A vereadora reeleita Tainá de Paula, do Partido dos Trabalhadores (PT), sobreviveu a um ataque a tiros, na cidade do Rio de Janeiro, durante o primeiro turno das eleições municipais deste ano. Não houve vítimas porque Tainá e sua equipe estavam em um automóvel blindado. O atentado aconteceu no dia 3 de outubro, às vésperas do dia de votação, contra uma vereadora negra, assim como era Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, representando mais um caso de violência política contra mulheres no Brasil.
As mulheres foram alvo de quase metade das ocorrências de violência política entre o fim das eleições de 2022 e o início do período eleitoral de 2024, segundo a pesquisa “Violência política e eleitoral no Brasil”, das organizações Terra de Direitos e Justiça Global. Atualmente, o Ministério Público Federal (MPF) acompanha ao menos 11 casos de violência política de gênero nas eleições municipais, com agressões físicas e/ou sexuais.
Para falar sobre o aumento da violência política de gênero, a entrevista do episódio #141 do Pauta Pública foi com Manuela d’Ávila, jornalista e ex-deputada federal que se dedica ao combate da violência de gênero e à desinformação. Atualmente, ela preside o Instituto E Se Fosse Você?, que, em 2021, lançou o livro Sempre foi sobre nós: relatos da violência política de gênero no Brasil, uma coletânea de relatos das vivências diárias de mulheres políticas brasileiras. Além de Manuela, outras 14 mulheres que atuam na política assinam a publicação, entre elas a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), as deputadas federais Duda Salabert (PDT) e Erika Hilton (PSOL) e as ministras Marina Silva e Sonia Guajajara.
Durante a entrevista, Manuela d’Ávila afirma que, há duas décadas, quando iniciou sua carreira política, o movimento feminista era menos expressivo no acolhimento de mulheres vítimas de ataques, e a violência também parecia acontecer em menor escala. Segundo ela, as eleições de 2020 foram marcadas por um aumento significativo da violência de gênero. “Hoje, quase nenhuma das parlamentares com quem eu me relaciono anda sem escolta. Quase nenhuma dessas mulheres anda sem carro blindado”, diz.
Leia os principais trechos da conversa e ouça o podcast completo abaixo. Aproveite também para votar no Pauta Pública em Melhores Podcasts do Brasil, na categoria Assuntos Diversos.
EP 141 Assédios, ameaças e ataques: a violência política contra mulheres – com Manuela d’Ávila
Em que momento nós estamos hoje com relação à violência política de gênero no Brasil? Pensando que inclusive nós estamos vendo um aumento geral da violência política nessas eleições municipais?
Esse ano completam duas décadas da minha primeira eleição e posso afirmar que a gente vive um momento em que essa violência é muito mais intensa, muito mais organizada, tem um volume assustadoramente maior. Ao passo que ela escandaliza menos do que escandalizava determinados setores e encontra uma reação maior das mulheres que estão envolvidas no ambiente público de uma maneira geral. Então não é uma resposta simples, estou tentando te montar uma equação.
Tem menos solidão para viver a violência, do ponto de vista de que as mulheres acolhem mais, há dez anos atrás não tinha nem nome para o que nós vivíamos. Ao mesmo tempo, os parlamentos, por exemplo, não param diante dessa violência e a escalada é tremenda. Eu lembro, a primeira vez que eu fui ameaçada foi logo no meu primeiro mês de mandato; quando eu assumi em 2005, eu já fui ameaçada de morte. Mas eu lembro que, naquela ocasião, a Câmara de Vereadores parou para me acolher. O presidente da Câmara, que era um homem de centro, centro-esquerda, digamos assim, mas que não era conectado com o bloco de partidos que eu fazia parte, ele interrompeu o funcionamento da Câmara para garantir que eu fosse escoltada, que eu tivesse segurança. Aquilo comoveu a todos.
Hoje, quase nenhuma das parlamentares com quem eu me relaciono anda sem escolta. Quase nenhuma dessas mulheres anda sem carro blindado. E o presidente da Câmara, por exemplo, Arthur Lira, segue intrépido, sem esboçar nenhuma reação, sequer facial, com relação a tudo que acontece a essas mulheres. Então eu acho que é revelador sobre a situação que nós vivemos atualmente. Ao mesmo tempo, há 20 anos, o movimento feminista não tinha o tamanho que tem hoje, então era muito mais solitário. As violências aconteciam em menor escala, mas enfrentá-las sozinha era muito difícil, sem sequer ter um nome para aquilo que a gente vivia.
Você pode falar um pouco sobre o livro Sempre foi sobre nós? Você reúne ali histórias muito impactantes de violência de gênero. Teve algum relato que mexeu mais? Ou um denominador comum entre as histórias que te impressionou mais?
O livro surgiu quando acabou a eleição de 2020, que foi a eleição mais violenta que eu disputei. Eu achava que 2018 tinha sido a mais violenta. Pensei assim: “Pra quem enfrentou o Bolsonaro, não tem para ninguém. Estou pronta para qualquer parada”, mas 2020 foi muito pior. Eu desconheço, no Brasil, uma eleição em que a violência política de gênero tenha sido praticada publicamente da maneira como foi aqui em Porto Alegre. Se fosse em São Paulo, se fosse contra um homem, talvez tivessem dado mais atenção.
Quando acabou, no dia seguinte, eu tinha certeza que precisava escrever um registro sobre isso, porque a gente vivia um tempo da extrema direita, que, quando a gente olhar a fotografia dele, muitos vão tentar tirar a relevância do ódio às mulheres, mas nós, mulheres, a gente tem essa obrigação de dizer: “Olha, é sobre muitas coisas, mas é centralmente sobre o ódio a nós”. A ideia de que nós temos que voltar para dentro de casa, os negros têm que voltar, a população LGBTQIA+ tem que voltar para dentro do armário. Essa é a frase que melhor sintetiza o lugar que a extrema direita quer colocar a parte da sociedade brasileira, a maior parte.
Dito isso, eu tentava escrever o livro e pensava assim: “Cara, tem uma coisa errada, porque toda vez que eu escrevo, parece que eu estou escrevendo sobre uma experiência pessoal”. E essa experiência, ela é pessoal, mas ela é um registro de algo universal. A grande sacada, digamos assim, que a violência política de gênero, ela era tão mais ardilosa quanto mais pessoal parecesse.
Com isso, fui chamando mulheres com quem eu tinha algum grau de relação e sabia das suas experiências para comporem a obra comigo. O que a obra tem de mais forte talvez seja uma das coisas que eu tenha mais orgulho de ter produzido na minha vida, porque é um registro único, histórico e muito forte dessa experiência tão diferente, que acontece de maneiras tão diferentes entre mulheres tão diferentes quanto eu, Erika Hilton, Talíria [Petrone] e Sonia Guajajara, mas com dispositivos comuns que impedem, que constrangem, que buscam fazer com que esses corpos saiam de circulação.
De que maneira a violência política de gênero atenta contra a democracia?
Não existe democracia sem as mulheres. E se a gente tem processos, procedimentos, práticas que têm acontecido sistematicamente para impedir que mulheres estejam em processos eleitorais, para constranger mulheres no exercício do seu mandato, isso é uma ameaça à democracia.
Quando eu estive pela primeira vez no Parlamento há duas décadas, o mandato era considerado algo quase sagrado, como a representação do desejo popular. Cassar um mandato era algo que nos fazia refletir muito, porque aquela pessoa estava ali representando um conjunto de pessoas que tinham depositado a expectativa nela. Hoje os mandatos das mulheres são ameaçados todos os dias e nada acontece, absolutamente nada acontece.
Então, na democracia representativa, crescentemente, as mulheres têm sido eleitas para representar e crescentemente têm tentado impedir que essas mulheres possam livremente representar as pessoas que as têm escolhido. Eu acho que isso já é o bastante. Numa sociedade em que alguns corpos são constrangidos a estar no ambiente público, essa sociedade tem que parar para pensar nas razões pelas quais isso acontece.