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Quem tem medo dos militares?

A insurreição de 8 de janeiro não teria ocorrido sem o golpe de 64, cuja anistia impôs silêncio sobre as ações militares

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26 de março de 2024
06:00
Ouça Natalia Viana

Natalia Viana

26 de março de 2024 · A insurreição de 8 de janeiro não teria ocorrido sem o golpe de 64, cuja anistia impôs silêncio sobre as ações militares

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Na cobertura do terceiro governo Lula, há controvérsias criadas sem esteio real, para atrair cliques e criticar uma administração que está tentando retomar algum rumo para o país, com seus erros e acertos. E há controvérsias que merecem mesmo ser controvérsias, virar debate público, foco de reportagens e artigos de opinião, comentários no YouTube e vídeos de TikTok. 

A fala do presidente Lula a respeito da ditadura militar fazer “parte da história” e de não querer “remoer o passado”, aliada à orientação a todas as pastas de não celebrar os 60 anos do golpe de 1964, faz parte do segundo grupo. 

Foram muitas as críticas, mas também as defesas. Mais de 150 entidades da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia disseram que Lula errou. “Repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente”, afirmaram em nota. 

O historiador Carlos Fico tuitou uma nuance: segundo a Folha, o que foi proibido foram “atos reparatórios, de reconhecimento e/ou desculpas públicas a setores da população atingidos pelas violências da ditadura militar”, algo proposto pelo Ministério dos Direitos Humanos liderado por Silvio Almeida. Para o historiador, a iniciativa seria “bastante discutível considerando-se a conjuntura”.

Já Nilmário Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia e História e da Verdade, disse que Lula quis fazer “um gesto de boa vontade” aos militares e que importantes projetos de memória seguem em frente, como a transformação da Casa da Morte num memorial. Reafirmou ainda que militares estão sendo investigados e serão punidos pelo envolvimento com a trama do golpe de 8 de janeiro. 

O problema está nos detalhes. A própria percepção de que a decisão de Lula é um “gesto de boa vontade” é perversa. Que instituição é essa que, em plena democracia, poderia considerar um ato de boa vontade que não se fale dos crimes que seus membros cometeram? Que governante é esse que pode considerar algo razoável uma autopercepção desse tipo? 

É o mesmo arrepio que eu sinto ao ler a coluna de Mônica Bergamo, que diz: “Forças Armadas estão preparadas para aceitar prisão de ex-militares envolvidos em tentativa de golpe”. Como assim “estão preparadas”? Por que teriam as nossas dignas forças de se “preparar” para o cumprimento da lei? 

Hoje e desde sempre, paira no ar uma ameaça latente, uma sensação de que convivemos com um Cerberus de três cabeças nos fungando no pescoço e que, ao menor gesto equivocado, podemos acordá-lo e despertar sua ira. 

Só que, como aprendemos aqui nesta coluna, é a percepção social que conforma as narrativas e visões de mundo que, por sua vez, ditam a política na sociedade contemporânea. Na era da informação, imagem é tudo. Ao agir como se estivéssemos sempre com medo, o medo se torna real. E a cada recuo oficial, os militares voltam à posição de tuteladores da República.   

Venho dizer o óbvio: não é uma democracia funcional aquela em que se precisa acalmar os generais de tempos em tempos. 

Esta semana marca os 60 anos desde que um grupo de generais, incitados por homens de negócios e por uma parte significativa da elite brasileira, decidiu derrubar o presidente legítimo, rasgar a Constituição e colocar os seus no poder. Marca, ainda, um ano e oitenta dias desde que outro grupo de altos oficiais – Almir Garnier Santos, Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Mauro Cid, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, Estevam Cals Theóphilo Gaspar de Oliveira e outros – achou que estava na hora de repetir o mesmo feito para, de novo, salvar o país de uma ameaça imaginária (o comunismo, a fraude nas eleições, o bolivarianismo) para, no final das contas, tomar o poder para si. 

É porque não existiria a insurreição de 8 de janeiro sem o golpe de 1964, e mais ainda, sem a interpretação de que a anistia ampla, geral e irrestrita impôs a obrigatoriedade do silêncio sobre atos horríveis praticados não só por militares, mas por todos aqueles que se aliaram ao regime, que ele precisa ser, institucionalmente, rememorado.

É, ainda, porque não existiriam instituições lenientes com os militares sem o golpe de 1964, mesmo aqueles que cometem crimes horrendos, como o Superior Tribunal Militar (STM), que recentemente demonstrou estar propenso a “deixar pra lá” o assassinato do músico Evaldo Rosa, cujo carro foi alvejado por 82 tiros de fuzil – que ele precisa ser marcado, sim, oficialmente, pelo Estado brasileiro.  

Eu nasci em 1979. Não vivi a ditadura, não se discutia o tema em casa, e eu jamais saberia do portfólio de crueldades dos meus conterrâneos se não fosse eu ser repórter de direitos humanos. Investigando as desigualdades e violências de hoje, é impossível não entender quantos dos males da nossa sociedade se devem exatamente àquela noite que durou 21 anos. 

E não falo só da violência policial, da nossa polícia ainda militarizada, que normaliza assassinar pessoas na Baixada Santista, por exemplo. Falo das outras incontáveis distorções que se normalizam e que, como quem se olha no espelho nu, apenas com a investigação minuciosa do passado, começa-se a compreender na sua totalidade. 

Nas últimas semanas, nossos repórteres revelaram, por exemplo, que cientistas do renomado Instituto Butantã foram responsáveis por fabricar toxina botulínica para o assassinato de pessoas muito longe dali, no Chile de Pinochet, onde até hoje um ex-preso político tem as cordas vocais lesionadas, sequelas na vista e no aparelho respiratório porque foi envenenado com aquele veneno paulista. Lemos, ainda, que um levantamento criterioso feito pelo pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana enumerou serem 1.654 os camponeses mortos pela ditadura – o número oficial é 41. Somando-se aos mais de 8 mil indígenas mortos, empalidece a narrativa de que houve 434 mortos na nossa sangrenta ditadura. 

Temos muitas outras revelações que ainda serão publicadas na Agência Pública nas próximas semanas, demonstrando como um governo militar deforma não apenas a instituição, que ainda hoje sofre de “síndrome do personagem principal”, mas a toda a sociedade à sua volta; e que mesmo essa visão distorcida do papel desses servidores públicos é, também, um legado longe de ser extirpado, daquele terrível regime militar. 

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