dos movimentos feministas que houve essa tentativa de desnaturalizar os trabalhos ligados ao cuidado como feminino. Isso não é natural, é social, histórico, construído, então pode mudar. A partir daí, o trabalho reprodutivo passa a ser visto como um trabalho político, teórico, na prática.
Por isso que digo que é uma construção sócio-histórica atravessada de contradições e antagonismos. No nosso caso, até temos uma política social mais avançada. Mas apesar disso, uma das coisas que a gente tem que ser muito atenta e crítica é que as políticas sociais voltadas para o trabalho reprodutivo, para o cuidado, não sejam consideradas políticas para as mulheres, porque aí você está restituindo outra vez o Estado capitalista, que se sustenta na divisão sexual e racial do trabalho, no Brasil e fora do Brasil.
A gente precisa de muito debate, muita discussão, muita educação popular feminista, porque o tecido social ainda é tomado, muito construído, reconstituído e tramado por essa coisa conservadora. Ainda assim, as mulheres não vão mudar o mundo sozinhas, não vai ter um mundo das mulheres. O que vai ter é uma outra divisão do trabalho nesse sistema capitalista neoliberal.
Vou ilustrar uma dessas mudanças com uma pesquisa que fiz com trabalhadoras domésticas. A partir desse estudo foi que deixei de trabalhar com a ideia de dupla jornada porque não existe isso. Então, conceituei essa jornada de trabalho como uma jornada de trabalho intensa, extensa e intermitente, porque você trabalha intensamente, você trabalha extensamente.
No Brasil, as mulheres trabalhadoras acordam quatro horas da manhã e vão dormir onze horas da noite. Então não é uma jornada dupla nem tripla, é uma jornada intensa e extensa e intermitente, e para grande e para muitas mulheres é uma jornada simultânea também.
Não tem como conciliar isso tudo. Não há dois tempos, um tempo de trabalho e um tempo de vida. Ora, se eu trabalho 10 horas por dia ou 12 horas por dia, estou vivendo 12 horas por dia trabalhando, porque não existe outro tempo fora da minha existência.
Você pode ter políticas de suporte — que são ultra importantes —, mas não há conciliação entre trabalho produtivo e reprodutivo.
[Mariama Correia] Em um de seus artigos você menciona que, para uma mulher chegar às 8h no seu trabalho, outra mulher chega à sua casa às 7h; essa, por sua vez, já deixou as crianças às 6h com outra mulher. Isso resume bem a realidade das mulheres, enquanto uma mulher de classe média e alta se vale do trabalho das empregadas domésticas para ela mesma trabalhar em outras organizações, as mulheres mais pobres não têm acesso a esses mesmos recursos e nem essa mesma rede de apoio. Como essa estrutura produtiva estabelece um ciclo perverso entre as mulheres?
Para as mulheres de classe média e alta e para a burguesia, há uma divisão de classe e de raça, que vai fazer a passagem das suas responsabilidades para uma outra mulher. Mas, no Brasil só pouco mais de 30% têm carteira assinada.
Então, as mulheres que não têm recursos para isso, elas formam uma rede mediada por relações mercantis ou afetivas. Vão existir mulheres bem mais velhas cuidando de crianças, porque a filha, às vezes até a neta, está indo para o trabalho para poder garantir a renda para a casa. Vai ter um circuito na própria comunidade, com a ajuda da vizinha, da amiga. Ou seja, há uma rede de mulheres que se movimenta todos os dias para o mundo acontecer.
As mulheres só contam com as mulheres. Veja a creche. A creche é um direito das crianças, mas a creche é uma reivindicação fundamental das mulheres, porque ela acaba sendo também um direito para as mulheres. Porque uma coisa é você deixar em casa seu filho ou sua filha, outra coisa é você deixá-los na creche, onde eles vão ser alimentados, receber primeiros cuidados, aprendizados.
Não é só uma questão de exaustão física, mas também afeta mentalmente, subjetivamente as mulheres, porque as mulheres vão para o trabalho preocupadas com o que está sendo feito em casa.
[Mariama Correia] Para desmistificar essa questão da maternidade, falando sobre como o amor aos filhos não exclui a exaustão das mães e sobre a importância de ter redes de apoio, como é possível a gente visibilizar esse trabalho invisível das mulheres, sobretudo as que são donas de casa e que, mesmo trabalhando tanto, não têm direito a uma aposentadoria, a uma pensão, a outros direitos trabalhistas?
Eu acho que a gente tem que visibilizar justamente propondo leis, fazendo debates, desenvolvendo políticas públicas. Eu acho que esse aqui, por exemplo, é um momento de visibilidade, esse diálogo aqui entre nós.
A gente também tem que fazer muita educação popular feminista diretamente com as mulheres, é absolutamente estratégico nesse momento. Porque aí você, de fato, traz uma capacidade, uma consciência crítica. Todos, todes e todas precisam construir isso. Por isso que eu achei muito importante a proposta da redação do Enem.
Imagina a quantidade imensa de jovens — alguns certamente nunca haviam pensado nisso — pensando sobre isso, pensando a existência a partir de onde nós estamos, do nosso trabalho. Porque essa relação bionatural entre a maternidade e as mulheres como um amor que vem do útero não existe.
Ideologicamente a gente tem uma luta contra-hegemônica muito profunda contra os fundamentalismos, uma luta árdua. Isso é tão difícil mudar porque está no coração da acumulação capitalista, é bastante estratégico para sustentar esse sistema patriarcal e racista, que é o capitalismo.