A partir deste domingo, 17 de dezembro – e nos domingos seguintes –, as pessoas que estiverem circulando pela capital paulista e optarem por utilizar uma das 1.175 linhas de ônibus gerenciadas pela SPTrans não precisarão pagar passagem. De 0h às 23h59, irá vigorar na cidade o sistema de tarifa zero. O anúncio foi feito pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) na tarde da última segunda-feira, 11. A gratuidade também será aplicada no Natal, Ano-Novo e no aniversário da cidade, em 25 de janeiro de 2024.
Em contraponto, a partir de 1º de janeiro de 2024, o preço da tarifa do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitana (CPTM) passará de R$ 4,40 para R$ 5. O anúncio foi feito pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), nesta quinta-feira (14). Na mesma data, a Prefeitura afirmou que não irá acompanhar o aumento e manteve o valor da tarifa em R$ 4,40.
Desde março de 2023, a Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara Municipal de São Paulo, a pedido da Prefeitura, criou a “subcomissão Tarifa Zero” para discutir e elaborar uma proposta de gratuidade no transporte na cidade.
Desde então, foram 16 encontros entre os vereadores integrantes da subcomissão, técnicos das áreas de mobilidade urbana, especialistas em finanças e sociedade civil, que resultaram no relatório enviado ao prefeito com as considerações sobre a implementação da tarifa zero na capital paulista.
No documento de 57 páginas, a subcomissão ressalta a importância da política pública de tarifa zero, mas faz ressalvas sobre como a medida poderia ser implementada numa cidade com mais de 11 milhões de habitantes, integrada com a maior região metropolitana do país, com 39 municípios – a capital faz fronteira com 23 deles. Juntas, são quase 22 milhões de pessoas.
A Agência Pública conversou com o idealizador da tarifa zero e ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo durante a gestão da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1993), Lúcio Gregori. “Do ponto de vista do transporte das pessoas, no domingo, nada contra, mas é um dia que representa uma parcela muito insignificante da necessidade de mobilidade das pessoas”, pondera.
Gregori disse que é necessário que Governo Estadual e Prefeitura se juntem para uma só proposta para implementação da Tarifa Zero no transporte sobre trilhos. Ele também comenta a relação entre Prefeitura, empresas e usuários do transporte público. Gregori critica o modelo de remuneração das empresas, que não será alterado com a tarifa zero aos domingos, e sugere que é preciso separar quem freta os ônibus de quem cobra pelo transporte de passageiros.
Confira a entrevista:
Gregori, há 23 anos o senhor idealizou o projeto tarifa zero. Como e quando começou a pesquisar o assunto e qual foi o caminho para chegar à formalização da proposta?
Eu era secretário de Serviço de Obras da [ex-prefeita] Luiza Erundina. Por várias razões, o secretário de Transportes deixou a pasta e ela demorou muito para encontrar um substituto, então ela pediu que eu ficasse nas duas secretarias, Transportes e Serviços de Obras, enquanto ela resolvia os problemas políticos para uma indicação.
Nessa época, o escritório ficava junto à marginal do rio Pinheiros e no final da tarde eu olhava aquela montanha de carros na marginal e falei: ‘O que se pode fazer nessa cidade aqui pra ver se as coisas melhoram um pouco?’.
E num certo momento eu me lembrei que a população não paga [pela coleta do lixo] no ato do serviço de coleta: o caminhão passa na sua casa, pega o lixo e você paga uma taxa, ou dentro do IPTU ou à parte, para cobrir exatamente esses custos. Senão, seria uma confusão. Imagina o caminhão parar, você descer com o lixo, pesar: quanto é, tem troco, não tem troco.
Por que não se fazia uma coisa semelhante na questão do transporte e da locomoção nas cidades? Em vez de cobrar, por que não faz uma cobrança generalizada? E aí veio a ideia, a não cobrança no ato da utilização do serviço, mediante um pagamento por outros caminhos. Foi daí que surgiu a ideia de tarifa zero.
A prefeita gostou muito da ideia, quis adotar. Com a fonte de recursos que a gente tinha naquela época, não dava – você não pode criar impostos municipais nem taxas municipais sem aprovação federal.
Então a gente inventou um projeto de reforma tributária sobre o IPTU. Fazendo com que grandes empreendimentos, imóveis de luxo, sedes bancárias etc. pagassem um IPTU maior e com esse fundo se bancava a tarifa zero, mas não avançou na Câmara.
Qual foi o argumento usado pela Câmara para não adotar a tarifa zero há 23 anos?
A Câmara Municipal de São Paulo teve uma atitude extravagante. Ela simplesmente não pôs em votação a proposta. Portanto, as discussões não aconteceram no ritmo e intensidade que costuma acontecer num projeto que vai à votação. Então, o que houve foram manifestações à margem desse processo de votação, porque cada vereador deu o seu palpite.
E aí é aquela história de sempre, que não há dinheiro suficiente, que se o serviço não for adequado o ônibus vai ficar superlotado, que as pessoas vão abusar, que vai ter bandido, bêbado, gente que não tem o que fazer na vida e fica andando de ônibus. Daí entra um monte de histórias que não têm consistência.
Quais aspectos o senhor vê como determinante para que a cidade de São Paulo, agora, passe a adotar a tarifa zero – ao menos aos domingos?
Desde os tempos de dom João VI, quando foi feita a primeira concessão de transporte coletivo, o Estado brasileiro tem considerado o passageiro um custo, e esse custo é representado pela tarifa. A pandemia evidenciou para as empresas e a Prefeitura que a maneira como se relacionam precisava ser repensada.
Acontece que a pandemia fez com que a demanda, ou seja, a quantidade de passageiros, despencasse. Mas o que aconteceria se o passageiro fosse custo? O custo do sistema teria caído brutalmente.
Na verdade, não caiu. O que caiu foi a receita, porque o passageiro, para as empresas de transporte coletivo, é receita. Então ficou evidenciado que a quantidade de passageiros é fundamental, porque elas ganham por passageiro transportado.
Como desabou a quantidade de passageiros, e eles não voltaram ainda à quantidade que existia antes da pandemia, as empresas começaram a ter um faturamento menor. E isso provocou uma tentativa de solução.
Aumentar a tarifa não é o caso, porque, na verdade, vai cair ainda mais o número de passageiros. Então, a ideia da tarifa zero ganha corpo, porque, a partir daí, a empresa vai ter uma receita que independe da quantidade de dinheiro que o passageiro paga.
Ou seja, muito mais gente vai poder utilizar o serviço de transporte coletivo, que vai continuar sendo pago pelo passageiro transportado. E isso vai fazer com que as empresas tenham uma boa receita, embora a tarifa seja zero.
No modelo adotado pela Prefeitura, mesmo com a tarifa zero, as empresas continuarão ganhando por passageiro, e não por quilômetro rodado. Esse é o modelo ideal ou precisa ser discutido?
No Brasil, até hoje, nos contratos de concessão de transportes coletivos, o passageiro é considerado um custo. Então, quanto mais passageiro você tiver num ônibus, mais as empresas lucram.
Se você vai para o ponto A ou ponto B, o ônibus gasta o salário do motorista, do cobrador, combustível, o gasto de peça, como pneu etc. Tem um certo custo por quilômetro. Esse custo não varia com a quantidade de passageiros.
Quanto mais passageiros tiver no ônibus, mais receita você vai ter, por um custo igual. Então vale a pena ter transporte coletivo lotado. Essa é a lógica maluca que vige no Brasil desde 1888.
No caso dessa proposta que agora passa a viger na cidade de São Paulo no domingo, a tarifa zero é uma forma de simplesmente as empresas não cobrarem do usuário esse valor, mas da Prefeitura – que continua considerando passageiro um custo.
Você acha que existe espaço ainda para rever isso? Caso se avance para que a tarifa zero seja adotada nos outros dias da semana, por exemplo?
O perfil, vamos dizer assim, correto, é fazer o sistema pagamento por quilometragem rodada. A tarifa é uma outra coisa.
Eu acho que essa questão do pagamento por passageiro independe de ser tarifa zero ou sistema pago pelo usuário. De todo modo, ele, o usuário, é uma fonte de receita do sistema, e não um custo do sistema.
Então, vamos dizer, tanto faz ser no domingo, no sábado, na quinta-feira, de noite, de madrugada, de manhã cedo, o que seja: ou você faz um sistema que paga pela quilometragem, pelas extensões utilizadas de veículo, ou você continua pagando para o passageiro ser transportado como se fosse custo.
Em um grande número das cidades que têm tarifa zero, elas remuneram as empresas de maneira diferente dos passageiros sendo custo. E aqui em São Paulo, nessa proposta que inicia no domingo, vai ser feito o passageiro como um custo, ou seja, vai continuar existindo esse equívoco que leva a um aumento de custo do sistema para quem paga e uma melhora de receita e lucratividade para quem faz a operação.
O Rio de Janeiro adotou o seguinte. Eles separaram: uma coisa é contratar a empresa que freta ônibus – ela freta e [a Prefeitura] paga pela quilometragem que o ônibus rodar; depois, uma outra empresa que opera o sistema e separa quem opera de quem freta.
Assim, o camarada que freta quer fretar mais ônibus que dá receita para ele. Mas ele não tem nada a ver com a tarifa, tanto faz a tarifa. O outro que opera, também, ganha pela operação, mas não tem nada a ver com fretar ônibus mais caro, mais barato etc. Essa separação é muito interessante.
Outro ponto é que assim se separa a questão da garagem. Eu vou explicar rapidamente. O sistema de transporte coletivo é um sistema monopsônio. O que é isso? É um só fornecedor para cada espaço. Daí você divide a cidade em áreas e em cada área só opera um operador. Tanto as linhas rentáveis como as não rentáveis. E a garagem é dele.
Isso faz com que a garagem seja uma coisa estratégica. Na próxima concorrência, quem tiver garagem leva uma vantagem muito grande sobre aquele concorrente que não tem garagem, porque a empresa terá que comprar um espaço, montar uma garagem para poder entrar na concorrência. E se não ganhar, o que ele faz com essa garagem? Tem que jogar fora.
Então isso leva a quê?
Cada área acaba tendo uma empresa que vai renovando sistematicamente os seus contratos. Vou dar um exemplo: em São Paulo tem empresa que está há 60 anos operando na mesma área.
Essa outra forma que eu citei, você fazer uma empresa que aluga ônibus, a outra que faz o serviço do transporte, separa essas duas coisas. E quem aluga ônibus não tem nada a ver com tarifa e não precisa ter garagem. Ela pode alugar uma quando ganhar a concorrência, por exemplo.
Fazer a implementação da tarifa zero aos domingos, quando há menos pessoas circulando pela cidade, beneficia a população que utiliza o serviço habitualmente?
Eu diria a você, agora fazendo uma interpretação política, que o prefeito de São Paulo, muito habilidoso e futuro candidato à reeleição, interessado em seu conhecimento político, fez algo que vai ter sucesso, com certeza – a menos que eles cometam erros muito grosseiros –, e isso vai causar uma projeção política dele.
Agora, do ponto de vista do transporte das pessoas, o domingo é um dia que representa uma parcela muito insignificante da necessidade de mobilidade das pessoas.
O que a gente verifica, e eu tenho dados sobre isso, é que a quantidade de pessoas que não se locomovem na cidade adequadamente são, sobretudo, mulheres, pessoas que não têm emprego com direito a pagamento de vale-transporte e trabalhadores da livre-iniciativa de pequeno porte. Essas pessoas é que sofrem mais com a ausência do transporte coletivo gratuito.
Então, não é à toa que nas cidades que adotaram a tarifa zero, não só nos domingos, mas durante a semana, a demanda triplicou. Isso significa que tem uma quantidade enorme de pessoas que não estão usando o transporte coletivo por causa da tarifa, e isso não é só aos domingos.
Na semana, [as pessoas] não vão ao médico, não vão à farmácia, porque têm que pagar alguma tarifa para usar o transporte coletivo.
Se a previsão é aumentar a quantidade de passageiros, como aconteceu em outras cidades, manter o mesmo número de veículos na rua pode sobrecarregar o sistema, certo?
Eu estimo que, no domingo, o aumento não seja tão grande quanto seria no dia de semana, por causa das pessoas que têm que trabalhar. Mas mesmo assim eu acho que o aumento vai ser significativo. E aí, de repente, a Prefeitura vai ter que aumentar a oferta de veículos, senão vai ficar um inferno.
Isso é uma coisa que só a experiência concreta vai indicar. E eu espero que eles tenham margens para administrar, caso haja um aumento maior do que aquele que a oferta consiga atender.
No início deste ano, a Prefeitura criou uma subcomissão para estudar a implementação da tarifa zero na cidade. O senhor chegou a acompanhar essa discussão?
Eu não acompanhei muito a fundo. Não tive oportunidade. Também não foi noticiado nada, sistematicamente, sobre os trabalhos desses grupos que fizeram esses estudos. Não sei que estudos foram feitos.
O que posso dizer, porém, é que a tarifa zero não precisa de muita “coisarada”, não. O que você precisa fazer, com os dados que você já dispõe, é saber qual vai ser o provável aumento de demanda.
Analisar se eventualmente vai dobrar etc. Por aí, você pode fazer hipóteses, você pode ter uma ideia de qual vai ser a sua necessidade de aplicação de frota, aumento de custos e, portanto, necessidade de recursos para bancar esse serviço.
O governador declarou ser contrário à implementação da tarifa zero no sistema sobre trilhos. São Paulo é uma cidade em que o transporte sobre trilhos cobre muitos territórios e, inclusive, com estações integradas com terminais de ônibus. A não integração pode sobrecarregar os ônibus?
É difícil dizer porque eu precisaria fazer um estudo detalhado de como é que funciona esse volume de passageiros do sistema de trilhos. Mas, grosso modo, eu acho que uma boa parte de usuários de transporte de trem tentaria migrar para sistemas de ônibus, desde que os ônibus atendam às necessidades que eles têm de locomoção.
Isso pode provocar um certo problema, aumentando demais a quantidade de passageiros nos ônibus e diminuindo um bocado o sistemas sobre trilhos na cidade de São Paulo. O desejável, realmente, do ponto de vista de movimentação das pessoas, é que seja feita a tarifa zero tanto no sistema de ônibus como no de trilhos.
Mas, como os sistemas são separados do ponto de vista orçamentário, administrativo, não está dando para fazer. Isso é uma outra falha que antecede a questão da tarifa zero.
Não dá para você continuar com essa brincadeirinha de não ter administração pública de caráter metropolitano. Porque senão fica uma discussão: “Eu faço, você não faz. O trem é do governador e o ônibus é do prefeito”. Não dá! Tem que resolver o problema no seu conjunto.
O prefeito vai fazer a tarifa zero no domingo. Daqui a pouco, ele pode fazer na segunda-feira também. E o governador diz que não quer fazer, que não tem nada a ver com isso, que está fora, que é contra. E você, que é usuário, se vire.
O senhor acredita que esse pode ser um primeiro passo para a implementação da tarifa zero total na cidade de São Paulo?
Pode ser um primeiro passo e pode ser um passo atrás. Vai depender muito de como é que as coisas vão acontecer. Vamos ver.
A proposta da tarifa zero historicamente é pautada por movimentos de esquerda. Como o senhor vê a implementação avançar numa gestão de direita?
A iniciativa tem um ar meio eleitoral – um ano antes da eleição –, mas, independentemente disso, eu acho muito interessante o fato de que vai se fazer uma experiência de tarifa zero numa cidade como São Paulo.
Não é a melhor experiência que se possa fazer, mas acho que ela traz à tona um volume de questões que vai se evidenciar com a operação desse sistema de tarifa zero nos domingos.
Então, sobre esse aspecto, acho que a iniciativa é muito interessante, porque repõe uma discussão fundamental sobre a questão da mobilidade das pessoas na cidade.