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Um lutador dos direitos humanos reflete sobre os 60 anos do golpe

Aos 85 anos, Jair Krischke segue na linha de frente da pesquisa e da denúncia sobre a ditadura militar

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8 de maio de 2024
06:00
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Rubens Valente

8 de maio de 2024 · Aos 85 anos, Jair Krischke segue na linha de frente da pesquisa e da denúncia sobre a ditadura militar

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No início de abril de 1964, Jair Krischke era um rapaz de 25 anos que trabalhava em Porto Alegre (RS) com o pai no comércio de produtos domésticos. Ele ainda não sabia, mas sua vida estava prestes a mudar de forma irreversível.

“Naqueles primeiros dias, a minha avaliação era de que era mais uma quartelada militar, mais uma entre tantas outras. ‘Daqui a dois, três anos, tudo volta ao normal’, eu pensei. Eu e a torcida do Flamengo todinha”, disse Krischke à Agência Pública.

A ditadura civil-militar, como se sabe, se arrastou por 21 anos, deixando para trás um rastro indelével de crimes contra os direitos humanos.

Entre os tantos milhões de trajetórias alteradas pelo golpe, a de Jair também sofreu uma guinada. Ao longo das seis décadas seguintes pós-golpe, seu nome se inscreveria na luta pelos direitos humanos no Rio Grande do Sul e no Brasil. Hoje, aos 85 anos, Krischke segue na linha de frente da pesquisa e da denúncia sobre uma data que nunca passou.

Há apenas duas semanas, no dia 24 de abril, caminhei ao lado de Krischke pelas ruas próximas do Mercado Municipal de Porto Alegre que agora vejo, pelas reportagens de TV, completamente inundadas pela histórica enchente que já matou mais de 80 moradores no estado e desabrigou centenas de milhares. Mais um momento dramático que Krischke testemunha e vive com intensidade.

(Em abril fui a Porto Alegre a convite do professor Éder da Silveira, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, a UFCSPA, para falar sobre o impacto da ditadura nos povos indígenas.)

Por ironia, o escritório do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH), fundado nos anos 1970 por Krischke e um grupo de ativistas, funciona desde 2020 no segundo andar de um antigo prédio de escritórios no largo chamado exatamente de “Esquina Democrática”, no cruzamento da rua dos Andradas com a avenida Borges de Medeiros, a poucas quadras do Mercado Municipal. A esquina é um local de manifestações políticas e passeatas desde o século 19.

O defensor de direiros humanos Jair Krischke caminha na “Esquina Democrática”, no centro de Porto Alegre, uma semana antes das chuvas que inundaram a região
O defensor de direiros humanos Jair Krischke caminha na “Esquina Democrática”, no centro de Porto Alegre, uma semana antes das chuvas que inundaram a região

Em uma ironia ainda maior, o MJDH passou a ocupar a mesma sala, conforme demonstra a matrícula do imóvel, usada nos anos 1970 e 1980 pelo famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações), o órgão que integrava o aparato da repressão da ditadura. Tudo indica que o endereço foi uma escolha estratégica do SNI. As janelas do imóvel oferecem uma visão privilegiada do largo. É possível imaginar os arapongas do SNI tirando fotografias para identificar os manifestantes da mesma janela da qual Krischke hoje olha com certo saudosismo a “Esquina Democrática”, palco de tantas lutas e histórias.

Pedi a Krischke que voltasse no tempo até chegar àquele rapaz preocupado com o golpe, 60 anos atrás. A sensação nos meses anteriores à derrubada de Jango, disse Krischke, era de que algo muito ruim poderia acontecer a qualquer momento.

Em 1964, Krischke já era politizado. Consumia avidamente as notícias sobre política, inclusive pelas ondas da Rádio Guaíba. Integrava as fileiras do PTB, o partido de Jango, o único partido ao qual se filiou em toda a vida. Três anos antes, aos 22 anos de idade, Krischke já havia participado da “Campanha da Legalidade”, o movimento criado em 1961 por Leonel Brizola a fim de garantir a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros. Em março de 1964, o clima voltou a ficar péssimo.

“Havia no ar um momento muito forte, porque o João Goulart era muito atacado, muito atacado. As manchetes dos jornalões eram sempre terríveis. Outro dia eu estava vendo: quando ele criou o 13º salário – as pessoas não sabem que foi o Jango quem criou o 13º –, os jornais diziam que ‘o país vai quebrar’. Não quebrou nada e hoje todos os trabalhadores adoram o 13º. Seguia esse clima de ataques ao Jango. Eu pensei: ‘Deve acontecer alguma coisa’.”

Mas, ao mesmo tempo que a ansiedade crescia, Krischke, como tantos outros brasileiros ligados na política, continuavam acreditando no “dispositivo militar” do general Argemiro de Assis Brasil, então chefe do Gabinete Militar de Jango. Acreditava-se que os militares fiéis ao governo seriam capazes de impedir um golpe da direita. Krischke depois iria concluir que Assis Brasil era “um pobre-diabo, mal-informado”. O governo caiu sem reação; o “dispositivo”, soube-se depois, nunca existiu.

Na noite de 31 de março, Krischke ouviu na Guaíba uma entrevista preocupante com o advogado Paulo Brossard, que duas décadas depois se tornaria ministro do STF indicado por José Sarney. Krischke não sabia, mas naquele mesmo dia uma tropa comandada pelo general golpista Olympio Mourão já rumava de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro em completa quebra da hierarquia e da disciplina. Era o início do golpe.

“O Brossard era o secretário de Justiça do Rio Grande do Sul. Mesmo num governo de direita, nessa entrevista ele pegou pesado demais com o Jango. Eu pensei: ‘Eu tenho que me antenar. Que coisa estranha’.”

No dia seguinte, 1o de abril, Krischke levantou bem cedo, às seis da manhã. Passou na casa do seu pai para dizer que “acho que vem problemas aí” e rumou para o centro da cidade.

O local combinado para uma pretensa resistência da esquerda porto-alegrense a um eventual golpe contra Jango era a sede da prefeitura. O prefeito Sereno Chaise era do PTB, amigo e discípulo de Brizola. Mas ele não estava na prefeitura. Alguém lembrou que ele havia feito a festa do seu aniversário exatamente na noite anterior.

Assim como Krischke, outros militantes de esquerda foram à prefeitura. Acabaram sendo atendidos por um policial da Brigada Militar que trabalhava como auxiliar do prefeito. Nem ele nem ninguém sabiam dizer “o que estava acontecendo”.

Krischke saiu da prefeitura e caminhou pela rua dos Andradas. Na esquina com a rua Uruguai, encontrou um companheiro de militância que trabalhava na Caixa Econômica. Ele agitava, “alucinado”, uma bandeira do PTB, e gritava: “Vamos resistir!”.

“Eu brinquei com ele: ‘Nós dois vamos resistir?’.”

Frustrado com a falta de mobilização e de informação segura nas ruas, o jovem Krischke voltou para casa. “‘Não há nada de concreto’, foi a minha sensação no final das minhas andanças do dia 1º.”

No dia seguinte, 2 de abril, a notícia do golpe tornou-se pública e caiu como uma bomba. Krischke viu tanques do 8º RecMec, um regimento do Exército, circulando pelo centro. Alguns seguiram em direção ao Palácio do Governo. Soldados começaram a circular pelas ruas.

Correu a informação de que Jango havia chegado a Porto Alegre durante a madrugada. De fato, o presidente havia deixado de avião o Rio de Janeiro, passado algumas horas em Brasília e aterrissado na capital do Rio Grande do Sul para avaliar a possibilidade de resistir ao golpe. Na manhã do dia 2, reuniu-se na casa do comandante do III Exército, general Ladário Telles, ao lado de Brizola, Chaise e muitos outros militares e políticos. A reunião ocorreu na casa do general, na avenida Cristóvão Colombo.

A exemplo de outros populares, talvez uma centena, Krischke correu para lá. Chegou à casa no meio da manhã. Em dado momento, um amigo, o militante da esquerda e vereador do PTB José Wilson da Silva, saiu da casa assustado e contou que havia participado da reunião.

“Ele me disse que houve uma discussão entre Jango e Brizola. O Brizola queria resistir, mas o Jango não quis. A coisa se complicou, ‘o que a gente vai fazer?’ Sentimos medo. Insegurança. ‘O que vai acontecer neste país?’”.

Krischke viu Jango sair da residência num automóvel Aero Willys preto. Antes, viu à distância que ele parara para dar uma entrevista à imprensa na frente da casa. Dali o presidente seguiria para São Borja (RS), na fronteira do Brasil com a Argentina. Dias depois se exilaria no Uruguai e nunca mais voltaria ao Brasil. Mudou-se em 1973 para a Argentina, onde morreu em dezembro de 1976.

“Quando a sessão do Congresso Nacional declarou vaga a Presidência na madrugada de 2 de abril, Jango ainda estava em território nacional. A declaração, portanto, era ilegal, só podia ocorrer se ele tivesse deixado o país. Mentira, mentira, mentira. Eu brigo muito pela data do golpe. Eu digo que essa ditadura foi fundada na mentira, a começar da data. O golpe foi no dia 1o de abril.”

A princípio, Krischke pensou que o golpe não iria longe. Mas logo começaram as prisões arbitrárias seletivas. Muitos comunistas, deputados, até o prefeito da capital. O método se alastrou por todo o país. Isso deixou claro que era uma quartelada bem diferente. “As pessoas estavam mapeadas, eles sabiam quem tinham que buscar. Lideranças expressivas.”

A perseguição política gerou uma reação no círculo de amigos e conhecidos de Krischke em Porto Alegre.

“Logo em seguida, na primeira ou na segunda semana [depois do golpe], nós vimos a necessidade de tirar brasileiros e levar para o Uruguai. Especialmente gente do centro do país e do Nordeste. Geralmente lideranças sindicais, estudantis, políticas.”

Esse grupo, entre as quais Krischke, montou uma “rota de fuga” a fim de garantir que as pessoas saíssem dos seus estados, passassem pelo Rio Grande do Sul e chegassem de preferência ao Uruguai, que sempre teve uma tradição de receber refugiados. Essa rede seria a essência do que ficou conhecido, primeiro na clandestinidade e depois oficialmente, em 1979, como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.

A partir de 1973, com um golpe militar no Uruguai, a rede gaúcha, que também teve o apoio de alguns religiosos católicos, passou a trabalhar no sentido contrário: trazer perseguidos políticos do Uruguai para o Brasil. As organizações de direitos humanos estimam que 2 mil pessoas tenham passado pelas rotas de fuga nos dois sentidos.

Krischke teria um papel importante nas denúncias internacionais contra a Operação Condor, um esquema transnacional montado pelas ditaduras do Cone Sul com o propósito de localizar, sequestrar e matar opositores políticos no exterior. Em 1978, atuou para libertar o casal uruguaio Lilián Celiberti e Universindo Díaz e duas crianças que haviam sido sequestrados em Porto Alegre por militares do Uruguai. No final dos anos 1990, seria testemunha de um processo aberto na Itália com o propósito de punir militares que atuaram na Condor.

Ao longo de toda a ditadura, a rede atuou de forma descentralizada, de forma a não chamar atenção do aparelho repressivo. No início dos anos 1980, porém, a atuação de Krischke e do MJDH já era de pleno conhecimento do SNI. Os arapongas passaram a registrar os passos de Krischke, como sua participação em palestras e encontros sobre direitos humanos. Num desses eventos, em 1982, a ditadura gravou e transcreveu as palavras de Krischke:

“Eu poderia contar a vocês, por via das dúvidas, uma série de brutalidades. A mais grave, é claro que eu não contaria porque, apesar de ouvir quase que diariamente testemunhos dessas vítimas daqueles que fogem de seus países desesperadamente em busca de liberdade, eu não narraria porque a emoção me levaria às lágrimas. Eu ainda não me acostumei com tanta miséria.”

Nos 60 anos do golpe, Krischke segue trabalhando no desenrolar de uma ação judicial aberta em 2021 na Justiça da Argentina por ele e pelo ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel na tentativa de obter punição aos militares e civis responsáveis pelo sequestro e desaparecimento do jornalista paulista Edmur Péricles Camargo, o “Gauchão”, sequestrado e desaparecido na Argentina, conforme a Pública noticiou em dezembro de 2021. 

Nas últimas semanas, Krischke perdeu a conta de quantas entrevistas concedeu, em especial para estudantes de história e jornalismo, e a quantos debates e eventos compareceu em virtude da efeméride do golpe. Está animado com as pesquisas que o MJDH tem feito em documentos inéditos da ditadura uruguaia; em breve terá novidades. No final do ano passado, ele foi objeto de um documentário de média duração dirigido pelo jornalista Milton Cougo. O título do filme não poderia ser mais feliz: Jair Krischke: imprescindível.

Rubens Valente/Agência Pública

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