Buscar

Para ambientalistas, novo número divulgado pelo governo não condiz com plano de conter aquecimento global em 1,5 °C

Reportagem
9 de novembro de 2024
11:38

Sem a realização de um evento oficial nem a convocação da imprensa, o governo brasileiro divulgou, na noite desta sexta-feira, 8 de novembro, um comunicado com a nova meta climática do país para a próxima década. O país se compromete a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa entre 59% e 67% em 2035, na comparação com os níveis de 2005.

Isso equivale, em termos absolutos, a reduzir as emissões para algo entre 850 milhões (no melhor cenário) a 1,05 bilhão (no pior) de toneladas de gás carbônico equivalente por ano.

O número atualiza a chamada NDC, ou Contribuição Nacionalmente Determinada, apresentada pela primeira vez em 2015, quando foi adotado o Acordo de Paris – compromisso mundial de combate às mudanças climáticas.

Até fevereiro do ano que vem, quando se completam dez anos do acordo, todos os países que assinam o texto precisam apresentar suas novas metas a fim de torná-las mais ambiciosas e condizentes com o compromisso mais amplo de conter o aquecimento do planeta em 1,5 °C. As promessas de esforços atuais estão bem longe disso.

O anúncio foi feito às vésperas do início da 29ª Conferência do Clima da ONU (COP29), que será realizada em Baku, no Azerbaijão, a partir desta segunda-feira, 11 de novembro. Como anfitrião da próxima COP, o Brasil quis demonstrar proatividade e liderança nesse processo, a fim de incentivar os demais, ao lançar sua NDC agora.

Trata-se de um bom passo que o Brasil tenha se antecipado para divulgar sua nova meta climática, mas ainda precisa explicar como ela vai ser alcançada, qual vai ser a parte de cada setor da economia. Um pouco mais de ambição também seria bem-vinda, apontam ambientalistas.

O país, juntamente com o Azerbaijão e os Emirados Árabes Unidos (sede da COP do ano passado), vem defendendo a chamada “missão 1,5”, para que as nações, ao fazerem seus novos planos, se comprometam com ações que não percam de vista esse limite de temperatura – considerado o mais seguro para a humanidade e o planeta. Além do Brasil, somente os Emirados Árabes já ofereceram uma nova meta.

O aquecimento observado hoje já está muito próximo do 1,5 °C (este ano deve terminar como o mais quente do registro histórico) e já vem provocando um aumento de ondas de calor, tempestades e secas severas mundo afora. Cada meio grau a mais de aquecimento pode fazer a diferença em mais tragédias e perdas humanas e econômicas.

Segundo o comunicado do governo, a nova meta “está alinhada ao objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento médio do planeta a 1,5 °C em relação ao período pré-industrial” e “permitirá ao Brasil avançar rumo à neutralidade climática até 2050, objetivo de longo prazo do compromisso climático”.

Eventos extremos, como a seca recorde na Amazônia neste ano, serão mais frequentes com aumento da temperatura média global

Meta climática deveria ser maior e mais precisa, criticam especialistas

A declaração, porém, foi contestada por especialistas, que afirmam que a meta de redução brasileira deveria ser maior para ser condizente com a limitação do aquecimento em 1,5 °C. Análise da plataforma Política por Inteiro, da organização Talanoa, lembra que o novo corte proposto pelo Brasil representa uma redução de 39% a 50% em relação às emissões líquidas de 2019 (que eram de 1,7 bilhões de toneladas – ou gigatonelada – de CO2e).

Ocorre, aponta a análise, que, “segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e o primeiro Balanço Global do Acordo de Paris [realizado no ano passado na COP28], são recomendados cortes que alcancem 60% até 2035 em relação a 2019”.

Esses 60% são projetados para as emissões conjuntas globais, mas, para ambientalistas, a parte que cabe ao Brasil nesse esforço deveria ser maior considerando quanto o país historicamente contribuiu com o aquecimento global.

A maior parcela do problema, claro, vem das nações desenvolvidas, como os Estados Unidos e as nações europeias, que começaram a queimar combustíveis fósseis e a emitir gás de efeito estufa pesadamente há 170 anos, com o início da Revolução Industrial, e são as que mais têm esforços a fazer. Mas o histórico de desmatamento da Amazônia, que já perdeu cerca de 20% da cobertura original, também faz do Brasil um emissor histórico importante.

Em entrevista à Agência Pública, a secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, lembrou que ainda não existe uma metodologia ou modelo recomendado pelo IPCC para orientar os países a saberem se suas NDCs estão alinhadas ou não com 1,5 °C. “Tem muitos modelos por aí com muitas variáveis diferentes, níveis de incerteza e principalmente perspectiva de justiça ou não. Usamos o melhor da ciência brasileira para nos orientar e modelo elaborado pela Coppe/UFRJ [que orientou a definição da meta] coloca a NDC brasileira como alinhada com 1,5. Mas logicamente isso depende muito também do alinhamento dos outros países”, disse.

A rede de ONGs Observatório do Clima, por exemplo, estimou que a fatia justa do Brasil para o esforço global deveria ser de o país se comprometer a emitir no máximo 200 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2035, uma redução de 92% em relação aos níveis de emissão líquida de 2005. Segundo a rede, mesmo outros compromissos já adotados pelo governo, como a promessa do presidente Lula de zerar o desmatamento no país, poderiam levar a uma emissão líquida menor que 650 milhões de toneladas em 2035 – o que levanta dúvidas sobre como o desmatamento de fato vai ser considerado nos novos planos.

As atuais emissões líquidas (que consideram quanto CO2 é removido da atmosfera por florestas protegidas) do Brasil são estimadas em 1,65 bilhão de toneladas de CO2. O dado, referente a 2023, foi divulgado na última quinta-feira (7) pelo Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg), do Observatório do Clima.

A emissão brasileira, de acordo com o Seeg, diminuiu no ano passado principalmente porque houve redução do desmatamento da Amazônia; e a expectativa é que haja nova queda das emissões neste ano porque o desmatamento também voltou a diminuir – chegando ao menor nível desde 2015, talvez a melhor notícia ambiental desse início de COP. O Brasil deve usar esse bom resultado no evento para mostrar que vem fazendo sua parte e cobrar as demais nações, mas para zerar o desmatamento há ainda um longo caminho.

Esse é um ponto que tem levado a discussões com o agronegócio. Quando Lula assumiu a presidência, ele prometeu zerar o desmatamento até 2030, mas nunca ficou claro de que tipo de desmatamento ele estava falando – se ainda seria permitido o desmatamento legal, dentro do permitido pelo Código Florestal, ou se haveria um esforço para conter essa possibilidade, deixando apenas um residual imprescindível, que teria de ser compensado com o plantio de árvores.

A primeira possibilidade é a defendida pelo agronegócio, só que o conceito de “legal” pode ser facilmente alterado. E, de fato, há constantes esforços para flexibilizar o Código Florestal no Congresso, de modo a ampliar o leque do que é desmatamento permitido. O zero total é a defesa de ambientalistas e cientistas do clima, e também é o cenário com o qual trabalha o Ministério do Meio Ambiente, que busca elaborar alternativas econômicas à região para que não seja necessário desmatar nada. Seja como for, não se sabe ainda o que a nova NDC vai contemplar.

O fato de o Brasil ter apresentado apenas um número e não um detalhamento de como essa meta será alcançada, com planos setoriais, foi um dos alvos de críticas. Além de não detalhar como se dará a redução do desmatamento, por exemplo, o comunicado não traz nenhuma citação à eliminação gradual dos combustíveis fósseis – que foi acordada no ano passado na COP de Dubai e é ação considerada essencial para conter o aquecimento em 1,5 °C. Como o governo tem planos de explorar mais petróleo no país – como é o caso da Foz do Amazonas –, a questão tem rendido disputas intensas.

“Foram omitidas informações cruciais para avaliar a ambição da nova NDC brasileira: como será tratado o desmatamento? Como será tratada a expansão dos combustíveis fósseis? Uma análise completa será feita pelo Observatório do Clima quando o governo brasileiro der transparência ao documento da NDC, como convém a um país que se pretende líder do processo multilateral de combate à crise climática”, afirmou Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

O governo já tinha avisado que a NDC neste momento seria de fato apenas uma meta numérica, porque o papel a ser desempenhado por cada setor da economia está sendo desenhado no Plano Clima – que trará as diretrizes tanto de mitigação quanto de adaptação no país. Segundo Ana Toni, o Plano Clima deve, em breve, ser apresentado para consulta pública. Mas deverá ser finalizado somente no primeiro semestre do ano que vem.

É o Plano Clima que vai detalhar quem vai fazer o quê e quanto. Se houver mais esforço de redução do desmatamento, setores de energia e indústria, por exemplo, terão metas menores.

As entidades também criticaram a meta ser oferecida em formato de banda, com um valor máximo e um mínimo, porque isso não criaria incentivos para se chegar à maior redução. Ao alcançar o maior valor, poderia se considerar que a meta já foi alcançada.

“Vale o teto. Neste caso, o 1,05 GtCO2e para 2035, que representa um esforço baixo entre 2030 e 2035. O Brasil, que vive o drama climático atual e tem o ponto de inflexão da Amazônia no horizonte, precisa de mais redução. Esse nível de emissões nos mantém entre os poucos que liberam mais de 1 gigatonelada ao ano para a atmosfera. É decepcionante”, disse Natalie Unterstell, especialista em políticas públicas do Talanoa.

Toni reiterou que a ambição do governo é reduzir as emissões em 67%. “Ou seja, a NDC é muito ambiciosa. Que outro país emergente ou mesmo desenvolvido tem uma meta de 67%? Mas para atingirmos nossa ambição temos que assegurar condições propícias nacionais e internacionais, e não temos como controlar tudo. Por isso a banda. O plano de voo é para nos levar para 67%. Agora é assegurar uma boa rota de voo e as condições de voo”, afirmou.

Edição:

* Texto ampliado às 16h15 para inclusão do posicionamento da secretária de Mudança do Clima, Ana Toni.
*A repórter viajou a Baku a convite do Instituto Arapyaú e do ClimaInfo

Raphael Alves/Agência Pública

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes