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Pesquisadora Erika Berenguer explica como desmatamento no governo Bolsonaro e El Niño impulsionam recorde de queimadas

Entrevista
28 de novembro de 2023
12:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Apesar da queda expressiva nas taxas de desmatamento – que não ocorria desde 2018 –, as queimadas na Amazônia avançam cada vez mais, a ponto de cidades como Manaus, Apuí, Boca do Acre, Humaitá, Lábrea e Manicoré amanhecerem sob cinzas e fumaça. A situação é tão alarmante que o estado do Amazonas decretou emergência ambiental, num outubro que registrou o pior índice de queimadas dos últimos 25 anos.

Na avaliação de Erika Berenguer, membra do Scientific Panel for the Amazon, um braço da ONU dedicado a pesquisas realizadas na Amazônia, o cenário é resultado da combinação de dois fatores: o El Niño, que torna o bioma mais quente e seco, e a herança deixada pelas piores taxas de desmatamento nos últimos quatro anos, que foram amenizadas por terem ocorrido em anos mais úmidos, com a passagem da La Niña. 

Com 12 anos de experiência na Amazônia, Berenguer, que também é pesquisadora sênior das universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, explica de que maneira os incêndios florestais impactam quem mora dentro e fora da floresta. Ela alerta que esse é um problema que tende a se agravar ano a ano, com as mudanças provocadas pelas alterações climáticas. Berenguer ressalta que a Amazônia e o restante do planeta passem a ser vistos com o senso de urgência necessário.

No episódio 99 do podcast “Pauta Pública”, a Agência Pública conversou com a pesquisadora, que critica a forma ingênua como a responsabilidade pelos problemas ligados ao clima, por vezes, é atribuída às populações mais vulneráveis da Amazônia, e não às empresas ligadas ao agronegócio.

Confira os principais pontos da entrevista e ouça o podcast na íntegra abaixo

EP 99 Floresta queimando – com Erika Berenguer

24 de novembro de 2023 · Pesquisadora explica altos índices de incêndios na região Amazônica

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[Clarissa Levy] Como tem sido o avanço das queimadas na Amazônia neste ano especificamente? Como está a situação atual?

Novembro é um mês em que grande parte da Amazônia já começa a ver a estação chuvosa chegando e se estabelecendo. O que acontece é que esse ano é um ano de El Niño, que tem um efeito completamente diferente na Amazônia do resto do país, especialmente no Sul e no Sudeste. Na Amazônia, o El Niño deixa uma grande parte do bioma mais quente e mais seco.

Isso significa que aumenta a probabilidade de incêndios florestais, porque o fogo, quando utilizado, por exemplo, no processo de desmatamento, de manejo de pastagem ou na agricultura de subsistência – em anos de seca extrema –, consegue escapar dessas áreas designadas e entrar floresta adentro, porque a floresta está muito seca.

Então, o que a literatura mostra é que, em anos de seca extrema, como agora em 2023, ou como a última que a gente viu em 2015, há um aumento nos focos de calor. Ou seja, um aumento no fogo ocorrendo na Amazônia brasileira.

Agora, esse ano é um pouquinho diferente. Esse ano de seca extrema é justamente resultado da herança dos anos anteriores. A gente vem de 2019 a 2022 com uma alta do desmatamento, onde ano a ano, o desmatamento ficou acima dos 10 mil quilômetros quadrados.

Ou seja, há uma área sendo desmatada igual a de 2008, uma área muito grande sendo desmatada. No processo de desmatamento, o trator de esteira passa, derruba a floresta, e ela fica ali tombada no chão durante meses, até que ela esteja seca o suficiente pela incidência do sol e pelo vento. Quando se coloca fogo, aquela floresta literalmente vira fumaça, e aí sim a área pode ser plantada. Ou seja, o fogo faz parte do processo de desmatamento.

Então, a gente vem de quatro anos em que houve muito desmatamento, mas os últimos três anos foram de outro fenômeno: a La Niña, que aqui na Amazônia deixa a floresta muito úmida, chove mais do que o normal.

Isso significa que fica muito difícil colocar fogo na área desmatada, porque você coloca o fogo, mas está chovendo muito. Aquele fogo ou não pega, porque o material está muito úmido, ou ele logo se apaga, porque começa uma chuva ou porque está muito úmido.

Então, há uma combinação de fatores para esse ano estar tendo tanto fogo: a seca extrema do El Niño e a herança de desmatamento que ainda não havia sido queimada para a área ser plantada por conta dos últimos anos terem sido muito úmidos.

[Andrea Dip] E de que maneira esses incêndios na floresta impactam a vida fora da floresta, nas grandes cidades, por exemplo? Você poderia falar um pouco das proporções desse fogo, é possível mensurar os impactos dessas queimadas na Amazônia até agora?

Nesse momento, ainda é difícil mensurar todas as áreas da Amazônia brasileira que foram queimadas, as áreas de floresta que foram queimadas e os impactos disso tudo. Mas a gente pode já ter algumas indicações. 

Por exemplo, existe uma plataforma da Nasa que é ótima para entender quais áreas estão queimando, qual tipo de fogo, se é um fogo que está em área de pastagem, de desmatamento, de roçado ou incêndio florestal.

E utilizando essa plataforma é possível perceber que tem áreas de 200 quilômetros quadrados que já queimaram em 2023. Então, tem grandes áreas de floresta que já queimaram. Neste momento, não é possível ter uma contabilização de toda a área da Amazônia que já queimou em 2023.

No entanto, uma coisa que a gente sabe é a quantidade de carbono que é emitida por conta dos incêndios florestais. Quando há um incêndio numa área de floresta, entre 50% e 60% das árvores acima de 30 centímetros de circunferência morrem.

Isso porque as árvores na Amazônia não coevoluíram com o fogo. Essas árvores não têm mecanismos de casca muito grossa que geram isolamento térmico para a árvore, como acontece no Cerrado, por exemplo. As árvores, na Amazônia, quando o fogo vem, infelizmente morrem, gerando grandes emissões de CO2 para a atmosfera.

A única certeza que a gente tem em 2023 é que as emissões de gás carbônico vindas das queimadas na Amazônia vão ser muito altas por conta dos incêndios florestais. 

[Clarissa Levy] Nesse ano mais quente, com mais ondas de calor, cresceram os incêndios. O que a gente pode esperar dos próximos anos, pensando nas mudanças climáticas? O que dá para fazer para a floresta não queimar ainda mais, se cada vez parece que vai estar mais calor? 

Essa pergunta sobre o futuro da Amazônia é essencial para responder, tanto em termos científicos quanto em termos de políticas públicas.

Porque, se pensarmos que, tanto 2015, um ano de El Niño, quanto agora, 2023, mais um ano de El Niño, são janelas para o futuro, para a gente ver o que vai acontecer com a Amazônia. A gente tem uma escolha: se esse é o futuro da Amazônia que a gente quer ou se é outro.

Na bacia amazônica, as mudanças climáticas já aumentaram como um todo a temperatura em um grau e meio e as chuvas já diminuíram em diversas partes. Há partes que, durante a estação seca, já tem uma redução de 34% da precipitação, ou seja, 34% das chuvas. Logo, há um aumento da temperatura e uma diminuição da precipitação. 

Além de tudo, os modelos climáticos mostram que essas secas extremas vão, provavelmente, se tornar cada vez mais frequentes e mais intensas, portanto exacerbando os efeitos das mudanças climáticas. Se está mais quente, mais seco, a floresta fica muito mais fácil de pegar fogo – uma floresta que, historicamente, não pegava fogo, que não coevoluiu com fogo, como outros biomas, como o próprio Cerrado brasileiro.

Precisamos pensar em soluções caso a gente não queira que incêndios florestais se tornem uma realidade da Amazônia. Essas soluções são coisas que precisam ser discutidas agora. E o que fazer para a floresta não queimar, dado que as mudanças climáticas estão postas?

Bom, existem coisas em diferentes níveis que podem ser feitas. Em nível global, é essencial diminuir as emissões, principalmente de combustíveis fósseis, que representam a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa do mundo. Isso é uma responsabilidade global, porque essa tomada de comportamento diminuiria os impactos das mudanças climáticas na Amazônia.

Agora, dentro do Brasil, há coisas, sim, que podem ser feitas para evitar esses incêndios florestais. Primeiro, diminuir o desmatamento. Como eu falei, o fogo é utilizado no desmatamento, faz parte do processo de desmatamento, e esse fogo escapa para dentro da floresta, adjacente à área desmatada, quando está muito seco.

Agora, em 2023, essa chance do fogo escapar é muito maior. Por isso, se a gente diminuir o desmatamento, diminuímos as fontes de ignição e, com isso, reduzimos o risco do fogo escapar para dentro da floresta. 

Há também outras coisas que podem ser feitas. Por exemplo, ficamos sempre focados na taxa de desmatamento: subiu, desceu etc. Todo ano, em novembro, essa taxa é divulgada pelo Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], numa coletiva de imprensa. Então, há anos esses dados científicos dão protagonismo ao desmatamento no próprio debate público e no nosso entendimento de Amazônia e no delineamento de políticas públicas.

No entanto, os incêndios florestais não têm esse nível de protagonismo. Esses dados existem e são gerados pelo Inpe também. Como a área afetada por incêndios florestais na Amazônia todo ano e a área cumulativa existente de florestas, ou seja, quando se soma ano a ano a área que foi afetada por incêndios florestais.

É essencial que esses dados sejam divulgados para a gente conseguir, então, dar protagonismo aos incêndios, para que as soluções em relação aos incêndios florestais não pareçam de menos importância e não continuem a ser negligenciadas assim que a fumaça baixar. A gente precisa, ano a ano, divulgar a área afetada pelos incêndios, para que isso não saia da nossa cabeça e, então, as soluções passem a serem debatidas. 

Existem também outras coisas que podem ser feitas. Por exemplo, em anos de seca extrema, por que não ter um fundo emergencial climático?

Combater o fogo na floresta é muito mais caro e muito mais difícil do que prevenir o fogo na floresta. Se existe um fundo em todo ano é colocado uma soma de dinheiro, para que só seja acessado em anos de seca extrema para prevenir os incêndios florestais, isso vai evitar que a floresta queime. Se você está combatendo, é porque a floresta está pegando fogo, e o que é essencial é que ela nem chegue a pegar fogo.

A seca na Amazônia, na maior parte da bacia amazônica, vem no segundo semestre. E o fato desse ano ser de uma seca extrema já se sabia desde março e abril, quando todas as agências meteorológicas do mundo estavam divulgando que seria um ano de El Niño. Não sabíamos o quão forte seria, quais partes da bacia amazônica seriam as mais afetadas, mas a gente já sabia que seria um ano de seca extrema. Então, várias ações já poderiam ter sido tomadas desde então. 

E, por último, a gente tem que pensar na segurança alimentar dos povos amazônicos. Não podemos, de forma alguma, achar que uma moratória para o fogo é uma solução para os incêndios florestais na Amazônia.

Populações tradicionais, como populações indígenas, ribeirinhos, quilombolas, assentados da reforma agrária, todos esses povos utilizam do fogo para fazer o roçado, e não existe outra alternativa financeira para o roçado desses povos.

Não faz sentido colocar na conta desses povos a solução para o problema dos incêndios florestais, afinal as mudanças climáticas não foram causadas por esses mesmos povos. Então, quais outras alternativas para o uso do fogo no roçado? Uma delas seria, por exemplo, gerar uma bolsa defeso florestal.

Seria nos mesmos moldes de uma bolsa defeso que existe para pesca, em que durante alguns meses os pescadores não pescam certas espécies porque elas estão se reproduzindo. Aplicado, agora, no caso, para os anos de seca extrema. Então, esses pequenos agricultores, essas populações tradicionais aplicariam para uma bolsa, por exemplo, e o quanto de renda aquilo geraria. Assim, a pessoa receberia uma bolsa num valor pouco maior do que receberia pelo roçado, de forma a não utilizar o fogo, de forma a não colocar essas pessoas numa situação de insegurança alimentar. Porque só banir o fogo não vai adiantar nada, estaríamos apenas prejudicando as populações mais vulneráveis da Amazônia.

[Andrea Dip] Na sua avaliação, por que os incêndios florestais acabam não recebendo o destaque que merecem? O que falta para que esse senso de urgência seja despertado?

Os incêndios florestais realmente não recebem a atenção que merecem dada a magnitude do seu impacto e a extensão de florestas já afetadas. Por exemplo, se observarmos a bacia amazônica como um todo – composta pelos países que a compõem, como Brasil, Colômbia, Peru, Equador, Venezuela –, concluímos que 120 mil quilômetros quadrados de florestas em pé já queimaram.

É um problema que precisa de soluções imediatamente, de uma gama de soluções, mas para isso esse problema precisa de protagonismo. Se a gente só discute esse problema quando chega uma seca extrema, ele vai continuar sendo negligenciado.

O tema precisa estar constantemente sendo pautado pelos órgãos que geram esses dados, para então receber não só a atenção necessária, mas também as soluções que já estão sendo desenvolvidas.

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