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São 20h00 da última quinta-feira (23) e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, conversa em seu gabinete com jornalistas de cinco veículos, entre os quais a Agência Pública. Ela havia acabado de sair de uma exaustiva reunião de mais de três horas com uma comitiva de deputados federais, um senador, deputados estaduais, políticos e moradores de Novo Progresso, no Pará. Eles estão todos mobilizados para tentar suspender ou retardar uma operação de fiscalização há pouco desencadeada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) com apoio de diversos órgãos públicos da União.
Vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), o ICMBio trabalha para frear a galopante destruição da unidade de conservação mais desmatada do Brasil, a Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, criada ao longo da rodovia BR-163 em 2006, quando Marina era a ministra do Meio Ambiente do governo Lula 1.
A ideia era justamente conter o desmatamento na região da BR-163, além de preservar os recursos hídricos e a biodiversidade. Ao longo dos anos, contudo, os pecuaristas espalharam gado, desmatando e queimando a floresta. Hoje estima-se que mais de 180 mil cabeças de gado estejam sendo criadas ilegalmente por particulares dentro do patrimônio da União. No último 3 de abril, o ICMBio deu 30 dias para os criadores de gado de áreas previamente embargadas retirarem todo o rebanho da Floresta Nacional. O prazo se encerrou no último dia 3, mas duas associações de “produtores rurais” pediram mais tempo – que foi novamente dado, com algumas condições. O ICMBio passou então a tentar apreender o rebanho ilegal.
“Houve um processo de completa depenação florestal ao longo da estrada. O que deve servir também de alerta em relação a outros empreendimentos em que sempre se alega que vai fazer um empreendimento sustentável com todos os requisitos, mas que depois vem pressão para a ocupação das margens dessas estradas. Concomitante com isso, nós temos compromissos de redução de emissão de CO2 [dióxido de carbono], […] meta de desmatamento zero, tudo isso se configura num olhar para as atividades que são compatíveis com manutenção de floresta em pé e assimilação de uma parte de atividades produtivas que possam ir se conformando em bases sustentáveis, mesmo que seja de produção de gado, mesmo que seja de produção agrícola, mas não dentro de unidades de conservação, obviamente”, disse a ministra aos jornalistas.
Desde que foi criada, em 2006, a Flona do Jamanxim teve mais de 115 mil hectares destruídos por criadores de gado e grileiros. Conforme registrado em várias outras partes da Amazônia, durante o governo de Jair Bolsonaro o ritmo da destruição explodiu na Jamanxim. De 2019 a 2022, a Flona perdeu em média 13 mil hectares a cada ano. No primeiro ano da gestão de Marina no governo Lula 3, com uma primeira operação desencadeada ainda em maio de 2023, esse número já despencou para 2.500.
A ministra e o ICMBio querem interromper a destruição dentro da Flona, um patrimônio nacional de 1,3 milhão de hectares que já perdeu 15% de sua cobertura vegetal natural principalmente para pastagens abertas ilegalmente em toda a Flona.
Segundo o ICMBio, todas as terras da floresta “são glebas públicas federais sob jurisdição do Incra, não havendo possibilidade legal de averbação de propriedade particular”.
Contudo, enormes forças políticas do Pará se insurgem a favor dos pecuaristas. O senador Zequinha Marinho (Podemos), um conhecido apoiador de garimpeiros, alardeou em seu perfil no Instagram na semana passada que “estão tomando o gado dos produtores, sem a devida indenização, sem nada, nenhum direito. Isso está errado! Devemos olhar para a questão humana na Amazônia”. De acordo com o ICMBio, o gado passível de apreensão é todo aquele criado em áreas que já foram alvo de diversas multas, embargos e avisos. O gado é criado ilegalmente dentro de uma terra pública, tornando ilegal qualquer “indenização”.
O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), telefonou para Marina Silva para pedir que ela atendesse, em audiência, a comitiva do seu estado.
Na quinta-feira, Marina Silva, o presidente do ICMBio, o analista ambiental Mauro Oliveira Pires, e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, receberam os políticos no MMA em Brasília. Apareceram os deputados federais José Priante (MDB-PA), um conhecido defensor de garimpos, financiado em campanhas eleitorais por mineradores como a Vale e primo de Helder Barbalho, Henderson Pinto (MDB-PA), outro defensor de garimpeiros, e Airton Faleiro (PT-PA), o ex-deputado federal e vice-presidente nacional do PT José Geraldo, o prefeito de Novo Progresso, Gelson Luiz Dill (MDB), vereadores e representantes de associações de produtores rurais.
Em um vídeo em 2017, o prefeito de Novo Progresso reconheceu que era “uma dessas pessoas afetadas por unidade de conservação e tive meu direito de comercialização [de rebanho bovino] cerceado por esses TACs”. Fazia referência a um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) elaborado pelo Ministério Público que impedia a comercialização de gado produzido em unidades de conversação no Pará, como a Flona do Jamanxim.
Proporcionalmente, o município de Novo Progresso foi considerado o “mais bolsonarista” da Amazônia no primeiro turno das últimas eleições presidenciais, com 79% de votos no candidato do PL.
Na saída da reunião com Marina, o prefeito Dill disse aos jornalistas que “são mais de 2 mil famílias que ficaram sobrepostas à Flona do Jamanxim”. “Nós viemos discutir aqui com a ministra a possibilidade de nós construirmos uma solução para todos aqueles conflitos que lá estão existindo”.
O prefeito afirmou que a proposta da comitiva é que as famílias permaneçam na Floresta Nacional, inclusive com seu gado, e que se “recategorize uma unidade de conservação onde permita a conciliação de proteção ambiental e também a permanência das pessoas”. Citou a criação de Áreas de Proteção Ambiental (APAs), que, segundo ele, “permitem uma atividade econômica”. O prefeito mencionou que um projeto de lei, de número 8.107/2017, tramita no Congresso na mesma linha da sua proposta.
O tal projeto, apresentado pelo governo de Michel Temer (MDB-SP), na verdade esfacela a Flona Jamanxim. Primeiro ela seria reduzida de 1,3 milhão de hectares para 953 mil hectares. Depois perderia mais 349 mil hectares, que seriam transformados nas APAs mencionadas pelo prefeito. Esse total de 26,45% seria uma série de retalhos dentro da floresta, mudando toda sua atual configuração.
Questionado pela Pública se não era uma forma de dar terras da União para particulares, se “não é um roubo de terra pública”, o prefeito disse que “não, porque essas pessoas já estavam lá [em 2006], com seu processo de regularização fundiária”. Ele reconheceu que não havia projeto de assentamento do programa de reforma agrária dentro da Flona.
“No Brasil sempre foi isso, em todas as regiões. Primeiro as pessoas chegaram, ocuparam, e depois foram regularizadas. Acho justo […] A ocupação do Brasil se deu por isso. Não é que a repetição, quero só justiça para essas pessoas que já estavam lá quando da criação dessa unidade de conservação.”
O prefeito alegou que “mais de 600” famílias de produtores rurais estavam na Flona quando ela foi criada. Esse seria o mesmo número atual. Ou seja, ao longo de todos os 18 anos passados desde a criação da Flona, o número de ocupantes teria permanecido o mesmo, segundo o prefeito.
O presidente do ICMBio não confirmou os números apresentados por Dill. “A estimativa é que tinha [em 2006] entre 100 e 200 ocupações. Agora, se você pegar os números do CAR [Cadastro Ambiental Rural], hoje dentro da Flona você tem 494 registros. Só que alguns desses registros são sobrepostos entre si. Ou seja, tem gente ali dizendo que é dono de uma área e o outro dizendo que é a mesma área.”
Marina Silva disse que vai avaliar as sugestões trazidas pela comitiva dos políticos “à luz da legislação”. “Uma resposta como essa é sempre lida pelos demandantes como insatisfatória. Porque o que a legislação nos faculta é que essas atividades são incompatíveis com a natureza da Flona. E aí eles tentam apresentar alternativas que envolvem o Congresso, mas aí já é uma outra esfera de poder.”
Ao lado de Marina, o presidente do ICMBio repetiu aos jornalistas o que havia dito na reunião para a comitiva dos políticos: “Nós, como gestores da Unidade de Conservação, somos obrigados pela legislação, e estamos cumprindo, a retirar aquele gado que foi, sobretudo, criado em área embargada. O que é uma área embargada? É uma área ilegalmente desmatada, verificada seja pelo ICMBio, verificada seja pelo Ibama. Ao longo desses anos, o Ibama fez a operação, o ICMBio fez a operação, e constatou desmatamento ilegal, foi lá e embargou a área”.
O embargo de várias áreas, contudo, não constrangeu os ocupantes a continuar destruindo a Flona. “Muitos produtores resolveram continuar desrespeitando esse embargo. Então, nós voltamos a fazer a fiscalização, e isso coincidiu, primeiro, com uma decisão do Ministério Público, que exigiu que o ICMBio fizesse a retirada desse gado de área embargada. Essa é uma recomendação da 4ª Câmara [da PGR]. Dezesseis procuradores do Ministério Público fizeram essa recomendação, e nós temos que prestar contas, periodicamente, do que vem acontecendo.”
O pedido de retirada do gado das áreas embargadas até 3 de maio foi desrespeitado pelos produtores rurais. No último dia 6, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará emitiu uma recomendação ao ICMBio, governo do Pará, Polícia Rodoviária Federal e Ministério da Justiça e de Segurança Pública para que esses órgãos façam “as operações de retirada e apreensão de gado criado em áreas de desmatamento ilegal e demolição de estruturas relacionadas à atividade ilegal” dentro da Flona.
Marina foi indagada por um jornalista se entendeu que foi pressionada pela comitiva dos políticos para uma “flexibilização”.
“Olha, quando você está agindo em conformidade com a lei e não vai prevaricar das suas atribuições, não consigo imaginar que tipo de pressão possa ser feita. Você vai sempre responder à luz da legislação. É claro que, no Estado Democrático de Direito, a própria legislação também é passiva de questionamentos, senão até hoje nós seríamos uma ditadura porque eles [militares] inventaram legislações esdrúxulas à democracia. Mas a compreensão que se tem é de que os mecanismos que foram criados para viabilizar a licença da BR-163 e que depois foram desrespeitados, eles causaram imenso prejuízo à preservação do meio ambiente. E de que a forma correta é a que foi estabelecida quando foi feita na prática uma avaliação ambiental estratégica da área de abrangência da estrada. Até o que era dito à época, de que seria uma estrada para fazer transporte de grãos, e de que essa estrada não iria ter ocupação ao longo da estrada.”
É possível imaginar qual teria sido o resultado dessa reunião entre os políticos do Pará e produtores rurais com um ministro do Meio Ambiente do governo de Jair Bolsonaro. Em 2020, aliás, podemos encontrar um precedente semelhante. Dois altos funcionários do Ibama, Renê Luiz de Oliveira e Hugo Loss, foram sumariamente derrubados de seus cargos logo após liderarem uma grande operação contra o desmatamento em terras indígenas no sul do Pará. Soube-se depois que o próprio Bolsonaro havia pedido providências de seus ministros contra a mesma operação de fiscalização.
Marina Silva, dentro dos seus limites e sob pressão política, segue na sua trincheira de resistência à destruição da Amazônia, dia após dia, reunião após reunião.