Na porta de qualquer balada nas grandes cidades brasileiras, é quase certa a presença de algum vendedor ambulante oferecendo, por preços módicos, alguma opção de cigarro eletrônico, com cores e sabores variados. Os novos dispositivos competem com o cigarro tradicional, mas se engana quem pensa que a indústria do tabaco luta contra a novidade: com a diminuição no número de fumantes no mundo, as grandes empresas do setor buscam novos caminhos para manter seu negócio de pé.
Uma das formas é justamente com o investimento em dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), fabricados pelas mesmas empresas e apontados pela indústria como uma alternativa supostamente menos danosa para adultos que fumam cigarros tradicionais e não querem ou não conseguem parar. Entre eles estão os vaporizadores, abastecidos com líquidos que podem conter nicotina, e os produtos de tabaco aquecido, nos quais uma bateria aquece filetes de tabaco.
Apesar da indústria vender seus novos produtos como possíveis soluções de redução de danos, o cenário mundial mostra que existe um novo e grande mercado consumidor para o qual os DEFs têm se mostrado apelativos: os jovens. De acordo com nota técnica da Organização Mundial da Saúde, os dispositivos têm sido “comercializados agressivamente para os jovens”. A OMS também aponta que o uso entre 13 e 15 anos excede a taxa entre adultos em todas as regiões avaliadas.
Por que isso importa?
- Proibidos pela Anvisa desde 2009, os cigarros eletrônicos ou “vapes” estão passando por um processo de reavaliação na agência reguladora que deve se encerrar este ano
- Com pouco escrutínio público, lobistas das empresas de tabaco têm pressionado a Anvisa a tomar uma decisão favorável ao uso dos vapes – produto que elas mesmas produzem
Qualquer que seja o público-alvo das empresas de tabaco, no Brasil a exploração do mercado esbarra atualmente na proibição dos DEFs pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), válida desde 2009. Em 2022, a diretoria colegiada da autarquia aprovou em consenso um relatório sugerindo que a restrição fosse mantida, com o aperfeiçoamento de campanhas de conscientização e combate ao comércio irregular.
Mas a palavra final ainda não foi dada.
A Anvisa promete tomar uma decisão ainda em 2024 e aguarda o fim da fase de consulta pública, que segue até o início de fevereiro.
Para influenciar a discussão, a antiga Souza Cruz, agora British American Tobacco (BAT) Brasil apostou na contratação de uma ex-diretora da Anvisa como consultora, num mecanismo chamado “porta giratória”, pelo qual corporações contratam ex-agentes públicos para influenciar decisões sobre políticas.
Assim como a Philip Morris Brasil (PMB), a empresa tem realizado frequentes reuniões com representantes da Anvisa e submetido pareceres e documentos para convencer os diretores da agência a mudar o entendimento atual. Desde o início de 2021 até novembro de 2023, a agência recebeu representantes da indústria do tabaco ao menos 43 vezes.
As tratativas são legais e demonstram a intensidade do lobby.
Além disso, como mostrou reportagem da Agência Pública, as empresas têm tentado convencer parlamentares no Congresso Nacional e investido em conteúdos pagos que defendem a liberação dos DEFs em grandes veículos de imprensa. O uso de publieditoriais e eventos patrocinados para promover os dispositivos tem sido questionado por especialistas, já que a publicidade de produtos de tabaco não é permitida.
O avanço do lobby das tabagistas se refletiu em uma piora na pontuação do Brasil no Índice de Interferência da Indústria do Tabaco de 2023, que mede o quanto a indústria influi nas políticas públicas de um país. O Brasil registrou 66 pontos, oito a mais do que em 2021, em uma escala de 0 a 100, e ficou na 59º posição entre os 90 países.
Para as organizações responsáveis pela versão brasileira do índice, além de uma melhora no trabalho de monitoramento, influenciou na piora do ranking a atuação de ex-diretores da Anvisa e políticos contratados pela indústria na discussão sobre os DEFs, entre outros fatores. O índice é formulado pela ACT – Promoção da Saúde e pelo Observatório de Monitoramento das Estratégias da Indústria do Tabaco, ligado à Fiocruz.
Esta história é parte do especial Redes de Nicotina (Nicotine Networks), uma colaboração internacional que investiga as táticas da indústria do tabaco para promover uma nova geração de produtos de nicotina além das fronteiras. Redes de Nicotina é uma investigação colaborativa da Agência Pública e cinco veículos das Américas: El Clip, The Examination (EUA), Salud con Lupa (Peru), ChequeaBolivia e Colombia Check.
Pressões na Anvisa
Do início de 2021 até novembro de 2023, a Anvisa recebeu representantes da indústria do tabaco ao menos 43 vezes. A Philip Morris, fabricante do Marlboro, foi a mais recebida, com 14 reuniões. A companhia é seguida de perto pela BAT Brasil, do Derby e Lucky Strike, que se reuniu com membros do órgão regulador em 13 ocasiões. Nem todas as reuniões tiveram os DEFs como pauta, mas o assunto se repetiu em várias delas. 17 encontros ocorreram em 2022 e, outros 12, no ano passado.
Até o momento da publicação desta reportagem, a Pública acessou, por Lei de Acesso à Informação (LAI), 15 atas das reuniões entre representantes da indústria do tabaco ou lobistas pró-vape e autoridades da Anvisa.
Uma das atas mostra que, em 19 de junho de 2023, a BAT Brasil se reuniu com Alex Machado Campos, então diretor da agência, que deixou o cargo em agosto do ano passado, e dois de seus assessores. De acordo com o documento, os representantes da BAT citaram o “risco de uso de produtos irregulares” e deram exemplos de países que liberaram os dispositivos. A reunião não consta na agenda do então diretor.
De acordo com nota enviada à Pública pela Anvisa, a reunião não foi incluída na agenda por uma “falha procedimental”.
A reportagem também acessou outras duas atas de reuniões da Anvisa com a Philip Morris, uma em outubro e a outra em novembro de 2022. Em ambos os encontros, a empresa defendeu a liberação dos DEFs e de seu dispositivo de tabaco aquecido, afirmando se tratar de um produto mais “controlado” em relação ao cigarro tradicional.
Na reunião de novembro, a empresa criticou a análise de impacto regulatório (AIR) elaborada pela Anvisa sobre os DEFs, que recomendou manter a proibição. No outro encontro, em outubro, o diretor da Anvisa responsável pela área de tabaco, Daniel Pereira, afirmou à empresa ter “um olhar de agência reguladora e também um olhar econômico”. Antes de ser nomeado na Anvisa por Jair Bolsonaro (PL), Pereira era secretário-executivo de Marcelo Queiroga no Ministério da Saúde.
De acordo com a nota da assessoria de imprensa da Anvisa, a fala de Pereira “está relacionada a relevância da regulação da Anvisa para a economia brasileira”, já que “é necessário compreender que quando inadequada a atuação regulatória pode não atingir seus objetivos e ainda impedir a inovação ou criar barreiras desnecessárias ao comércio, à concorrência, ao investimento e à eficiência econômica”.
Em relação aos encontros com representantes da indústria, a autarquia destacou que suas ações estão “sempre fundamentadas no diálogo com a sociedade e na promoção da participação dos diferentes agentes afetados e interessados na atuação da Anvisa”. Confira a íntegra da nota aqui.
Porta giratória
Em seis reuniões da BAT com a Anvisa, quem representou a empresa foi a ex-diretora da agência regulatória, Alessandra Soares Bastos, que desde 2021 é consultora da BAT, emprego que assumiu menos de um ano depois de sair da Anvisa, como relatou O Joio e o Trigo. A contratação da especialista em regulação pela tabagista logo depois dela deixar o órgão público é reflexo da branda legislação brasileira que rege a “porta giratória” de agentes públicos que migram para a iniciativa privada.
Enquanto nos Estados Unidos a quarentena dos ex-servidores de agências como a Anvisa para atuar no setor regulado pode ir de dois anos ao resto da vida, no Brasil o prazo é de apenas seis meses.
O uso da estratégia é comum à indústria do tabaco, de acordo com o Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco, da Fiocruz.
Bastos, que abriu uma empresa de consultoria em 2021, fez pelo menos 12 aparições em matérias ou eventos patrocinados pela BAT e veiculados na imprensa brasileira, de acordo com apuração da Pública. Com frequência, também dá entrevistas em reportagens não patrocinadas, muitas vezes tendo sua ligação com a indústria do tabaco omitida.
Em nota enviada à reportagem, Soares destacou que sua trajetória pré-Anvisa sempre foi na iniciativa privada e que se tornou assessora da BAT “obedecendo às leis que regem o cargo” e seguindo “criteriosamente todas as determinações da legislação aplicável”. Em relação aos cigarros eletrônicos, ela afirmou que “a estratégia de proibição não funcionou e a regulamentação é a melhor saída para o Brasil evitar uma crise sanitária sem precedentes”. Leia a íntegra da nota.
Já a BAT Brasil disse que seguiu “toda a legislação aplicável ao tema” e defendeu a “importância da disponibilidade da profissional para ampliar o debate por meio de conteúdos de interesse público, incluindo informações sobre o processo de regulamentação, para que a sociedade esteja informada e a Anvisa possa tomar a sua decisão sobre o tema”.
A Anvisa também se reuniu sete vezes com representantes de associações ligadas à indústria e aos produtores. Em uma delas, cuja ata foi obtida pela Pública, os representantes da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) e da Associação dos Municípios Produtores de Tabaco (Amprotabaco) defenderam os dispositivos. A Afubra é ligada à indústria tabagista, de acordo com o Índice de Interferência da Indústria do Tabaco.
Além das reuniões com a Anvisa, a indústria e seus aliados também foram atuantes durante a tomada pública de subsídios (TPS) promovida pela Anvisa em 2022. Além de BAT Brasil e Philip Morris, as gigantes do setor Japan Tobacco International (JTI) e Universal Leaf Tabacos, e várias associações de produtores também enviaram contribuições.
Durante a tomada pública de subsídios, a Anvisa ainda recebeu documentos de empresas focadas em cigarros eletrônicos, de organizações pró-vape como o Direta e a Red Latinoamericana por la reducción de Daños Asociados al Tabaquismo (RELDAT) e do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), também ligado à indústria do tabaco, de acordo com o Índice de Interferência da Indústria do Tabaco. A ex-diretora da Anvisa e consultora da BAT, Alessandra Bastos, também participou.
Como é comum no processo, além de defensores dos vapes, organizações contrárias à liberação dos DEFs enviaram seus pareceres.
Em entrevista à Pública, Lauro Anhezini Jr., diretor de assuntos regulatórios e científicos da BAT Brasil, disse que a empresa “sempre participa onde tem espaço para falar sobre o nosso assunto” como parte do “trabalho de convencimento”.
“Alguns parlamentares, assim como alguns membros da Anvisa entendem e se sensibilizam com o assunto, outros mantém o seu posicionamento contrário”, acrescentou.
Para o médico Florentino Cardoso, cirurgião oncológico e integrante do Grupo de Trabalho de Atuações e Intervenções quanto ao Tabagismo e ao Cigarro Eletrônico do Conselho Federal de Medicina (CFM), o que as tabageiras fazem é um “lobby pesado para tentar liberar algo que é extremamente danoso para a população”.
O CFM tem se posicionado a favor da manutenção da proibição dos dispositivos. “A indústria assedia pessoas influentes e parlamentares no sentido de defender a causa”, completa.
Na avaliação do diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, a situação é “normal”.
“O setor regulado, seja ele qual for, que busca um registro de um produto, de um medicamento, de um dispositivo, de um cosmético, ou de algum produto derivado do tabaco, lógico que deseja que aquele produto seja analisado e seja aprovado. Isso faz parte do nosso dia a dia”, disse à Pública em coletiva de imprensa no dia 1º de dezembro.
Como a prática do lobby ainda não é regulamentada no Brasil, não há transparência e nem obrigatoriedade do registro dos contatos de lobistas com órgãos estatais e com o Congresso. No final de 2022, a Câmara aprovou a toque de caixa o PL 1202/2007, que aborda o tema. O texto aprovado pelos deputados agora tramita no Senado. Porém, conforme apurou a Pública, pode dificultar a fiscalização de corrupção.
Grupos de consumidores têm ligação com indústria
Quem também está em alta na agenda da Anvisa são os representantes do Diretório de Informações para Redução dos Danos do Tabagismo, conhecido como Direta – uma associação pró-vape. No ano passado, a associação foi recebida na agência reguladora três vezes em menos de um mês. Em 20 de agosto, a reunião foi com Daniel Pereira, diretor da Terceira Diretoria da Anvisa, que analisa os produtos fumígenos. Dois dias depois, a diretora da Segunda Diretoria, Meiruze Freitas, fez uma teleconferência com o grupo. Em 17 de setembro, a associação conseguiu uma reunião presencial com o presidente Barra Torres.
O grupo também tem se organizado para promover manifestações na porta de prédios públicos quando os dispositivos eletrônicos para fumar serão discutidos. Foi o que fizeram em setembro, em uma audiência pública no Senado Federal, e em 1º de dezembro do ano passado, quando a Anvisa marcou uma reunião para decidir sobre a realização da consulta pública.
Naquele dia, duas dezenas de pessoas vestidas com camisetas azuis do Direta ficaram na porta da Anvisa por cerca de uma hora e meia segurando cartazes com dizeres como “quero meu vape seguro”, “proibir fortalece o contrabando” e “vape é 95% menos prejudicial do que fumar”.
Este último argumento tem sido repetido por diversos defensores da liberação dos dispositivos, mas se baseia em um estudo inglês de 2014 que depois foi contestado por revistas científicas, como mostrou o Salud con lupa, parceiro da Pública neste especial. Os próprios autores alertaram que o estudo tinha limitações, como a “falta de evidências fortes sobre os danos da maioria dos produtos”.
A reunião na Anvisa estava marcada para às 9h30, mas começou com atraso, por volta das 10h. A despeito de todos os manifestantes terem afirmado à Pública que estavam ali voluntariamente, às 11h a diretora administrativa do Direta, Ana Graziele Quaresma, questionou ao presidente da associação, Alexandro Lucian, se poderia “liberar” os manifestantes por conta do horário avançado. Após Lucian dar aval, a maior parte dos defensores dos vapes deixaram o local.
Em retorno, o Direta disse que a presença na porta da Anvisa fez parte de campanha para convidar a sociedade “a participar desse importante processo”. De acordo com o grupo, Lucian e Quaresma “tinham como objetivos receber e interagir com quem comparecesse, oferecer camisetas e cartazes, garantir que as pessoas tivessem acesso a água que disponibilizamos de cortesia e registrar a ação através de fotos e vídeos”. “Naturalmente quem esteve por lá recorreu a nós com dúvidas sobre o andamento e eventuais programações”, acrescentou.
“Por se tratar de um dia útil e ao identificar que a reunião se estenderia por muito tempo, decidimos que o time do Direta deixaria a manifestação. Assim foi comunicado aos presentes que os organizadores estariam se retirando, o que naturalmente impulsionou outras pessoas a irem embora”, acrescentou o Direta, que também disse que “não ofereceu contribuição financeira a nenhum participante”.
“Nós somos consumidores independentes, não temos ligação com a indústria do tabaco, não temos ligação com outras organizações, nós somos pessoas que queremos ter acesso a esses produtos de uma forma segura”, disse Lucian em entrevista à Pública.
O site do grupo, porém, informa que o Direta é parceiro da organização World Vapers Alliance (WVA), criada pelo grupo Consumers Choice Center (CCC), uma organização voltada para o lobby e promoção dos DEFs. A CCC recebeu, desde sua criação, recursos das empresas de tabaco. De acordo com relatório da Universidade de Bath, na Inglaterra, e de reportagem do Le Monde Diplomatique em parceria com o The Investigative Desk, tanto a British American Tobacco quanto a Philip Morris, além da Japan Tobacco International (JTI) financiaram a organização. O próprio site da CCC cita as empresas como financiadoras, mas não identifica os valores.
Ainda que busque se distanciar das grandes empresas de tabaco, o Direta seria “resultado direto” de eventos patrocinados pela Philip Morris Brasil (PMB) em 2019 e 2020, de acordo com uma fala da psicóloga Mônica Gorgulho, que era parte do conselho da associação, reproduzida em reportagem de O Joio e O Trigo.
Lucian também é presença constante nos eventos patrocinados pela indústria para promover os vapes, como mostrou reportagem da Pública.
Questionado, o presidente do Direta afirmou que “a relação que a World Vapers Alliance e o Direta têm não é financeira”. “Nós temos uma parceria de ideias, uma parceria filosófica”, disse. Sobre a relação entre a WVA e a indústria tabagista, Lucian contemporizou: “independente de onde tenha vindo esse recurso, estão sendo feitas ações realmente para os consumidores”.
Já a respeito da participação nos eventos, ele disse não receber “nem um centavo” pela participação, a despeito de normalmente ter sua passagem, alimentação e hospedagem bancadas pelos organizadores. “É um alinhamento de ideias, mas é a indústria que está alinhada com a gente”, finalizou em entrevista à reportagem.
O Direta ainda afirmou em nota que não aceita recursos da indústria do tabaco e que é uma organização “oficial e independente, que defende a estratégia de Redução dos Danos do Tabagismo e representa consumidores no Brasil”. Sobre a fala de Gorgulho, disse que os eventos realizados com patrocínio da PMB permitiram que Lucian conhecesse a ex-consultora, gerando “troca de experiências e conhecimento”, o que contribuiu “para que o Direta se tornasse uma realidade”. “É nesse contexto que entendemos que Mônica Gorgulho possa ter declarado que o Direta seria algum ‘resultado direto’, como etapas do relacionamento profissional entre eles”, acrescentou. Leia a nota na íntegra.
Recebido três vezes na Anvisa, Lucian já foi alvo da agência reguladora. Em março de 2019, a primeira instância da Anvisa aplicou uma multa de R$ 5 mil contra o militante pró-vape, mas o processo administrativo sanitário (PAS) ainda não foi finalizado. A reportagem tentou acessar a íntegra da denúncia, mas a Anvisa negou porque o processo segue tramitando.
Questionado, Lucian enviou uma nota à reportagem em que diz que “o uso de termos como ‘cigarros eletrônicos’ e ‘vape’ podem ter sido o motivo que levou a Anvisa a notificá-lo para retirada de alguns conteúdos pontuais, o que sempre foi acatado imediatamente, sem prejuízo para qualquer parte, seguindo à disposição para continuar seu trabalho com qualidade e principalmente dentro das normas vigentes”. Ele disse que “não responde e nunca respondeu qualquer processo judicial sobre este assunto”.
Lucian também fundou o site VaporAqui “para sanar dúvidas de consumidores e reunir conteúdo sobre produtos de redução de danos”. Um dos textos, que defende uma regulação que libere os DEFs, diz que “apoiar a proibição dos cigarros eletrônicos no Brasil é apoiar o terrorismo”, porque um suspeito de terrorismo no Brasil também seria investigado por contrabando de cigarros eletrônicos.
Outra reportagem do especial “Redes de Nicotina”, publicada pelo The Examination, mostra que a Philip Morris International investiu milhões em uma fundação sem fins lucrativos que financia uma ampla rede de organizações de consumidores que se opõem às restrições sobre os DEFs na América Latina.
Empresas querem aumentar consumo de vapes e apostam em mercados de baixa renda
As empresas de tabaco têm propagandeado a decisão de investir nos DEFs e substituir as fontes de seus lucros quase como uma missão de saúde pública, ainda que existam, entre especialistas, questionamentos sobre a real potencialidade de redução de danos dos dispositivos.
Em dezembro do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma nota técnica em que pede por “ação urgente” contra cigarros eletrônicos e ressalta que não há comprovação de que sua comercialização “como produtos de consumo” tenha trazido benefício para a saúde pública.
A Philip Morris International (PMI) adotou o lema da busca “por um futuro sem fumaça”, já que os novos dispositivos seriam livres de combustão – ainda que um estudo aponte que os produtos de tabaco aquecido apresentam uma taxa de combustão, mesmo que bastante inferior à dos cigarros tradicionais.
Em seu plano estratégico para 2025, a PMI estabelece uma série de metas para os próximos anos, com foco em “maximizar os benefícios dos produtos sem fumaça”, um eufemismo para os DEFs e produtos mastigáveis. Uma delas envolve aumentar de 73 para 100 o número de mercados em que os produtos estão disponíveis para venda. Além disso, a PMI também quer aumentar de 42% para mais de 50% a “proporção de mercados de baixa e média renda onde os produtos sem fumaça estão disponíveis para venda”.
A liberação dos vapes e dos aquecedores de tabaco no Brasil abriria um novo mercado legal para a Phillip Morris. E um dos grandes. Ajudaria, por exemplo, a bater uma de suas metas para 2025: aumentar de 32,1% para mais de 50% a porcentagem das suas receitas vindas da venda de “produtos sem fumaça”.
Em 2022, a empresa afirmava ter quase 25 milhões de usuários dos novos produtos.
No final do ano passado, a empresa criou uma nova campanha na tentativa de influenciar a decisão da Anvisa, inclusive patrocinando posts no Twitter/X, onde tem um perfil verificado. Na rede social, um dos posts já passou de 9,5 milhões de visualizações, enquanto a conta da campanha não chega a 180 seguidores. As publicações levam para o site “Quero Escolher”, que repete os tradicionais argumentos da indústria em relação ao tema, incentivando o público a opinar favoravelmente aos DEFs na consulta pública aberta pela Anvisa em dezembro.
Do lado da BAT, o nome usado para falar dos DEFs em seus relatórios é “produtos não combustíveis” – o que inclui também os produtos comestíveis da marca, como os sachês de nicotina oral, absorvidos por meio da gengiva. Em 2022, a empresa afirma ter alcançado cerca de 22,5 milhões de usuários desses produtos no mundo, com 60 países onde as “novas categorias” estão disponíveis, “oferecendo a fumantes adultos” o que consideram “uma excelente escolha”. O objetivo da BAT é mais do que dobrar o número até 2030, quando esperam ter 50 milhões de usuários.
A tabagista, que coloca como estratégia oferecer “opções agradáveis para todos os gostos e momentos, hoje e amanhã”, teve cerca de US$ 27,6 bilhões de receitas em 2022, sendo que US$ 2,9 bilhões vieram dos “novos produtos”, cerca de 10% do total. O faturamento com os produtos não combustíveis da BAT dobrou em apenas dois anos.
Para Silvana Turci, coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab), ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), existem semelhanças entre as estratégias utilizadas pela indústria com os DEFs e as adotadas no século passado para convencer a população de que fumar era seguro. Ela cita como exemplos a substituição do filtro amarelo pelo branco e o lançamento de cigarros com “baixo teor”, que “até grávida podia fumar”, ambos alardeados pela indústria como uma estratégia de redução de danos, mas que se mostraram igualmente problemáticos.
“Qual é o alvo da indústria? É não perder esses consumidores, porque essas indústrias têm ações no mercado e os acionistas querem lucro. Qual é a estratégia principal de transformação do lucro? Novos consumidores, que são os jovens”, apontou a pesquisadora.
Caso seja aprovada uma regulação que libere o comércio dos DEFs no Brasil, a BAT pretende vender tanto os produtos de tabaco aquecido quanto os vaporizadores, explicou Lauro Anhezini Jr., diretor de assuntos regulatórios e científicos da empresa em entrevista à Pública. Ele reconhece que “talvez o nosso passado nos atrapalhe”, mas defende que a indústria do tabaco, que um dia negou que os cigarros caussem câncer, “mudou”. “Isso é a evolução da sociedade”.
De acordo com ele, “é um dever da empresa oferecer um produto de menor risco para essas pessoas que não param de consumir por qualquer motivo ou não conseguem por qualquer motivo”. Entretanto, Anhezini diz que não há planos de parar de vender os cigarros tradicionais, que ele definiu como um produto de “risco máximo possível”: “a gente continua vendendo cigarros, obviamente, porque existem consumidores para esses produtos”.
Em retorno, a BAT afirmou que “defende a criação de regras rígidas pela Anvisa para a regulamentação dos cigarros eletrônicos no país, permitindo aos adultos fumantes – que assim optarem – acesso a uma alternativa de menor risco”. A empresa também reforçou que os cigarros eletrônicos hoje vendidos no Brasil “são 100% ilegais, fruto do contrabando e da fabricação por empresas inidôneas, que não poderiam comercializar esse produto”.
A reportagem da Pública também tentou uma entrevista com um representante da Philip Morris Brasil para perguntar sobre os planos da empresa e as expectativas para uma regulação, mas recebeu apenas uma nota em que critica a proibição da venda dos DEFs e defende que “uma boa regulamentação, que permita a comercialização pelo setor formal, seguindo parâmetros regulatórios apropriados, tem se mostrado eficaz para controlar o tabagismo”.
Em uma segunda tentativa de retorno, a empresa acrescentou que “os produtos sem fumaça comercializados pela PMI têm como objetivo entregar uma maneira potencialmente mais segura de consumir nicotina a estas pessoas que já são fumantes” e defendeu que “o aumento de vendas viria da conversão destes consumidores para os produtos sem fumaça”. Leia a nota na íntegra.