Até o início de 2023, a cozinheira Vanessa Oliveira, 36 anos, e o marido, Leandro Pacheco, 38 anos, conseguiram honrar o compromisso com o aluguel, mesmo com dificuldades financeiras, inclusive durante a pandemia de covid-19. No entanto, no ano em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o fim da emergência em saúde, os efeitos da crise atingiram a família em cheio. O marido perdeu o trabalho e, por não conseguir arcar com a locação, o dono do imóvel pediu a casa. Sem alternativa, o casal deixou os três filhos na casa de uma amiga e passou a viver numa barraca na praça Nova Esperança, na Vila Jaguari, zona noroeste de São Paulo, durante dois meses, até conseguirem um terreno numa ocupação.
Eles não são um caso isolado, mas uma situação que explodiu com a covid-19. Dados da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), levantados pelo Núcleo de Conflitos Fundiários, mostram que, até agosto de 2023, havia mais de 115 mil famílias vivendo em 567 ocupações na cidade de São Paulo. Se for considerada a média de cinco por família (um casal e três filhos), isso equivale a cerca de 575 mil pessoas vivendo em ocupações na cidade.
Segunda a Sehab, “Atualmente, são monitoradas pela Secretaria Municipal de Habitação 351 ocupações na cidade, sendo 208 com processos de reintegração em andamento.”
Além das ocupações, também houve um aumento no número de domicílios nas favelas durante e depois da covid-19. No primeiro ano da pandemia, em 2020, havia 391.489 casas em favelas na capital paulista. Em 2023 chegou a 400.027. Ou seja, nesse período surgiram 8.538 novos domicílios em comunidades, o que corresponde a cerca de 42 mil pessoas. Além disso, 21 novas favelas surgiram no período, chegando a 1.751 na capital.

Por que isso importa?
- O preço médio do aluguel no Brasil saiu de R$ 29 por m² no início da pandemia de covid-19 para R$ 47 em janeiro deste ano, segundo o índice FipeZAP.
- A quantidade de pessoas morando em ocupações e em favelas na cidade mais populosa do país aumentou com a covid-19.
Na época, o aumento de famílias em busca de moradia e o surgimento de novas ocupações chamaram atenção de Isadora Guerreiro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora do LabCidade.
“Nos territórios em que a gente já estava acompanhando, durante a pandemia de covid-19, todos eles tiveram novas ocupações. Eram pessoas que não estavam conseguindo pagar aluguel, por conta da crise de desemprego, e porque todas as negociações e legislações que foram feitas a respeito de negociação do aluguel são muito relacionadas ao mundo formal [quem tem contratos de aluguel com imobiliárias e corretoras, por exemplo] e as pessoas que pagam aluguel na informalidade não tem como acessar a Justiça para nenhum tipo de negociação.”

A situação de Vanessa e Leandro começou a mudar após um encontro aleatório com uma mulher que viu o casal naquela situação e o alertou sobre uma “invasão” que tinha ali próximo. “Eu estava na rua, uma moça passou e falou desse lugar, disse que era uma ocupação e falou pra eu tentar um pedaço terra”, relata. No mesmo dia, Vanessa foi até o terreno. No local, se deparou com barracos de madeira cobertos com lona e chão de barro. Era o início da ocupação Vila da Mata.
Antes mesmo de conseguir o seu espaço, Vanessa se aproximou da cozinha coletiva e começou a preparar refeições com as doações de alimentos que a ocupação recebia. Ali, além de conseguir uma moradia, se sentiu feliz em poder ajudar a aliviar a fome de dezenas de famílias.
O terreno que os moradores ocupam é alvo de duas ações em processo na Justiça: uma de reintegração de posse e outra de imissão na posse. Atualmente, cerca de 400 famílias estão na Vila da Mata – uma média de 3 mil pessoas.

Apesar de os primeiros barracos começarem a ser levantados em 2022, foi no ano seguinte que a maior parte dos ocupantes chegou. Algumas pessoas relataram à reportagem que o terreno está sem uso há pelo menos 30 anos.
Em 1993, Rafael Mascarenhas, 39 anos, tinha 8 anos quando um grupo de pessoas da região se organizou e fez um mutirão para limpar o mato e inaugurar o primeiro espaço de lazer para os moradores do entorno: um campo de futebol. Desde então, o local se tornou um ponto de encontro nos finais de semana. “O terreno sempre foi abandonado, mas a comunidade, de certa maneira, sempre cuidava. Há fotos de plantação de mandioca em 1998”, conta.
Apesar da ociosidade do terreno, até meados da pandemia de covid-19 não havia pessoas morando no lugar. Segundo Rafael, foi exatamente nesse período que as primeiras famílias começaram a chegar. “Durante a covid-19, as pessoas começaram a construir um barraco aqui e ali e foi pegando força aos poucos. Muita gente chegou aqui dizendo que não conseguia mais pagar o aluguel. Alguns não conseguiam pagar nem água. Tinha pessoas chorando por não conseguir mais pagar [aluguel], deixar tudo pra trás pra vir pra cá”, lembra.

Aluguel: um ladrão no orçamento
Quando o então governador de São Paulo João Doria (PSDB) anunciou o lockdown em 21 de março de 2020 por causa da covid-19, Jean Batista, 31 anos, trabalhava como ajudante geral numa transportadora e junto com outros funcionários foi demitido. Com o salário que recebia, pagava R$ 600 de aluguel, R$ 300 de luz, R$ 200 de água e “comprava a comida pra família parcelada no cartão“, diz. Desde então, Jean ainda não conseguiu trabalho com registro em carteira e sobrevive com bicos.
Com o aluguel e as contas atrasadas há dois meses, ele, a esposa e os dois filhos tiveram que entregar a casa. Entre 2022 e 2023, para não irem viver na rua, começaram a morar na casa de familiares. Depois, ele conseguiu um espaço na ocupação Vila da Mata. “Quando a gente veio pra cá, peguei um palete, joguei um colchãozinho em cima, limpei em volta, subi uma lona e fiquei embaixo. Era só um barraquinho em cima do capim”, lembra.

Após dois anos vivendo na ocupação, Jean se diz animado por não ter que destinar para o aluguel a renda que consegue. “O bom é que agora eu não preciso pagar o aluguel, mesmo fazendo uns bicos, consigo comprar as coisas para dentro de casa”, relata.
Além da satisfação por não deixar faltar nada para a família, Jean voltou a sonhar. Ele não tem carro, mas em novembro de 2024 conseguiu, com bastante sacrifício, tirar a habilitação na categoria A e B, que dá direito a dirigir carro e moto. Porém o foco dele é mudar para a C, assim ele poderá voltar a trabalhar na transportadora, como motorista de caminhão. “Lá eu era ajudante, ficaram carregando e descarregando palete de madeira, mas eu sei dirigir caminhão, sei manobrar, sou muito bom nisso. Quando tinha que pagar o aluguel, não sobrava dinheiro para pagar a habilitação. Daqui a um tempo, vou voltar como motorista”, conta.
Não ter mais o compromisso mensal com o aluguel foi um alívio que Valéria Carla Bacelar, 47 anos, não sentia desde os 18 anos, quando saiu da casa dos pais. “Aqui foi uma renovação na minha vida, eu comecei a ver as possibilidades, então tudo mudou. Se você tem seu lugar próprio, muda tudo na sua vida, é imprescindível”, conta.
Assim como a maioria das pessoas que chegaram na Vila da Mata, Valéria também não conseguia mais pagar o aluguel e teve que entregar a casa. A princípio, ela cogitava a possibilidade de ir para um albergue da prefeitura, quando um conhecido comentou com ela sobre a ocupação.

“O que me salvou foi quando esse meu amigo falou daqui. Aí eu dei um suspiro de esperança. Eu vinha agoniada, e quando consegui esse pedaço aqui eu chorei muito, eu chorei muito, muito, muito, muito, muito. Eu lembro do que eu olhava assim, eu não acreditava. O sonho de qualquer pessoa é ter o seu lugar, é ter o seu canto, sabe? A pessoa que paga aluguel, ela não consegue ter nada na vida, né? Eu paguei na minha vida inteira aluguel, eu não tenho nada. Eu não tenho carro, eu não tenho uma moto, porque como que você vai ter essas coisas?”, questiona.
Valéria tem sete filhos, mas apenas a mais nova mora na ocupação. Hoje, a mãe se diz orgulhosa em ter a possibilidade de deixar uma casa, que ela vem construindo, para a caçula. “Eu não dependo de homem. Construí primeiro o meu quarto, depois a cozinha, o banheiro e depois fiz o puxadinho”, relembra.




Desempregada, Valéria gera renda com os bicos que faz fora e dentro da ocupação. Não nega trabalho e se sente privilegiada porque hoje o que ganha vai para o seu bolso. “Eu sou uma mulher que não fico parada, essa semana consegui dois terrenos para carpir. Eu sempre fui à luta, mas com aluguel é muito difícil”, relata.
Mais procura, menos espaços
No início de 2020, um terreno baldio que fica na rua Tuparoquera, Jardim São Luís, zona sul, contava com meia dúzia de barracos habitados por usuários de crack. No final do ano, cerca de 200 famílias já viviam no local. Hoje, o lugar se chama ocupação Nova Esperança e abriga 320 famílias. “O crescimento foi muito rápido, um dia tinha um tanto e no outro o dobro, e assim foi crescendo. E até hoje tem gente subindo o morro e pedindo lugar para morar porque não tem como pagar um aluguel”, conta Zenilda Severina, 44 anos, conhecida como Cuca e liderança na comunidade.
Assim como a maior parte das pessoas que vivem na ocupação, Cuca chegou ali durante a pandemia de covid-19 por não conseguir mais pagar o aluguel. Na época, ela não conseguia trabalhar por questão de saúde e vivia com o filho e a neta.
Sabendo que mais cedo ou mais tarde seria despejada, começou a buscar meios para conseguir uma moradia, quando soube da ocupação e foi até o terreno. “Naquele momento que eu subi a ladeira dessa comunidade, eu não tinha um pingo mais de esperança. Todas as minhas expectativas tinham acabado, mas de alguma forma eu sabia que aqui seria o meu refugio”, conta.

Após 15 dias, Cuca conseguiu um pedaço de terra, mas não tinha condições de construir o barraco. Através de conhecidos, recebeu doações de madeirite e telhas. Para levantar os cômodos e cobrir a casa, fez o acordo com o pedreiro para pagar R$ 150 por mês. Ela recebia R$ 180 do programa Bolsa Família. “Foi muito difícil. Só quando eu vi as paredes, todas cheias de remendo, tive uma esperança muito grande. É como se eu estivesse dentro de um palácio. Ali eu comecei a deitar tranquila porque eu sabia que não devia nada pra ninguém e ninguém poderia me despejar”, relata.
Em pouco tempo, Cuca começou a se tornar referência para a comunidade e se consolidou com liderança. “No começo, eu não aceitava muito esse papel, mas hoje eu não vivo sem a comunidade, sem o social. Antes eu ficava tentando entender o significado de viver, porque não tinha sentido. E hoje eu achei o sentido”, diz.
Para a liderança, a sociedade se ajudou bastante durante a pandemia de covid-19, mas se esqueceu das consequências sociais que estão acontecendo agora. “As pessoas acham que com o fim da pandemia a situação melhorou, mas aqui na periferia está pior. Ficou um estrago muito grande, muito desemprego, muitas pessoas doentes e sem expectativa de vida.”
Com quase cinco anos de existência, a Nova Esperança continua sendo procurada por pessoas que foram despejadas ou estão na iminência de ser. No entanto, o terreno está lotado, não há mais espaço para receber novas famílias. Cuca diz ter chegado a abrigar pessoas dentro de casa, mas se sente mal por não conseguir ajudar todos que precisam. “Teve um dia que uma moça veio aqui pedir um espaço. Ela tinha uma filha cadeirante e a mãe dela Alzheimer, mas tinha perdido o benefício e por isso não conseguiram pagar o aluguel. Elas estavam na rua, mas eu não tive como ajudar. Se toda história que subir [o morro] eu pudesse abraçar, nenhum deles [que pediram] estava sem casa hoje”, conta.