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Cacique diz que a tese, cuja análise no Congresso se aproxima do fim, é estratégia ruralista para “derrubar a floresta"

Entrevista
8 de novembro de 2023
12:00
Este artigo tem mais de 1 ano

“Nós, povos indígenas, lutamos por uma causa justa, de vida. Então, o mundo está ao nosso lado.” Esta é a esperança do cacique Kayapó Raoni Metuktire para o desfecho do imbróglio envolvendo o marco temporal para demarcação de terras indígenas. 

A tese jurídica, centro de uma queda de braço entre Congresso Nacional, Executivo e Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos meses, pode chegar à etapa final de análise no Legislativo no próximo dia 9. Esta é a data em que devem ser apreciados os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao projeto de lei (PL) 2903/23, que estabelece o marco temporal. 

Em 20 de outubro, Lula rejeitou parcialmente o PL. A Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA), a chamada bancada ruralista, afirma ter votos para derrubar os vetos, ao passo que o movimento indígena tem tentado angariar apoio para mantê-los na sessão em que deputados e senadores darão a palavra final sobre o assunto.

Caso isso não seja possível, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou que questionará a constitucionalidade da lei no STF. No fim de setembro, a Corte afastou a tese do marco temporal.

Raoni esteve em Brasília no fim da semana passada para engrossar esses esforços. “O marco temporal não é só contra os direitos indígenas, afeta também o meio ambiente. Eles não vão conseguir aprovar. Tenho meus espíritos grandes que podem derrubar [o marco temporal]”, afirmou o nonagenário cacique em entrevista exclusiva à Agência Pública

O líder indígena conversou com a reportagem na tarde da última quarta-feira (1), depois de se reunir, pela manhã,  com a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.

O encontro que desejava, no entanto, não ocorreu. Raoni contou ter vindo à capital para conversar pessoalmente com Lula, que, de novo, não o recebeu. Desde que subiu a rampa com o presidente em 1º de janeiro, o internacionalmente conhecido cacique não conseguiu uma nova audiência com o mandatário. Sua última tentativa havia sido durante a Cúpula da Amazônia, em Belém, no início de agosto, quando tomou um chá de cadeira e terminou recebido por uma comitiva de ministros.

Na sexta-feira (3), ele chegou a ir ao Palácio do Planalto, mas foi atendido apenas por Marcelo Fragoso, secretário-adjunto da Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, vinculada à Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR). De acordo com a SGPR, o pedido do cacique para encontrar Lula foi encaminhado nesta terça-feira (7) ao seu gabinete pessoal. 

À Pública, Raoni disse que quer falar com o presidente para reivindicar o cumprimento de suas promessas aos povos indígenas. “Quando o encontrei na posse, ele falou que ia demarcar todas as terras indígenas que os parentes ainda não têm. Hoje vemos algumas delas demarcadas, mas faltam outras. Por isso, venho aqui cobrar”, destaca. Lula assinou a homologação – a etapa final do rito de demarcação – de oito territórios. Ele prometeu reconhecer formalmente todas as áreas indígenas do país até o fim do seu mandato.

Apesar do tom de cobrança ao presidente, Raoni disse que Lula é um “verdadeiro amigo”. Já em relação ao Congresso, as críticas foram mais duras. Foi de lá que partiram, nos últimos meses, iniciativas criticadas pelos indígenas, como o PL do marco temporal, aprovado no Senado menos de uma semana após o STF considerar a tese inconstitucional. 

Além de vincular a possibilidade de demarcação de terras indígenas à ocupação desses locais no momento em que a Constituição foi promulgada, em outubro de 1988, o projeto inclui outros pontos considerados prejudiciais aos direitos das comunidades, como apontam lideranças e especialistas. 

Para contrapor a força da bancada do agronegócio, são necessários “sabedoria ancestral e espiritual” e mobilização internacional, indica Raoni: “Nossa estratégia é soltar essa voz e denunciar o que está acontecendo com o planeta. Nossa luta é mostrar para todos que estamos batalhando justamente pelas nossas vidas. Por isso, viajo para o exterior falando para o mundo que precisamos proteger a floresta”.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por Raoni no idioma tradicional Mebêngôkrê. A tradução foi feita por seu neto, Beptuk Metuktire, de 28 anos.

O cacique Raoni veio a Brasília para tentar mais uma vez um encontro pessoal com Lula, mas foi recebido apenas pela Secretaria-Geral da Presidência da República

O senhor vem tentando uma reunião com Lula desde que subiu a rampa com ele em 1º de janeiro. O que quer dizer para ele? 

Vim pedir para que possamos continuar trabalhando juntos. Quando o encontrei na posse, ele falou que ia demarcar todas as terras indígenas que os parentes ainda não têm. Hoje vemos algumas delas demarcadas, mas faltam outras. Por isso, venho aqui cobrar. Venho também com o motivo de pedir a expulsão do madeireiros e garimpeiros das terras indígenas e o monitoramento e fiscalização de cada uma delas. Tirando os invasores, os territórios vão ficar livres e tranquilamente com os povos indígenas.

Há decisões judiciais determinando a retirada de invasores de terras indígenas em vários locais do país – uma delas, do presidente do STF, ministro Roberto Barroso, pede a expulsão dos garimpos ilegais das Terras Indígenas Yanomami (RR), Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau (RO), Kayapó, Munduruku e Trincheira Bacajá (PA) e Arariboia (MA). O ritmo para desintrusão dessas áreas está lento, na sua avaliação?

Sim. Tenho acompanhado informações sobre os [territórios dos] nossos parentes. Ainda não tiraram os madeireiros e garimpeiros. Venho para cobrar principalmente esse tema. Os garimpeiros e madeireiros estão causando muita ameaça ao nosso povo.

Como é a sua relação pessoal com Lula? Como são as conversas entre vocês?

Eu e Lula somos verdadeiros amigos. Conversamos corretamente, sem nenhum problema. Ele me perguntou, e eu falei para ele como trabalhar com os povos indígenas. Penso da mesma forma que ele: continuar com essa jornada juntos em prol das comunidades indígenas.

Hoje, as grandes ameaças aos direitos indígenas vêm do Congresso Nacional, onde a bancada do agronegócio tem uma força enorme. Como fazer frente a esse poder para garantir o avanço das demarcações, por exemplo?

Vamos estar firmes e unidos para continuar com a luta em defesa dos nossos direitos à terra e à vida. Enfrentaremos essas barreiras. Nós, povos indígenas, somos os primeiros habitantes desta terra, surgimos primeiro por aqui. Foi nosso criador quem nos fez. Quando houve o [primeiro] aquecimento global nesta terra, nosso povo desapareceu. Mas Iprenre, nosso criador, ressuscitou todos. Veio a água e os matou. Porém, Iprenre, novamente, os ressuscitou. Nossa estratégia é simples: seguiremos lutando com nossa sabedoria ancestral e espiritual, que pensa na natureza, porque estamos vendo o caos no planeta, que pode desaparecer um dia. Vamos gritar para o mundo que a floresta e a água são importantes para todos nós. Nossa estratégia é soltar essa voz e denunciar o que está acontecendo com o planeta. Nossa luta é mostrar para todos que estamos batalhando justamente pelas nossas vidas. Por isso, viajo para o exterior falando para o mundo que precisamos proteger a floresta. Assim venho trabalhando fora do Brasil, alertando o mundo sobre isso. Governos de outros países também estão ameaçando os povos [indígenas] que moram lá. Estamos passando pela mesma situação, e nosso dever é viajar para alertar todo mundo sobre a nossa vida, a natureza, nosso território e os direitos dos povos indígenas.

A queda de braço em torno do marco temporal se tornou um símbolo do embate entre os defensores dos direitos indígenas e o Congresso. O STF rejeitou a tese, mas a bancada do agronegócio reagiu, conseguiu aprovar o PL no Senado e agora promete derrubar os vetos de Lula. O senhor enxerga um desfecho para essa disputa?

Nós, povos indígenas, lutamos por uma causa justa, de vida. Então, o mundo vai estar ao nosso lado. O marco temporal não é só contra os direitos indígenas, afeta também o meio ambiente. Eles não vão conseguir aprovar. Tenho meus espíritos grandes que podem derrubar [o marco temporal]. Nós, povos indígenas, não somos só, temos muitos apoiadores. Eles não vão conseguir aprovar o marco temporal.

“Quando o encontrei na posse, ele [Lula] falou que ia demarcar todas as terras indígenas”, diz Raoni. “Hoje vemos algumas delas demarcadas, mas faltam outras”

Caso o marco temporal persista, quais consequências o senhor imagina que possa haver para os indígenas?

A única razão pela qual eles [ruralistas] querem aprovar o marco temporal é poder derrubar toda a floresta. A primeira intenção deles é destruir tudo o que tem nos nossos territórios. Depois, vão destruir tudo o que existe na Terra. Ou seja, simplesmente o papel deles é aprovar o marco temporal para acabar com tudo o que tem nos nossos territórios. Não vou aceitar isso. Os povos indígenas também não.

O senhor fala sempre que a união é necessária para que o futuro da humanidade seja garantido no planeta. Vê possibilidade de alcançar essa união com os ruralistas? 

Venho pensando nisso. Essas pessoas contrárias à nossa luta deveriam estar junto conosco para que possamos discutir, dialogar sobre nossos territórios. Isso não está acontecendo. Sem nos consultar, querem destruir o que existe em nossos territórios. Querem tomar nossas terras. Assim vieram fazendo, e se continuar dessa maneira, vão criar um problema muito grande contra a humanidade na Terra. Não somos só nós que estamos preocupados com isso, muita gente está preocupada. Eles precisam se aproximar e dialogar para que possamos mostrar nossas preocupações. Fico pensando em como fazer isso. 

No fim de julho, foram aprovados os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Kapôt Ninhore, no Mato Grosso, onde o senhor cresceu. Em seguida, deputados ruralistas criaram uma comissão na Câmara para “apurar e acompanhar” o trabalho na Funai na demarcação do território –  alguns deles visitaram o território sem autorização das lideranças indígenas em setembro. O senhor poderia explicar por que homologar Kapôt Ninhore é tão importante? 

Kapôt Ninhore é onde começou nossa resistência, onde está nossa origem Kayapó. Onde existiu nossa primeira aldeia. Nós é quem primeiro estávamos ali. E por que esse nome? Kapôt Ninhore é um nome muito antigo, foram nossos antepassados quem batizaram assim esse território. “Kapôt” quer dizer “Cerrado”, e “Ninhore” é porque havia ali havia muitos córregos do Xingu, muitos cruzamentos de rios. Meu pai, meu avô e minha mãe estão todos enterrados nesse lugar. Por isso, nós, Kayapó, queremos a demarcação desse território: para que possamos novamente morar nessa terra. É uma terra ancestral onde surgiram meus pais e eu. Já vinha cobrando a demarcação da Funai há muito tempo, mas não tive resposta. Quando Lula virou presidente, começou a pensar em demarcar Kapôt Ninhore. Quero ver essa demarcação em vida. 

[Nota de Beptuk Metuktire: “Ele cresceu em Kapôt Ninhore. Nasceu e os pais o levaram para lá, onde ele virou menino, adolescente e adulto. Depois, foi para o Xingu. Eles foram embora porque mataram o irmão dele nessa região, um homem branco o assassinou com arma de fogo. Toda a família fugiu para se refugiar longe desse lugar. Tiveram que sair para sobreviver (…) Nosso povo pensou: ‘vamos deixar algumas pessoas monitorando ali’. Foi quando começaram a morar lá os Juruna, ou Yudjá [que atualmente vivem na área]. E foi aí que se começou a pensar em demarcar”.]

O cacique Raoni durante sessāo do Supremo Tribunal Federal (STF) de julgamento do marco temporal de terras indígenas.
Povos indígenas “não vão aceitar” o marco temporal, afirma Raoni, que acompanhou as sessões do julgamento do STF sobre a tese

O ano de 2023 terminará, provavelmente, como o mais quente da história, conforme indicam as medições até o momento. O senhor acredita que é possível combater as mudanças climáticas? 

[A mudança climática] Já começou e vai continuar mais ainda. Vão secar os rios e acabar tudo nesta terra. Foi assim que me avisaram os espíritos grandes lá de cima. O que eles me disseram é que, se continuarmos falando mal do rio e da floresta, vão acabar com todos nós. Se todos no planeta pensarem a favor da vida, aí sim será possível [lutar contra as transformações do clima].

Daqui a dois anos, a Amazônia será, pela primeira vez, sede de uma Conferência do Clima da ONU, a COP30. Qual papel os povos indígenas devem ter nesse encontro?

Se chamarem a nós, povos indígenas, guardiões da floresta, aconselharemos todos que estarão lá. Acredito que seremos chamados, e vamos estar presentes, todas as lideranças, para nos manifestarmos. Há muito tempo venho falando que é preciso chamar os povos indígenas para participar dessas reuniões grandes com as autoridades. Estaremos lá para lutar em defesa da Amazônia.

O que o senhor almeja para os povos indígenas do Brasil e para o país como um todo?

Nós, como povos nativos, temos três coisas: cultura, tradição e língua. Temos que preservar nossas culturas com ferramentas de registro, como escrever no livro, gravar e filmar. Para poder mostrar de geração em geração, para que as próximas possam manter sua origem como indígenas. Preservando a cultura e a língua, eles vão seguir protegendo seus territórios e suas florestas. É isso que penso para eles. Por isso, eles têm que se preparar muito bem para seguir nessa jornada. Nós, que estamos com a idade muito avançada; nós, anciões, daqui a pouco vamos embora. E eles vão carregar nosso legado e nossa origem para manter os territórios.

O que o senhor, pessoalmente, ainda deseja realizar?

Desejo o Prêmio Nobel da Paz. As pessoas falam para eu continuar me candidatando, e eu quero recebê-lo. Mas penso que ainda vou continuar lutando em defesa dos povos indígenas e da natureza.

Edição:
Anna Beatriz Anjos/Agência Pública
Ricardo Stuckert/PR
José Cruz/Agência Brasil

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