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Familiares denunciam proibição até mesmo de livros de gramática; projeto de leitura em presídios de MG foi extinto

Reportagem
29 de fevereiro de 2024
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29 de fevereiro de 2024 · Familiares denunciam proibição até mesmo de livros de gramática; projeto de leitura em presídios de MG foi extinto

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Sempre que visita o filho encarcerado num dos seis presídios de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, Júlia* leva a ele um livro. As regras básicas ela conhece: publicações de capa dura, que façam apologia ao crime ou com conteúdo pornográfico são vetadas. As regras não escritas, porém, podem variar de um agente penal para outro, diz ela, e nem sempre coincidem com o que determina a Lei de Execução Penal (LEP) – que estabelece o direito da pessoa privada de liberdade “à educação, cultura, atividades intelectuais e o acesso a livros e bibliotecas”.

Foi assim que, no fim de 2023, quando esperava presentear o filho com um exemplar de Os velhos marinheiros, de Jorge Amado, ouviu de um carcereiro que literatura “não estava entrando” no presídio. Ela quis saber o porquê: “Não temos autorização”, respondeu o homem. Mas, então, nenhum livro podia entrar?, tornou a perguntar Júlia. “Só autoajuda e a Bíblia”, concluiu o agente.

Júlia tentou argumentar: sob certo ponto de vista, os livros ajudavam o filho a passar o tempo, servindo, portanto, como uma forma de autoajuda; questionou também se havia uma lista de livros proibidos e se ficaria registrado que ela tentara entrar com um objeto vetado na visita. Não haveria registro, não havia lista, e tampouco a literatura brasileira era vista pela direção da unidade como benéfica ao preso. Com essas respostas, e o Jorge Amado debaixo do braço, Júlia, que, por temer represálias ao filho pediu que seu nome fosse trocado na reportagem, voltou para casa.

Cenas como essa repetem-se em diversos presídios de Minas Gerais, conforme a Agência Pública apurou com assistentes sociais e psicólogos penais que trabalham no sistema carcerário do estado. A reportagem conversou também com familiares de presos e egressos das prisões.

A reportagem ouviu ainda a policial penal Maristela Esmério, 29 anos, que é diretora de Ensino e Profissionalização do Departamento Penitenciário do Estado (Depen-MG). Entre as suas atribuições, está a de zelar pelos programas de remição de leitura nas 172 unidades prisionais do estado.

Em entrevista à Pública, ela disse desconhecer a existência de casos de censura a livros no sistema carcerário de Minas. Esmério afirmou que não há nenhuma lei ou regimento interno que respalde o veto à entrada de livros nas prisões. O esforço do Depen, concluiu a diretora, é “assegurar a diversidade de gêneros literários e autores” disponíveis às pessoas em privação de liberdade.

Por que isso importa?

  • Segundo denúncias, agentes penitenciários estariam barrando a entrada de livros de literatura para presos, contrariando as determinações da Lei de Execução Penal
  • Muitas das prisões em Minas Gerais não possuem bibliotecas e um dos principais projetos de leitura para presos não existe mais

Livros que “despertam a consciência” do preso são barrados, diz assistente social

Márcia Lopes, 47 anos, trabalha há 15 como assistente social no sistema prisional de Minas Gerais. Já foi diretora de atendimento e ressocialização no presídio Bicas 2, em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de BH, local voltado para a população LGBTQIA+. Segundo ela, leituras que não sejam religiosas são consideradas por muitos policiais penais como potencialmente libertadoras e passíveis de “despertar a consciência” do preso, podendo, assim, “comprometer a ordem e a segurança” nas colônias penais.

Em seus atendimentos aos custodiados, costuma ouvir que “qualquer ação que envolva prazer, satisfação e conforto para ‘nós, presos’ incomoda a segurança custodial”, conta Márcia.

No complexo penitenciário Estevão Pinto, casa de detenção que abriga mulheres em Belo Horizonte, a censura aos livros não religiosos atingiu o paroxismo. Na unidade, o doutor em direito Virgílio de Mattos coordenou uma pesquisa sobre a criminalização da pobreza e o encarceramento de mulheres, que resultou no livro A invisibilidade do invisível. Em 2020, o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade (GAFPPL) quis distribuir a obra na penitenciária, para que as detentas pudessem ler o que havia sido publicado sobre elas próprias. A entrada do livro foi vetada.

“Livros que falem de política, cartilhas sobre direitos humanos, as publicações que nascem dos seminários do nosso grupo e que discutem o encarceramento em massa, nada disso os agentes penitenciários deixam entrar”, afirma Miriam Estefânia dos Santos, 46 anos, uma das coordenadoras do GAFPPL.

Segundo Márcia Lopes, entre as alegações que já ouviu da Polícia Penal ao vetar a entrada de livros está a de que as brochuras seriam usadas para guardar drogas, a de que suas folhas poderiam ser material para a feitura de cigarros e a de que, por fim, as unidades já contam com bibliotecas onde os presos podem tomar livros emprestados – a existência de uma biblioteca em cada prisão, com efeito, é uma das determinações da LEP.

Quanto a esse argumento, o mestre em segurança pública e cidadania Kalil Lauar, 36 anos, que trabalha como assistente social num presídio em Teófilo Otoni, faz uma ressalva.

“Muitas unidades não possuem bibliotecas, e, entre a Polícia Penal, prevalece a ideia de que apenas livros religiosos podem ser aceitos. Consequentemente, os detidos são privados do acesso a uma variedade de literatura”, conta o pesquisador.

Das 172 unidades prisionais de Minas, informou o Depen-MG, 50 não possuem bibliotecas em funcionamento (aproximadamente 30%). Já em todo o Brasil, informa o Ministério da Justiça, a proporção é ainda menor: das 1.458 unidades prisionais, 615 não contam com bibliotecas (cerca de 42%).

Ilustração em preto e branco lê livros em sua cela na prisão
Ilustração em preto e branco lê livros em sua cela na prisão

Após insistência de mãe, livro de gramática chega a filho, que passa no Enem

No início de 2020, Luan Souza, que aos 39 anos cumpria pena por tráfico de drogas num presídio em Ribeirão das Neves, preparava-se para prestar o Enem. Para tanto, pediu a sua mãe que levasse a ele um livro de gramática. Os carcereiros proibiram a entrada do livro, afirmando que materiais didáticos tinham de passar pela vistoria da escola do presídio – que, no entanto, estava fora de funcionamento.

A mãe de Luan insistiu, procurou a Diretoria de Humanização do presídio e enfim conseguiu fazer com que o livro chegasse ao filho, que foi aprovado no Enem no mesmo ano.

José Lino, 48 anos, que desde 2008 trabalha na área educacional do sistema penitenciário de Minas Gerais e é um dos líderes da categoria, afirma que desavenças entre funcionários da segurança e do atendimento aos apenados são comuns nas prisões, o que gera situações como a vivida por Luan e sua mãe.

“As carreiras que cuidam da ressocialização estão relegadas à própria sorte. O investimento nas prisões, quando há, é para as áreas de repressão. Não há um ponto de equilíbrio entre a assistência humanizada e a repressão. Não à toa, os índices de reincidência em delitos dos egressos continuam altos”, reclama Lino.

A diretora de Ensino e Profissionalização do Departamento Penitenciário do Estado, a policial penal Maristela Esmério, diverge de Lino. Ela afirma que todos os profissionais trabalham por um mesmo objetivo – “a custódia e a ressocialização” dos apenados –, não havendo, pois, em sua opinião, discordância alguma entre as áreas.

Mesmo com as barreiras impostas por uma parcela dos agentes penitenciários, há presos e presas que conseguem acesso à literatura, o que os ajuda não só a passar o tempo e a abater parte de suas penas por meio de programas de remição por leitura; em alguns casos, os livros alteram radicalmente suas perspectivas de vida.

Foi o que aconteceu a Samuel Lourenço Filho, 37 anos, condenado por homicídio no Rio de Janeiro em 2007. Antes da prisão, Samuel não era um leitor contumaz; foi no cárcere que, para fugir do ócio, passou a ler diariamente. Como tantos presos, começou pela Bíblia, convertendo-se ao protestantismo. Poderia ter ficado nisso, mas, em 2008, Samuel trabalhou como bibliotecário da prisão – ele não tinha acesso à sala dos livros, mas era o responsável por passar a lista das obras entre os presos, que escolhiam seus títulos preferidos. O sucesso de público, lembra o ex-bibliotecário, era o autor de autoajuda Augusto Cury.

Um dia, um dos títulos chamou sua atenção: Crime e castigo, de Dostoiévski. Iniciou a leitura para não parar mais. “O que me impressionou foi o retrato da miséria humana. Tudo é muito verdadeiro, e ler me ajudou a pensar o meu contexto pobre e hostil na prisão. Eu sentia o frio siberiano, o abafamento dos locais superlotados, a escuridão, o gosto das sopas aguadas… Era tudo como no cárcere. Ele não traz um tom de esperança, mas fala da capacidade de suportar tudo aquilo. Eu me enxergava ali”, diz.

Ilustração em preto e branco mostra as mãos de um detento segurando o livro "Crime e castigo"
Ilustração em preto e branco mostra as mãos de um detento segurando o livro "Crime e castigo"

Terminado o livro, Samuel escreveu a editoras, pedindo a doação de obras que não aquelas normalmente encontradas na cadeia. Foi atendido algumas vezes e descobriu outro livro que o levou a querer registrar também suas experiências, O processo, de Kafka.

“Aquele processo avassalador, que nunca acaba e que não permitia ao sujeito compreender por que aquilo acontecia com ele… Isso me fez entender que a prisão é uma estrutura que não sabemos bem de onde vem, mas que ela vai nos fustigar o tempo todo. Diferente do K. [personagem principal do livro], eu sabia o que estava acontecendo comigo, eu não fui condenado injustamente, mas a minha pena era desmedida em relação ao que está posto na legislação”, diz ele, referindo-se às condições degradantes da cela, por onde transitavam ratos e baratas, à alimentação de má qualidade e à conduta agressiva dos carcereiros.

Samuel ganhou fama de escritor na cela, que chegou a dividir com outros 70 homens. Nesse ambiente que ele descreve como insalubre, ele escrevia cartas para os colegas analfabetos, ora para suas mães, ora para advogados, e também para namoradas. Foi assim exercitando o seu estilo de escrita.

Samuel foi aprovado no vestibular de pedagogia quando estava preso e em 2013 ganhou o direito a saídas semanais da prisão para assistir às aulas. Publicou suas crônicas do cárcere na internet, e elas chegaram até o escritor Luiz Alberto Mendes. Morto em 2020, Mendes foi ex-detento no Carandiru e amigo do médico Drauzio Varella, sendo o autor de seis livros e colunista, à época, da revista Trip. Os dois ficaram amigos, e Mendes, que viu em Samuel a veia de escritor, incentivou-o a seguir no ramo.

Em 2018, um ano depois de ter alcançado a liberdade condicional, Samuel publicou, por financiamento coletivo, seu livro de estreia, Além das grades, que reúne crônicas e contos. Na época do lançamento, Samuel estava desempregado. Vendeu todos os 250 exemplares num só dia e, com o dinheiro, reformou a casa que dividia com a namorada, hoje sua esposa. “A minha ressocialização eu devo, também, à literatura”, conta.

Vieram mais três livros: Gangrena, de poemas, publicado em 2019, o ensaístico Ressocializando na cidade do caos, de 2022, e outro volume de ensaios, Penitência, de 2023. Todos trazem reflexões sobre o cárcere, o crime e a religião. Samuel trabalha atualmente com projetos sociais voltados para a juventude no Rio de Janeiro. Pensa em estudar letras. O último livro que leu (e de que gostou) foi A fé e o fuzil, do jornalista Bruno Paes Manso.

Programa de discussão de livros nas prisões terminou com gestão de Romeu Zema

Em novembro de 2018, o poeta belo-horizontino Ricardo Aleixo aceitou um convite do professor de literatura Alexandre Amaro para discutir a sua coletânea de poemas Pesado demais para a ventania (Todavia, 2018) numa roda de leitura com internos de um presídio em Sete Lagoas, na região central de Minas.

Ao ultrapassar os muros da prisão, encontrou leitores curiosos, cheios de perguntas sobre o que o inspirava a escrever, as dificuldades de publicar poesia no Brasil, o que era ficção e o que era biográfico em seus versos. “Eram pessoas que se aplicaram a conversar com os meus poemas. E, nessa conversa, esses poemas já não eram mais só meus. Saí de lá como quem tivesse conquistado o Nobel”, lembra Aleixo.

Um ponto memorável deu-se após a leitura de “Poética”, poema de gosto concretista que, explica o autor, “tira partido da palavra ruir dentro de construir”. Um dos detentos comentou de pronto: “Isso é a nossa vida. Estamos aqui para construir sobre ruínas”.

Em 2023, Amaro publicou um livro sobre as suas experiências discutindo literatura com detentos de Minas Gerais. Ele estudou as relações entre literatura e o cárcere em seu doutorado em letras, quando participava, como voluntário, do programa Rodas de Leitura, implementado em Minas Gerais durante o governo de Fernando Pimentel (PT). A participação de Aleixo, porém, foi um dos últimos lances do programa. Em 2019, quando Zema (Novo) assumiu o governo, o Rodas de Leitura deixou de existir.

Segundo a Diretoria de Ensino e Profissionalização do Depen-MG, o cancelamento do Rodas de Leitura não foi uma decisão do governo de Minas, mas sim do Serviço Social Autônomo (Servas), entidade sem fins lucrativos que, embora criada e fomentada pelo governo de Minas, atua de maneira independente, não se tratando de uma instituição governamental. Procurado para comentar a afirmação do Depen, o Servas não se manifestou até a publicação desta reportagem.

O Rodas de Leitura, no entanto, operava em parceria com a administração prisional. “Projetos costumam ter início, meio e fim”, avalia a diretoria de Ensino, para quem o Rodas de Leitura já havia cumprido “o seu ciclo”, uma vez que, ainda segundo a diretoria, a remição por leitura já está “consolidada” no estado.

Mesmo sem o apoio do governo do estado, há voluntárias que levam a ficção e a poesia aos presos e presas. É o caso do “LiLi – Literatura Livre”, projeto de extensão da UFMG iniciado em 2022 pela professora Nayara Noronha, também autora da novela Filha (7Letras, 2023).

Há algum tempo a escritora tinha interesse em organizar um grupo de leitura com detentas. A ideia era apresentar livros escritos por mulheres que, de alguma forma, dialogassem com as realidades daquelas pessoas. Nayara passou mais de um ano e meio em contato com a Secretaria de Justiça de Minas até conseguir autorização para entrar numa unidade prisional, o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, na Grande BH.

A conversa mensal com as detentas dura cerca de uma hora e meia, e, após a leitura, para conseguirem o benefício da remição da pena, as apenadas têm de escrever um diário com suas impressões do livro da vez. Também esses diários Nayara deseja transformar em livro.

Alguns títulos causaram forte impressão nas leitoras. Em Quarto de despejo, uma das presas emocionou-se ao reconhecer em Carolina Maria de Jesus, a autora, uma mulher com a vida árdua e os dilemas semelhantes aos de sua própria mãe; Tudo é rio, de Carla Madeira, circulou de mão em mão inclusive entre as detentas que, por estarem presas provisoriamente (isto é, sem terem sido condenadas), não podiam participar do programa de remição da pena. Já a poética reflexão sobre o luto de Todo o mar vai ser você, de Glaura Santos, foi o primeiro livro que uma das presas leu do início ao fim em toda a sua vida.

Flávio Morais, conhecido no sistema carcerário mineiro como “Tio Flávio”, há mais de dez anos realiza trabalhos voluntários em presídios do estado. Para ele, a literatura é um meio efetivo de resgatar o apenado de uma realidade violenta.

“O crime é um assunto corriqueiro nos presídios: quando chega alguém novo, o primeiro papo é ‘e você, caiu por causa de quê?’. A literatura é algo que pode quebrar esse círculo. Quando se discute um livro, não se trata mais de uma conversa entre presos, mas entre indivíduos que são pais, filhos, que são irmãos de alguém. O objetivo é ampliar as perspectivas para além da criminalidade”, explica.

Edição:
Matheus Pigozzi/Agência Pública
Matheus Pigozzi/Agência Pública
Matheus Pigozzi/Agência Pública
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